Ontem, de bicicleta logo depois de atravessar a marginal, encontrei Isaltino Morais, Presidente da Câmara de Oeiras, que andava a ver as obras na estrada do complexo do Jamor e, logo, aproveitei o ensejo para trocar ideias sobre aquela estrada cujo desenho escapou, com pena minha, ao conceito "shared space". Nem um minuto tinha passado e já a estrada estava a ser definida como uma acessibilidade ao grande parque de lazer. Ora uma estrada não é um mero acesso a "coisa alguma" mas fundamentalmente um espaço de relação, ou então não!
A "acessibilidade" tal como está concebida segue a ideia da segregação, aquela que nos faz pensar que a estrada é para os carros do mesmo modo que o zoológico é para as feras. E tanto um espaço como o outro nos mostra como somos exemplares, leiam cómicos, porque quando damos a cada macaco o seu galho rapidamente prendemos girafas e elefantes em Sete Rios e, com idêntico júbilo, soltamos carros de corrida em savanas e desertos.
Ora o Jamor não é o deserto e bastava dar valor ao método para alterar toda a leitura daquela área fazendo, para o efeito, rebater passeios, alterar a textura e/ou a cor da estrada, colocar arbustos e outros canteiros que retiram linearidade e velocidade a todo o percurso. Assim, como está, é mais uma via rápida de união da A5 à Marginal. Assim, como fica, continua a exigir o gradeamento de cadeia em torno de todo o espaço, até para evitar que as crianças ganhem alguma autonomia face aos progenitores e, nestes, fazer vingar aquela espécie que grita aos filhos "não corras que transpiras". Assim, como será, a estrada terá o custo acrescido da vedação e, mais ainda, da sinalética de inibição à aceleração. Assim é, enfim, a estrada do progresso.
Progresso é o conceito de movimento através do qual se expressa toda a ética cinética do nosso tempo. E, no Jamor, cumpre-se a utopia cinética em todo o seu esplendor tendo, por um lado, os Centros de Alto Rendimento, áreas vedadas destinadas à guerra pacífica de rebentar recordes e, por outro lado, em seu redor, os espaços de baixo rendimento para dar curso ao movimento humano. Pelo meio, para todos, ficam as vias para carregar no pedal. E tanto o movimento dos atletas, até aqui deixado a treinadores e médicos desportivos, como o movimento das estradas, até aqui largado ao cuidado dos engenheiros, se revelam grandezas morais e sociais que questionam o tal progresso.
A ideia de progresso caiu na ratoeira motorizada e eis o movimento humano preso/pensado/medido a partir dos tubos dos gases - o de CO2 para o baixo rendimento e do VO2 para o alto rendimento. Todos estes tubos são iniciativas morais que, em boa consciência, se inventaram segundo a ética da razão iluminista. Há que entender o corpo, não como um dado divino mas, sim, como algo mais moldado à vontade humana, algo que uma vez treinado negue a sua própria natureza e, nas pistas ou nas estradas, não fique preso a limites. Com o tempo todo o movimento acelera, ganha vida própria e, na estrada, o corpo estoura não só os limites da velocidade como a sua integridade por inteiro contra uma árvore ou um candeeiro e, na pista, o atleta estica a moral e rebenta com a saúde corporal.
Todo o movimento é afinal prenhe de moralidade e, por isso, o espanto do Presidente da Câmara quando em frente dele parei, sem plano de fazer história, leiam reunião agendada, a querer refletir sobre o movimento, leiam sobre uma estrada tão arranjada. Ali estava uma mulher na sua bicicleta, como se tivesse voltado à infância, dupla aberração portanto, a opiniar sobre um assunto de homens, de especialistas, enfim! Ali mesmo naquela estrada nem o alto passeio a fez ver que se dirigia ao topo da hierarquia da decisão municipal e, tal é o mundo, tudo parecia uma derradeira democracia ou, mais corriqueira porque junto estava um tipo sempre a tirar fotografias, uma entrevista para um qualquer jornal.
Andar a pé e de bicicleta tem destes perigos, ficamos mais expostos ao contacto, à conversa informal, perdemos o título com que nos governamos e sentimos com mais intensidade o desmazelo e a desarrumação a que deixados os (des)governados fora do alcatrão. Fechado e servido por boas acessibilidades, o espaço do Jamor é, feitas as contas com a calculadora do progresso, como o de Sete Rios, um parque protegido ao qual chegam feras ao volante que, soltas e por via do baixo ou alto rendimento, durante um tempo amansam e renovam a energia. De volta a outros parques da vida, residenciais ou profissionais, já fechados no automóvel deixam de pensar no território e na sua geografia porque o que conta é o terreno mental percorrido, sem inter-relação e muitas vezes vivido como uma fantasia louca que coloca no volante as mãos e também a fúria da falta de beijos na boca. São estes últimos que naquela estrada muito apitam quebrando, noutros, o acto solidão em que envolvidos. Um susto! Sim, as acessibilidades metem medo mas as estradas que promovem inter-relação Não!
9 comentários:
O Isaltino faz parte daquela incontrolável praga de autarcas que não conhecem outra ideia de progresso que não seja o betão e o asfalto. O tipo não devia gerir nem uma despensa, quanto mais um concelho. Mas o povo gosta, o que é que se há de fazer. Quando me lembro desse mentecapto, o que me vem à cabeça é sempre isto:
http://3.bp.blogspot.com/--5QQmf0Ux3o/TdRbJPMAqRI/AAAAAAAAB5M/arWVwhDjyfg/s1600/_F6K2375.jpg
Aqui um belo tratado poético-filosófico sobre a urbanidade humana da energia cinática.
No entanto cara Ana, não creio que o 'shared space' pelo que li se adapte a Portugal. Somos socialmente demiasiado 'quentes' para compreender o civismo preconizado por esse sistema. Isso é típico de povos hiperbóreos.
No entanto concordo com a sua crítica ao planeamento do Jamor e na poética comparação entre as feras e os carros :)
Cumprimentos
E a conversa, como correu?
Quem concebeu o local, arquitecto ou engenheiro, nunca necessitou de entrar no edifício dos Esteiros da FMH que, com as fortificações agora erguidas no meio da estrada, agora obriga a que quem venha da A5 tenha de ir à Cruz Quebrada para, depois de inverter a marcha, voltar de novo à estrada e, finalmente, entrar na Faculdade. E, mais, o muro erguido no meio da estrada não deixa angulo de viragem necessário a veículos maiores, como é o caso da carrinha que leva as crianças ao ginásio, e agora é uma dificuldade sair dali para fora.
O conceito shared space é um paradigma que acarreta novos modos de olhar para o espaço e nele ver relações entre pessoas. O espaço social não é um organismo nem as estradas espaços fluídos de circulação. No organismo não há lutas de interesses entre órgãos e se hierarquia houver basta a greve do intestino para todo o corpo adoecer. Ao nível social, temos interesses distintos, somos governados por paradigmas que ora dominam ora se colocam em causa, o transito funciona com um gás e, positiva que sou, acredito que qualquer comunidade deseja que a estrada não seja olhada como o lobo mau da história. Será com diálogo/formação/encontros/divulgação que conseguiremos liberdade de acção para todos os Capuchinhos e também para as Avós - grupos vulneráveis das fábulas e, também, desta vida.
Raramente li tanto disparate em tão pouco tempo.
A autora tem alguma formação em urbanismo, planeamento urbano, conhecimentos na área das instalações desportivas ou vias de comunicação?
Ou será apenas uma jovem universitária das licenciaturas de 3 anos com o regabofe do Erasmus e inclinação para poesia delirante que aprendeu a andar de bicicleta (uma proeza desportiva notável)?
Inclino-me para esta quase certa probabilidade...
Luís Leite,
Mal estaríamos se a opinião sobre o espaço público (de todos) estivesse reservada aos iluminados profissionais da coisa. Ainda por cima quando olhamos em redor e só vemos asneiras atrás de asneiras nas últimas décadas pela mão dos profissionais que tanto confia. Esta estreita visão de democracia e participação, por parte de um arquiteto, pode explicar muita coisa - inclusive aquilo que todos nós temos que sofrer todos os dias com os arquitetos da sua geração.
Espero sinceramente que nada tenha a ver com a obra em causa, pois muito mal lhe ficaria um comentário sem uma declaração transparente de interesses. Fica a pergunta.
Raramente li tamanho disparate em tão curto comentário.
O autor pensa que, por ter formação em urbanismo, planeamento urbano, ou conhecimentos na área das instalações desportivas e vias de comunicação tem exclusividade de opinião.
E, o pior, é que não é apenas mais um jovem universitário das licenciaturas de 3 anos com o regabofe do Erasmus, e inclinação para poesia delirante que, por ter tido um recorde nacional de salto em altura de 2,05 metros (uma proeza desportiva notável? o do mundo são 2,43m!). Será mais um arquitonto, responsável por tantos mamarrachos deste e de outros países? Será mais um académico pretencioso? Será que é este exemplo de análise e raciocínio (ou ausência destes) que dá aos seus alunos?
Inclino-me para estas quase certas probabilidades... Ou, então, também me estou a precipitar, a emitir falsos juízos e a passar por pateta.
Penso que é devido desta mentalidade do "especialista", do "senhor engenheiro", do "senhor doutor", bem patente no comentário do Luís Leite, que no nosso país temos uma participação tão fraca da sociedade civil na discussão das obras públicas. As coisas fazem-se e ninguém diz nada, ninguém tem opinião, ninguém é consultado. Só no fim é que percebemos que foram mal feitas.
Uma obra pública (uma estrada, um acesso) deve servir os interesses de todos. É por isso que se chama "pública". Mais, uma estrada recente deve ser feita de modo a incentivar a utilização da bicicleta ou do andar a pé, em particular se essa estrada vai dar a um estádio. Isto parece-me claro.
Caro Luís Leite, no seu comentário limitou-se a escrever um conjunto de insinuações sobre a autora do post (uma pessoa que nem sequer conhece). Na sua opinião, o que está no post é um monte de disparates, mas não justificou. Não quer apresentar alguns argumentos válidos para defender aquilo que pensa? É que mandar uma "boca" e depois fugir... isso sim, isso é coisa de "jovem universitário das licenciaturas de 3 anos com o regabofe do Erasmus".
Seria interessante discutir o ponto de vista que está por trás do seu comentário.
Cumprimentos.
Um dos obstáculos à mudança não é a falta de informação mas, antes, ter dificuldade em seleccionar e, sobretudo, LER!
Junto aqui o link sobre Cities for People do arquitecto Jan Gehl:
http://dirt.asla.org/2011/04/13/interview-with-jan-gehl/
Para quem não sabe inglês têm também um texto de um engenheiro português sobre estas mesmas ideias:
http://blogplanoc.blogspot.com/2011/05/um-excelente-artigo-sobre-mobilidade.html
E, resumindo, seria uma chatice assistir em Oeiras a uma mudança como aqui é contada: http://www.youtube.com/watch?v=2HCo5dO1Cg0
E, pasme-se, que horror seria pensar/planear/executar acessibilidades para chegar de bicicleta à área de lazer do Estádio Nacional! Não lembra ao Diabo! Pois não!
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