quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Reflectindo

Na altura escrevi. Hoje repito: este é (mais) um notável texto do João Paulo de Almeida. E, com o devido respeito a todos, de leitura obrigatória. Porque desafia a quietude intelectual em torno do que é o desporto e dos valores que lhe estão associados. Porque revela uma sensibilidade pouco comum para o que se está a passar em torno das práticas do desporto e, por arrastamento, das políticas públicas E ainda porque coloca questões para as quais não há respostas fáceis.
Curiosamente, na mesma semana, António Guerreiro na Actual (suplemento cultural do Expresso) abordava a questão da arte contemporânea a partir da polémica Pacheco Pereira/Pinto Ribeiro. O que existe de comum entre dois âmbitos aparentemente tão distantes?
A arte contemporânea desenvolveu-se a partir da destruição do paradigma valorativo estética/razão. A partir do momento em que tudo é arte a mensagem nela contida carece de um exercício reflexivo. A obra não consegue explicar-se por si própria.E fica por saber se é ou não arte.
O desporto quando abandonou a competição e baixou à simples actividade física destruiu o paradigma em que se construiu. E fê-lo qual tsunami. Não percebendo o que se estava a passar nas sociedades contemporâneas - medicalização da vida, sedentarismo, comercialização da prevenção para a doença - defendeu-se da pior maneira .Não separando o que lhe era próprio - a passagem do modelo formal de desporto para modelos plurais - com o que lhe era estranho: a higienização dos comportamentos por via das práticas desportivas. E agora tudo o que mexe é desporto. Ou pelo menos não lhe é estranho. E crescentemente se dá mais atenção à agitação física - que é simples e supostamente ao alcance de cada um - do que à promoção do desporto, que é complexa e exige ensino, organização, persistência, treino e competição. E não tem resultados imediatos.
O predomínio do carácter utilitário e individualista da actividade física que se abrigou á sombra do desporto é um dos factores, não o único, que está a contribuir para o declínio do carácter lúdico e gregário das práticas desportivas com reflexos na dinâmica das práticas federativas. A solução encontrada tem sido a de alargar o próprio conceito de desporto e a de incorporar novas praticas e novos modos de organização e deste modo acompanhar a onda. E sobretudo contrariar a tendência decrescente das filiações federativas através da “abertura” a outro tipo de praticantes. A prazo ou esta tendência é limitada por uma reflexão, que reconheço não ser fácil, sobre os limites do desporto ou assistir-se-á a uma desvitalização progressiva do desporto que herdámos do século passado.
Aquilo que está a ocorrer desenhou-se a partir das escolas de formação superior. Quando em Portugal assistimos, por parte da mais antiga escola de formação de quadros superiores em desporto da mudança nome para “faculdade de motricidade humana”não tínhamos perante nós uma simples actualização de uma designação. Mas uma verdadeira alteração de paradigma. Replicando o que se estava a passar em outras paragens. E subalternizando o desporto a outras área capazes de dar maior certificação científica. Umas afins e outras completamente alheias.
As organizações desportivas, com as federações desportivas internacionais à cabeça, hibernaram e não tiveram tempo, nem paciência, para reflectir sobre o que se estava(e está) a passar no universo das práticas que dirigem. E deviam ser as primeiras a fazê-lo. Transformaram-se em agências de viagens. A obsessão pela internacionalização e pelo aumento dos quadros competitivos internacionais trouxe mais problemas ao desporto que a globalização. E introduziram crescentes factores de desregulação e desequilíbrio - financeiro e organizacional - nos sistemas desportivos.
As autoridades europeias vagueiam, perdidas em cimeiras rotineiras e em declarações de princípio onde abundam os lugares comuns. Ignoram e parecem não perceber o que se está a ocorrer. Restam as franjas de alguma produção académica e de alguma reflexão solitária. Pouco para tamanha empresa.

2 comentários:

Luís Leite disse...

O período pós-moderno 2 (a sociedade da informação pós- industrial) que sucedeu ao período pós-moderno 1 (último quartel do séc. XX), não é mais do que a continuação e expansão massificados do crédito ao consumo e da vida fácil resultante do aumento do nível de vida e do processo de industrialização do pós-guerra (anos 50, 60 e 70).
A generalização na Europa e nos Estados Unidos do Estado Social e do "Welfare" conduziram a uma decadência civilizacional ideologicamente social-democrata, ou seja, ainda de esquerda, provavelmente inesperada, que se materializa na hiper-valorização dos direitos e na desvalorização dos deveres sociais.
Uma ideologia supostamente "boa" à partida, que num contexto de globalização económica e cultural, redundou em "imoral".
A massificação, idealmente uma ideia utópica, peregrina e tendencialmente igualitária, acabou se materializar num absurdo nivelamento por baixo de tal forma generalizado, que hoje em dia já ninguém sabe classificar, avaliar, distinguir seja o que for.
O absurdo está em meter no mesmo saco, sem se ter a noção das consequências, o mérito e o demérito, o esforço e a preguiça, a ética e o vale-tudo.

Neste contexto, conceitos como "generalização da prática desportiva" e "desporto de massas" são órfãos de racionalidade.
As pessoas deixaram de se questionar e defendem ideias confusas mas politicamente correctas.

JM Constantino: você apercebeu-se de tudo isto e, mesmo com um discurso diferente, menos radical, aproxima-se cada vez mais das minhas ideias, o que obviamente muito me agrada, dada consideração intelectual que tenho por si.

Luís Leite disse...

O período pós-moderno 2 está agora a chegar ao fim. O "post-modern" durou 35 anos, bem menos que o "modern" e ainda bem, porque se criou um mundo falso de ilusões.

Não sabemos o que está para vir.
Sabemos que este modelo social-democrata de feição esquerdista, em que a riqueza é redestribuida de forma libertária e descontrolada, não tem viabilidade financeira nos países pobres e naqueles que, integrados em continentes industrializados, são vítimas da globalização.

O paradigma tem que mudar.
No quadro dos Partidos com assento parlamentar, a esperança está perdida, já que representam ideologias ultrapassadas e/ou interesses de grupos económicos e corporativos de classe.

Numa sociedade que se quer sem classes (vide a Constituição), as diferenças entre ricos e pobres têm vindo a aumentar, o que é um paradoxo.

O Estado Social está condenado. Foi uma utopia (primeiro marxista, depois social-democrata), que se revelou inviável, um luxo para países ricos e muito civilizados, não para nós.

Por cá, o sistema faliu e ficou uma dívida impagável.

Tudo vai ter que ser repensado e não adianta fazer citações de autores que tiveram a sua época.

A massificação gratuita de todos os "direitos" deixou de fazer sentido. Se é que alguma vez fez.

Daqui para a frente, quem pensar ou falar em direitos tem que pensar duas vezes mais em deveres.

Não haverá mais almoços grátis.
Não será possível esperar do Estado mais do que a garantia do essencial daquilo que ele tem que cumprir, em doses muito controladas.

Neste quadro, não adianta esperar muito de nada.
Só uma forte liberalização política, associada a mecanismos de controlo ético e moral muito efectivos, que enfrente com verdade e sem subterfúgios o mundo em que vivemos poderá ter futuro e já não será para estas gerações.

As utopias marxistas e social-democratas já foram.

Voltará o primado do esforço abnegado e da valorização do mérito.

Também no Desporto.