terça-feira, 30 de novembro de 2010

Mito e tabu

Não é difícil encontrar consensos a propósito da necessidade de elevar o grau de eficiência do Estado. Consensos, porventura menores, relativamente ao facto desse ganho de eficiência passar por o Estado se dedicar a menos coisas. A questão complica-se quando se passa à fase de concretizar: que menos “coisas” são essas? E atinge o seu paroxismo se alguém defende que algumas dessas “coisas” são precisamente aquelas que desde sempre foram feitas. Que moldaram um modo de funcionamento. Que, em parte, são a razão de ser de um organismo. Que, por isso,habitualmente nem se discutem. É o caso, nas políticas públicas do Estado, dos apoios financeiros às federações desportivas.
O financiamento público do Estado às federações dotadas do estatuto de utilidade pública desportiva é a matéria mais sensível, mais delicada e também a que maior tempo ocupa das tarefas da administração pública desportiva. E é por causa dela que se apanham as maiores dores de cabeça. A maior parte do tempo “gasto” a governar o desporto tem origem em matérias ligadas ao financiamento das federações desportivas. O que se replica nas estruturas administrativas de suporte. Na legislação. Nas auditorias. Nas reuniões. No contactos. Nos telefonemas. Nas movimentações.No lobbying. E numa infindável teia de procedimentos burocráticos. Que todos os anos, em vez de diminuir, aumentam. Porquê? É um mito: sempre foi assim. E um tabu: não se discute. Para o Estado e para as federações desportivas. O que explica que tradicionalmente se procure aumentar o grau de burocratização dos procedimentos sempre em nome da celestial música do “bom uso dos recursos públicos”.
Convém começar por esclarecer que estamos a falar não de recursos que têm origem nos impostos que os cidadãos pagam, mas numa percentagem das receitas que são absorvidas através das práticas dos chamados jogos sociais. É uma receita que está no orçamento do Estado consignado a um objectivo claro: o desenvolvimento desportivo. E nem passava (presumo que actualmente ocorre a mesma situação..) pelas estruturas de gestão das finanças públicas: sai directamente da santa casa da misericórdia de Lisboa para o IDP. Aí é repartido por várias fatias. Ninguém, a não ser os apostadores, “determina” qual o valor do bolo. E o modo de o repartir é um misto de “histórico” do último ano e dos recursos que estão disponíveis no presente. E o “histórico” do último ano obedeceu ao mesmo exercício. É uma espécie de razão da razão anterior. Porque o “histórico” que num ano é ponto de partida foi de chegada no anterior. E assim sucessivamente. Com mais toque aqui e ali o resultado não é, no essencial, diferente. E digo isto com à vontade de quem não tem sequer um critério diferente para apresentar. Apenas uma solução de método distinta. Tirar esse exercício das funções do Estado.
Por que razão deve ser a administração pública a definir os montantes da parcela que cada entidade (federação desportiva) anualmente recebe para as suas diferentes actividades? Ou para o programa de preparação olímpica? Porque se não limita o Estado a definir o montante global sob a forma de percentagem do valor das verbas para o efeito consignadas? E a deixar a gestão desse recurso, a sua administração e divisão, que, repete-se, não são impostos dos portugueses, ao critério dos organismos representativos das entidades apoiadas? Por que se não limita, estabelecendo regras, a sindicar, no plano financeiro e fiscal, o modo da sua aplicação?
Podemos ensaiar várias respostas. Umas técnicas e outras políticas. Mas há uma constatação simples: a esquerda, o centro e a direita nunca colocaram em causa o método actual. Nem o vão fazer. Qual a razão? Porque no dia em que isso acontecesse esvanecia-se o poder que a governação do desporto comporta. E a ultima coisa que quem governa (ou pretende vir a fazê-lo) está disposto a abandonar é a razão de ser de governar. Bem sei que as razões aduzidas possam ser outras: a de quem está profundamente convicto que essa e a melhor forma de o fazer.Com mais equilíbrio, mais justiça, maior isenção. Mesmo que não tenha como o demonstrar. É uma mera convicção.Pode defender-se que tendo as federações desportivas competências delegadas ,cabe ao delegante definir as prioridades.Mas quem conheça a realiade sabe que isso é conversa fiada. Pode também dizer-se que a natureza das entidades representativas não assegura as competências necessárias à equidade no tratamento dos representados. Nem nunca assegurará se sobre elas se não aumentar o grau de exigência e responsabilidade públicas. E embora se saiba que essa é uma forma de não responsabilizar as entidades apoiadas que encontram sempre no critério de apoio do “Estado” um álibi desculpabilizante.
Uma coisa temos como certa: no dia em que quem governa retirar o ónus do financiamento às federações desportivas das rotinas da administração pública ganha tempo para estudar, pensar, avaliar e construir uma política pública de apoio ao desporto. Coisa que manifestamente não consegue enquanto se não libertar da ideia de que pensar e desenvolver o desporto é gastar a parte mais importante do tempo a financiar e a resolver os problemas das federações desportivas. É que mesmo que o não pense, o que, em tese, se concede, não tem como fugir.

9 comentários:

Luís Leite disse...

A Administração Pública Desportiva não tem sequer uma ideia do valor relativo do Desporto português.
Tanto em quantidade como em qualidade.
Nem ao nível da média e alta competição federada, nem ao nível da prática desportiva informal.
Não são trabalhados os dados fornecidos pela União Europeia, pelas Federações nacionais e internacionais e outros disponíveis na Internet.
Não existem estudos comparados entre as diferentes realidades desportivas dos países europeus.
Os Governos portugueses fogem das comparações como o Diabo da Cruz.
Porque, como provei na sexta-feira passada, numa prelecção integrada no Seminário de Gestão de Desporto, em Silves, estamos mesmo na cauda da Europa, no grupo dos micro-estados, seja qual for a perspectiva de abordagem.
Não interessa sequer conhecer os dados comparativos e, quando é preciso, aldrabam-se, como por exemplo na Carta Desportiva Nacional.
Varre-se aquilo que se suspeita ser muito mau para debaixo do tapete.
Organizam-se galas e os responsáveis fazem uns discursos vazios mas politicamente correctos e tiram umas fotografias com os nossos (poucos mas bons) campeões mundiais e europeus, que são cada vez menos, com excepção dos portadores de deficiência.
É sobretudo interessante fazer Leis e Decretos-Lei que não adiantam nada ao que já existia.
Para mostrar trabalho.
Sem qualquer estratégia que não seja o recurso ao popularucho eleitoralismo e a uma pretensa massificação.
Quanto ao IDP e ao financiamento, há muitos anos que já nem há reuniões de negociação com as Federações.
Limitam-se a comunicar as decisões já tomadas.
Os Planos de Actividade e Orçamento das Federações nem são lidos.
São atribuídas as mesmas verbas do ano anterior, sem qualquer argumentação.
O resto é fogo de vista, a que muitas Federações aderem, por não encontrarem alternativas de financiamento suficientes.

Anónimo disse...

O facto de as verbas públicas para o desporto não provirem de impostos, mas dos jogos sociais, não altera um ponto fundamental: são dinheiros públicos. E são-no, porquanto o jogo é legalmente monopólio do Estado.

Não há qualquer diferença de regime entre o "dinheiro dos contribuintes" e o "dinheiro dos apostadores". Um e outro são receitas do Estado, estão sujeitos ao mesmo rigor de gestão e são igualmente sindicados pelo Tribunal de Contas.

Conceder uma verba global às federações desportivas, sem especificação parcelar das finalidades a que se destina, tem desde logo a "vantagem" de os beneficiários resolverem, por exemplo, gastar quantias desproporcionadas em despesas de administração, alocarem verbas generosas para pagamento de vencimentos dos titulares dos cargos sociais, negligenciarem o investimento no alto rendimento, não considerarem prioritário o combate à dopagem, etc...

O modelo de financiamento do Estado ao associativismo desportivo carece de revisão.

Mas não parece que ela deva passar pelos aspectos assinalados por JMC.

Luís Leite disse...

Sei que JM Constantino não costuma responder a anónimos.
Eu também não, pelo menos directamente.

Também não estou mandatado para responder por ele.
Mas não posso ficar calado.

Os anónimos não têm a dignidade de dizer quem são.
Têm medo de se assumir.
Alguns sabemos serem intocáveis "honoris causa" da Administração Pública.
Vivem de esquemas de sobrevivência, dependentes do tacho.
Não são independentes.

Mas não posso deixar muito claro que quem tem razão é JM Constantino.
O seu retrato da realidade é muito fiel.
Onde está a superioridade moral, de conhecimento e idoneidade desses senhores quando comparada com os órgãos sociais das Federações, para à partida porem em causa pessoas eleitas legitimamente?
Eu até admito que muitas Federações funcionem mal e existam abusos, mas será que funcionam pior e com menos abusos que o Governo ou o IDP?

A verdade é que o Desporto português, tal como quase tudo o resto, funciona globalmente mal, ou não estaríamos no fim da hierarquia europeia e cada vez pior, sendo ultrapassados por países com menos de metade da população portuguesa.

A culpa é de todos, uns mais que outros, mas certamente os de cima são os mais responsáveis.

Anónimo disse...

Pergunta-se José Manuel Constantino

Por que razão deve ser a administração pública a definir os montantes da parcela que cada entidade (federação desportiva) anualmente recebe para as suas diferentes actividades? Ou para o programa de preparação olímpica? Porque se não limita o Estado a definir o montante global sob a forma de percentagem do valor das verbas para o efeito consignadas? E a deixar a gestão desse recurso, a sua administração e divisão, que, repete-se, não são impostos dos portugueses, ao critério dos organismos representativos das entidades apoiadas? Por que se não limita, estabelecendo regras, a sindicar, no plano financeiro e fiscal, o modo da sua aplicação?

Tudo está em saber quais seriam os tais "organismos representativos das entidades apoiadas", uma vez que o que se está a discutir são os apoios às federações desportivas.

Seria o Comité Olímpico de Portugal, onde as federações olímpicas "pesam" o dobro das não-olímpicas? Onde há cooptação de dirigentes? Onde nem sequer lhe são aplicáveis as regras da "utilidade pública desportiva"? Será que as federações desportivas, sujeitas à upd, se veriam representadas por um organismo que não tem que obedecer a quaisquer regras (exceptuadas as muito genéricas normas gerais do direito de associação)?

Ou seria a Confederação do Desporto, na qual as federações de futebol, voleibol, corfebol ou petanca "valem" todas o mesmo?!

Quer isto dizer que, para que uma destas organizações (COP ou CDP) possa ser encarregada de gerir os dinheiros públicos (repartindo-os de entre as federações desportivas), seria previamente necessário que o Estado lhes estabelecesse regras de organização e funcionamento internos. À semelhança do que foi feito, por exemplo, em Itália com o Comité Olímpico Nacional Italiano, cujos estatutos são aprovados e alterados por decreto-lei.

Maria José Carvalho disse...

JMConstantino, permita-me acrescentar alguns números relativos às evidências burocráticas, legais e administrativo-financeiras que evoca:

- entre Janeiro e Abril de 2010, foram publicitados cerca de 70 (setenta) contratos-programa de desenvolvimento desportivo no Diário da República;

- Labor esse que quase triplica no quadrimestre seguinte, pois entre Maio e Agosto de 2010 são cerca de 200 (duzentos…!!!) os contratos celebrados entre o IDP, IP e as múltiplas federações desportivas.

Acrescento ainda,

Questionável, quanto a mim, e matéria a que poucos aludem, diz respeito, igualmente, ao facto da política pública de apoio ao desporto, na sua vertente de apoio financeiro ao associativismo desportivo, assentar quase exclusivamente na relação privilegiada entre a administração pública desportiva e as federações desportivas. Como bem sabemos as associações regionais/modalidade e os clubes desportivos na sua generalidade definham de dia para dia, mas este, bem sei, é assunto para contas de um outro rosário…

Cumprimentos portuenses.

Anónimo disse...

A avaliar pelos contratos-programa que são publicados no Diário da República, o financiamento público às diversas modalidades desportivas tem, em regra, por exclusivo interlocutor, a respectiva federação desportiva.

Parece muito correcta esta opção.

Se o Estado negociasse e atribuísse financiamentos directos a associações, clubes, etc..., estaria a escolher e privilegiar outras organizações no âmbito das diferentes modalidades desportivas, ao arrepio ou contra a respectiva federação desportiva.

A atribuição directa de financiamentos públicos a entidades sub-federativas é o mais eficaz e certeiro golpe desferido contra a autonomia do Movimento Associativo, reduzindo a respectiva federação a mero espectador e figurante.

Assim, deve ser a federação, em cada modalidade, a decidir, em exclusivo, se e como refinancia as entidades de si dependentes.

Fernando Tenreiro disse...

JM Constantino

Estes pensamentos são muito importantes e sugerem-me várias questões:

Primeiro
O instituto do desporto tem actualmente nos seus quadros ex-líderes e técnicos de elevada qualidade entre ex-directores-gerais, doutorados e mestrados que creio ultrapassam as duas dezenas.

Nunca o IDP teve tanto capital humano e científico desta valia.

Este aspecto é fundamental para compaginar o processo de desconcentração da agência estatal iniciado e referido por JM Constantino com a atribuição de novas funções ao associativismo.

Este está agarrado ao anterior modelo e está esmagado pelas relações jurídicas estabelecidas e pelos condicionamentos financeiros que atam a acção dos líderes associativos. Estes apenas se justificam num quadro de ineficiência como o vigente.

A referência da MJ Carvalho é fundamental para atacar um dos limites do quadro condicionante e facultar a resolução dos estrangulamentos da base, onde se deve accionar a desconcentração para o privado e a descentralização para o público. é importante que o IDP trabalhe não só com uma estrutura associativia desportiva rejuvenescida mas com uma estrutura técnica pública regional recriada.

A relação entre a qualidade humana do IDP e o assumir de novas funções pelo associativismo tem de ter uma liderança que não se descortina como surgirá.

A questão do anónimo entre o problema das duas instituições cop e cdp e da decisão de lhes dar vida através da acção legislativa do Estado / Governo pode ser uma solução mas que se pode também dizer que é a solução comum em Portugal e que nos mantém materialmente no último lugar europeu.

O direito é imprescindível, mas será este o novo Direito do Desporto?

A sugestão de JM Constantino de valorizar a acção de concepção de políticas desportivas no IDP é válida.


Segundo
Fui gozado neste blogue quando há tempos atrás (meses? anos?) sugeri que o IDP devia ter doutorados para apoiar a regulação pública do mercado do desporto.

Afinal a realidade demonstra que o IDP está mais próximo dessa meta e há quem insista nas suas ideias de sempre sem ater à realidade, marcando fortemente o desporto com a sua incapacidade de aceitar e valorizar as ideias do outro.

Enquanto esta situação se mantiver o desporto os resultados europeus dos atletas portugueses atrasar-se-ão.

Terceiro
Há um grande jornal que só publica artigos de opinião de desporto desde que estes matem alguém. Já matei vários 'alguém' e sei o que isso é. Se não matar não se publica.

Como se vê a situação do desporto é complexa porque a construção de uma ideia para o nosso desporto não se faz de arma na mão sob pena de se matar e não ter a nova ideia e o novo 'condenado' para lá colocar tudo permanece parado.

Quarto
É pela possibilidade de debate livre que permite, que o colectividade desportiva é decisivo para o futuro do desporto português.

Porque o colectividade desportiva apesar de parecer parado, como tanto se assevera que fazem as coisas, ele move-se.

Luís Leite disse...

O anónimo tem razão numa coisa:

Se as entidades representativas das Federações são o COP (que nem para gerir a Preparação Olímpica serve) e a CDP (que na prática já não existe e deixou de representar bastantes Federações importantes, que saíram), então é preferível que o IDP continue sem saber o que fazer com o dinheiro, incapaz de definir critérios, mas a distribuir sempre o mesmo da mesma maneira. Sem explicar porquê.
É tudo muito mau, mas antes muito mau que péssimo.

josé manuel constantino disse...

Ao Luís Leite, Maria José Carvalho e Fernando Tenreiro obrigado pelos vossos contributos. Estamos perante uma questão central do apoio do Estado ao movimento federativo e cuja abordagem é complexa. E que não é apenas o Estado por um lado e as federações de outro. São também protagonistas concretos de ambos os lados.Com as suas histórias pessoais, profissionais, politicas respectivas competências e práticas. Agravado por uma moral de comportamento que nem sempre é a mais recomendável para quem tem de gerir ou aplicar recursos públicos. Do lado de quem governa e do lado de quem é objecto de apoio. Mas este assunto não é aqui que cabe ser desenvolvido. Limitei-me a defender uma tese, que de resto não é original em termos de governação do desporto, mas consciente da sua dificuldade de aplicação e até da controvérsia que suscita.