domingo, 7 de novembro de 2010

O país das meias-maratonas

Um novo texto de Luís Leite.

A meia-maratona é uma disciplina do Atletismo não olímpica (21.098m em estrada), relativamente recente, que não integra as grandes competições internacionais, com excepção de um pseudo-Campeonato do Mundo que está em vias de extinção, já que não tem relevância e conta com a presença de poucos países.
A meia-maratona “não é peixe nem é carne”, ou seja, é demasiado curta para servir como preparação para a Maratona e demasiado longa para beneficiar os corredores das distâncias olímpicas em pista.

Em meados dos anos 70, com a democratização da corrida que se seguiu ao 25 de Abril, descobriu-se em Portugal uma disciplina do Atletismo sem qualquer relevância internacional: a meia-maratona.
A primeira meia-maratona realizada em Portugal e portanto a mais antiga, é a da Nazaré, que se iniciou em 1975, ainda com a presença de muito poucos atletas. O número foi aumentando progressivamente.

Com o andar dos tempos, os municípios (primeiro) e alguns empresários e os sucessivos Governos (depois), começaram a descobrir a grande virtude desta disciplina: realizando-se na via pública dentro das localidades e podendo juntar milhares de “atletas”, tem uma visibilidade local impossível de conseguir em qualquer outra iniciativa desportiva extra-futebol, com a vantagem de se poder desenrolar em ambiente de festa.
É a manifestação ideal e “politicamente correcta” do “desporto de massas”, promovida e apoiada pelos eleitos, sempre presentes na entrega de prémios.

Não é de estranhar que, nas últimas décadas, as meias-maratonas tenham proliferado um pouco por todo o país, concorrendo entre si pelas melhores datas e distribuindo prémios suficientemente atractivos para os melhores, em função da sua importância.
Actualmente quase não há município que não tenha a sua meia-maratona, até porque seria uma vergonha não a ter. São muitíssimas dezenas por ano, nem se sabe bem quantas.

A meia-maratona não é bem Atletismo. É “meio-atletismo”.
É o local de encontro privilegiado daqueles que correm devagar mas correm todos os dias. E nesse aspecto tem um interesse relativo, mas inegável. Como qualquer outra prática desportiva.
Mas a meia-maratona está a dar cabo do meio-fundo/fundo nacional.
Para poderem acautelar o seu futuro, os melhores fundistas nacionais correm todo o ano atrás de prémios monetários que não encontram em mais lado nenhum.
Assim, exageram na quantidade de provas de estrada que vão correndo e não têm tempo para treinar o ritmo para as provas de pista, que se adquire na pista, nem para treinar a “endurance” com o ritmo adequado para as provas de Maratona.
Com isto, os rankings nacionais de 5000m, 10000m e Maratona têm vindo a piorar ano após ano e Portugal, que era um dos mais fortes países europeus do meio-fundo nas décadas de 80 e 90, hoje só consegue manter alguns (poucos) atletas de topo europeu por via das bolsas olímpicas que, de algum modo, compensam a perda de prémios em meias-maratonas.

Outro aspecto extremamente negativo é a relativização do sucesso desportivo pela qualidade do esforço, quando se atribuem medalhas (e T-shirts) a todos os participantes e pagantes, mesmo àqueles que foram a andar devagarinho e não chegaram ao fim.
É o nivelamento por baixo e a banalização do mérito desportivo.
Ultimamente, adicionaram-se aos programas de festas as “mini-maratonas” e as “caminhadas”, manifestações populistas de encontro social pontual, sem qualquer vantagem real para cidadãos que, maioritariamente, não praticam desporto e fariam a “festa” de outra forma qualquer.
É o desporto a fingir mas muito visível, que tanto agrada aos políticos.

Nalguns casos mais conhecidos e que metem pontes lisboetas, estas “meias, minis e caminhadas” são fortemente patrocinadas (às centenas de milhar de euros) pelas empresas públicas que não gastam um cêntimo com o verdadeiro Atletismo.
Mas gastam-no com dezenas de quenianos e etíopes que vêm cá fazer a corrida deles, sozinhos, sem qualquer vantagem competitiva para os atletas nacionais.
Para dar na TV pública em directo.

Porque sabem que assim agradam mais ao Poder que, através do chefe, também finge que corre.
É porreiro, pá!
Eu não concordo e sou contra as meias-maratonas. E sou a favor do atletismo a sério.
Para que conste.



18 comentários:

Anónimo disse...

Ah! Tigre!!!

Assim é que é! Mais nada!

fernando tenreiro disse...

Talvez fosse bom o Luis Leite elucidar-nos se o que é que se passa nos outros países europeus é o mesmo que em Portugal ou se nos outros países europeus existe outro modelo de competições de atletismo e qual é esse modelo.

Se tiver vários modelos europeus dizer sucintamente quais as vantagens e inconvenientes de cada um.

Luís Leite disse...

O "Tigre" responde com gosto ao F. Tenreiro:

Praticamente todos os países europeus fazem questão de manter um ou mais grandes meetings internacionais de pista, alguns já com grande tradição, pelos menos nas suas capitais.
Muitos deles têm vários meetings anuais, cujo orçamento, conforme a importância do evento, oscila entre 500.000 e 15 milhões de euros.
Além disso, também têm, pelo menos, uma grande maratona, com orçamentos semelhantes.
As meias-maratonas, em todos esses países, são irrelevantes. Existem, mas não lhes é dada grande importância.

Em Portugal não temos, há muitos anos, um único meeting internacional de pista nem do nível mais baixo, que ronda os 100.000 euros de orçamento.
Também não temos, nem nunca tivemos, uma maratona com qualquer relevância internacional.

Em contrapartida, temos duas das mais badaladas meias-maratonas do mundo, feitas para quenianos e etíopes, onde se gastam muitas centenas de milhar de euros de dinheiro dos contribuintes, só para encher o olho, fazer festa, fazer negócio com dinheiros públicos e dar protagonismo a políticos instalados.
Sem qualquer interesse competitivo para os melhores fundistas portugueses, muitos deles obrigados a participar pelo (seu)clube organizador, prejudicando as suas carreiras.
Nestes mega-eventos misturam-se "mini-maratonas" e "caminhadas" para fingir que se faz desporto e para disfarçar a negociata.

O nosso modelo está errado e prejudica seriamente o Atletismo português, que não encontra patrocinadores para aquilo que verdadeiramente interessa:
Dar competição útil aos nossos melhores atletas em Portugal.

Obrigado por ter levantado as questões.

fernando tenreiro disse...

Há alguns anos o Mississipi o maior rio da América do Norte estava a ficar sem água na foz e o presidente da altura não sei se o Reagan se o Bush pai disseram que tinham de responder ao interesse das populações maiores que usavam o rio.

Ele referia-se às cidades instaladas no deserto como Las Vegas que tinham consumo absurdos de água doce.

Luís Leite é importante que as federações olhem para as tendências do consumo e da moda das populações sob pena de lhes acontecer o mesmo que a patinagem que tendo perdido o comboio da patinagem em linha deixou de ir aos Jogos Olímpicos.

Hoje a patinagem tem uma expressão regional e não global que teria se tivesse evoluido tecnicamente acompanhando a nova procura e permanecido nos Jogos Olímpicos.

O atletismo e as federações desportivas portuguesas necessitam de estudos vários para compreender o que se passa e poderem maximizar o seu output para benefício e no interesse da população.

As suas ideias podem ser aspectos interessantes dessa análise que parece inexistir.

josé manuel constantino disse...

O texto do Luís Leite é muito interessante.É obvio que na vizinhança do atletismo nasceram há cerca de três décadas fenómenos novos de que o mais significativo são as chamadas “corridas de estrada”.Um antigo professor amante do atletismo clássico chama-lhes “pedestrianismo”.Têm o seu calendário ,promotores e organizações internacionais à margem das instituições tradicionaise mutio dinheiro. Independentemente da opinião que cada um tenha do fenómeno o certo é que houve federações internacionais, -golfe,futebol ,voleibol que me ocorra-que souberam lidar com este tipo de fenómenos alternativos e a federação internacional de atletismo aparentemente não o soube fazer. Mas admito que me escapem aspectos do problema e que esta minha opinião esteja prejudicada por esse facto.

Luís Leite disse...

Talvez não me tenha explicado suficientemente:

Independentemente de todas as festas e manifestações de rua politicamente correctas que se organizem com corridas pedestres, o caso concreto das meias maratonas é maligno para o Atletismo, já que prejudica a preparação e o desempenho dos atletas de alto rendimento.

Por outro lado, tem tido como resultado, mais que confirmado através da estatística nas últimas duas décadas, uma forte regressão nos rankings nacionais de 5000m, 10000m e maratona, que estão em vias de extinção, tanto no sector masculino como feminino.

Estes são os factos.
Estes são os argumentos.

O pretendido aumento da prática desportiva informal não deve pôr em causa o desporto de competição federado.
Sob pena de estarmos a nivelar por baixo cada vez mais.
Ao misturarmos universos diferentes, podemos pôr em risco a excelência. E isso é nivelar por baixo. É o que está a acontecer.

Por isso defendo a separação das águas.

Vocês acham interessante a prática do pedestrianismo massificado e das caminhadas mas não se preocupam com a crise do Atletismo português nos 400m, no salto em altura, no lançamento do dardo, no meio-fundo ou nas provas combinadas. Porquê? Por que razão a masssificação não há de passar também por essas especialidades?

Eu respondo. Porque aqui o que interessa é mostrar milhares de pessoas a fazerem um desporto que não é exigente. Que não implica esforço e empenho. Um desporto a fingir.
Num país cada vez mais a fingir.

josé manuel constantino disse...

"Vocês acham interessante a prática do pedestrianismo massificado e das caminhadas mas não se preocupam com a crise do Atletismo português nos 400m, no salto em altura, no lançamento do dardo, no meio-fundo ou nas provas combinadas. Porquê? Por que razão a masssificação não há de passar também por essas especialidades? (Diz o Luís Leite)".

Percebo a questão mas não a coloquei. Entendo que a generalização da prática não é incompatível com a elevação da qualidade. Percebo que uma lógica de corrida em estrada fortemente atractiva para os atletas em termos financeiros prejudique uma preparação para as corridas longas em pista onde esse tipo de incentivos está ausente. O que faz um saltador ou um corredor de meio-fundo apostar fortemente no circuito dos meetings internacionais de pista? A resposta pode estar por aqui. O que disse e reafirmo é que as autoridades mundiais da modalidade deverão encontrar um equilíbrio distinto entre realidades novas e que pedem respostas diferentes. E completamente de acordo de que “o pretendido aumento da prática desportiva informal não deve pôr em causa o desporto de competição federado”.E acrescento mais: se põe, é porque alguma coisa está mal

Luís Leite disse...

Escreve JM Constantino:

"Entendo que a generalização da prática não é incompatível com a elevação da qualidade."

O cerne da questão é saber o que é isso da "generalização da prática".
Será um ideal filosófico?
E como ideal filosófico, será legítimo?
Será um dogma político de raiz socialista?

As pessoas fazem desporto porque gostam, porque querem, e da maneira que querem.
Ou então não fazem porque não gostam e/ou não querem.
Como tudo o resto na vida, com excepção das necessidades vitais.
E há também o factor "mercado": a importância do dinheiro.

Por que será que este socialismo dito democrático (igual a Social-Democracia) quer tanto uma "generalização" que nem os comunistas impunham?

Na URSS e na RDA o que se fazia era uma super-eficaz prospecção de talentos, que depois eram deportados para campos de concentração desportiva, onde eram preparados, sem liberdade de escolha, para ganhar medalhas olímpicas.

Generalização/imposição não, obrigado.

Finalmente: a generalização da prática (um ideal) pode muito bem nada ter a ver com elevação de qualidade.
São recipientes distintos que podem ou não ter vasos comunicantes.

Obrigado pelos comentários que me fazem pensar.

João Almeida disse...

Caro Luis Leite

Felicito-o por trazer este tema, bem premente para quem opera na realidade municipal, à liça.

O facto deste tipo de eventos agradar aos políticos não é um mal em si mesmo. Trata-se afinal de um meio promocional e festivaleiro, entre muitos outros, com bom retorno mediático. Não é por acaso que muitas destas provas se realizam em datas comemorativas.

O problema situa-se quando técnicos e dirigentes - ao nível da política desportiva municipal e também do atletismo nacional e regional - pretendem sustentar todo o desenvolvimento da modalidade apenas neste tipo de provas, comprometendo seriamente o futuro da modalidade.

Se olharmos para a oferta de competições de atletismo na Área Metropolitana de Lisboa e atendermos à evolução de provas de estrada em relação às competições de pista os indicadores, como saberá melhor do que eu, são preocupantes.

Concelhos há onde nem uma prova de pista se inclui no âmbito dos projectos municipais de desenvolvimento de atletismo. E tal não se deve à falta de pistas, como por vezes se faz crer.

É importante que se diga claramente que esta situação foi, e continua a ser, fomentada por diversas pessoas com responsabilidades no atletismo português.

E, por último, pretender aumentar a prática informal através deste tipo de realizações é um exercício semelhante a apanhar moscas com talheres de gastronomia chinesa.

Urge desmontar toda esta falácia na qual se despendem somas consideráveis de dinheiros públicos na contratação de atletas africanos, num regime de agenciamento pouco transparente que, em várias situações, fazem corar muitos agentes do futebol. Ou, no caso de provas de âmbito local, alimentam a cegueira de muita gente em torno de prémios individuais e colectivos, sem o menor pudor em recorrer a comportamentos tudo menos desportivos.

Luís Leite disse...

Caro João Almeida

Obrigado pelo seu comentário, que considero complementar ao meu texto, aos meus argumentos.

Este pendor festivaleiro e populista dos municípios, promove práticas desportivas a fingir e esbanja recursos financeiros, que deviam ser gastos de outras formas mais úteis.

No caso do Atletismo, que como sabe conheço muito bem, muitos municípios mandaram fazer pistas de atletismo que foram aprovadas e financiadas sem qualquer conhecimento técnico e critério que não acunha ou favor partidário, pelo IDP e QCA, não respeitando o aconselhamento técnico da Federação, dado directamente por mim, durante 7 anos.

Foram, na maioria, investimentos disparatados, já que ou não puderam ser homologados por terem erros de concepção ou construção, ou não adquiriram o indispensável apetrechamento, ou adquiriram-no em excesso, ou nunca tiveram cuidados de manutenção, etc.

90% das cerca de 80 pistas de 400m que existem em Portugal estão degradadas ou muito degradadas, sem remissão, não se podendo lá realizar treinos e muito menos competições.

Por outro lado, os autarcas rapidamente se aperceberam de que não há público para o Atletismo em pista e salvo raríssimas e honrosas excepções, nunca investiram na contratação de treinadores nem em escolas de Atletismo.
Limitam-se a dar algum (pouco) dinheiro aos clubes e gastam o grosso dos recursos financeiros em iniciativas festivaleiras pedestrianistas, com música pimba ensurdecedora. E contratam quenianos.

No fundo tudo isto é um espelho do país real, atrasado, piroso e corrupto, que pouco tem a ver com a Europa civilizada.

josé manuel constantino disse...

Pergunta o Luís Leite:O cerne da questão é saber o que é isso da "generalização da prática".

Respondo: Generalização da prática desportiva é a criação de condições que permitam o aumento daqueles que praticam desporto. O acesso à prática do desporto é livre, salvo naturalmente no sistema de ensino onde é obrigatório sobre a designação de educação física. Tenho dificuldades em encontrar um marcador político especial. É a um objectivo transversal a todas as ideologias politicas da direita á esquerda.
O problema do “físico” ou na linguagem pos-moderna da alfabetização corporal-desportiva pode ser inscrita de facto num ideal filosófico como de resto o foi na antiga cultura grega. Trata-se de optimizar as capacidades orgânicas-funcionais em torno de um código de praticas que civilizacionalmente se designam por desporto. E que permitem comparar, avaliar e classificar os rendimentos corporais.
Não creio que “ a generalização da prática desportiva”seja um dogma político de raiz socialista.É- o tanto como o direito á educação ou à cultura. De resto o conceito de “generalização” não é comum na narrativa socialista/comunista. É substituído pelo conceito de “massificação”.E o “desporto para todos”que tem uma origem liberal/social-democrata tem na linguagem comunista a de “desporto de massas.”Embora todo o pensamento ocidental e a generalidade da doutrina politica, qualquer que ela seja não possa prescindir do pensamento e da doutrina socialistas. O que explica porventura que na generalidade das grandes universidades o pensamento marxista seja um elemento imprescindível de estudo e reflexão. Em Portugal ,de resto, os trabalhos intelectualmente mais estimulantes no plano de desenvolvimento desportivo tiveram como autores pessoas a quem o marxismo influenciou(Jorge Crespo, Noronha Feio ,Melo de Carvalho, António Sousa Santos, etc.)
Efectivamente a generalização da prática desportiva não desencadeia por si só uma elevação da qualidade. Cria apenas condições mais favoráveis para que ela ocorra ao aumentar a base de recrutamento dos praticantes.

Grato .

Luís Leite disse...

Caro JM Constantino:

Concordo que o conceito de "generalização" seja hoje mais social-democrata (ou socialista de gaveta) do que marxista-leninista.
Mas é só porque este último modelo já não existe.
Mas em Portugal, desde o 25 de Abril e começando com o Prof. Melo de Carvalho, a tendência sempre foi (e está ainda plasmada na Constituição) para uma certa compulsividade naquilo que se entende por direitos.
Alguns Estados europeus que hoje ainda giram à volta de uma social-democracia pouco liberal, têm considerado que um "direito" é um acesso livre e grátis a determinadas práticas que consideram socialmente "inclusivas" e formativas.
É assim com o direito à Educação, à Saúde, ao Desporto e à Cultura.
Para tal, são impostos modelos políticos únicos, considerados ideais e politicamente correctos.
Aqui não funciona qualquer tendência liberal.
Há uma imposição, no mínimo, de ideias-chave.
Na Educação (que devia ser Instrução), a generalização do acesso deu origem à denominada "Escola de massas", que é um dos maiores equívocos da democracia, já que o que se fez foi, progressivamente, nivelar por baixo cada vez mais.
Esquecendo o esforço, a responsabilidade e o mérito.
O próprio conceito de Educação mudou de paradigma.
Passou-se da transmissão de valores morais e éticos familiares para um vazio de regras que existem mas que não têm que ser cumpridas.
Um desastre cujas consequências no presente e no futuro ainda estão por avaliar.
Nas outras áreas (saúde, desporto, etc.) a colagem ao conceito de de "direito" é mais um equívoco.
Confunde-se aquilo que são obrigações sociais mínimas do Estado com "direitos" que têm um significado vazio...
O "direito à saúde" e o "direito ao desporto" ou o "direito à cultura" são ideias vazias de conteúdo e que na prática não têm necessariamente aplicabilidade.
O que significa mesmo "ter" esses direitos?
As pessoas obviamente querem ter saúde. Muitas delas não têm...
De que lhes vale o "direito"?
Já em relação ao desporto para quê o "direito" se ele é tão óbvio? Quem quer faz desporto, quem não quer não faz.
Quanto à cultura nem se fala... A existência do direito não alterou nada.
Continuamos com 60% de analfabetos funcionais, incultos, que já nem têm um referencial cultural regional mas suburbano.
Porque não o "direito ao descanso"?
Ou o "direito a rir"?
O que irrita na linguagem politicamente correcta é a demagogia inútil do modo como os temas são abordados.

Obrigado, mais uma vez por me fazer pensar.

Fernando Tenreiro disse...

Economicamente o que vejo é que é útil o aumento do consumo desportivo do atletismo seja de que forma for. Passa a haver mais potenciais consumidores para outras actividades da modalidade mesmo que alguns consumidores / praticantes se voltem depois para outras actividades.

Este benefício do consumo do atletismo não choca com a afirmação do Luís Leite da degradação dos rankings e do alto rendimento do atletismo. A ser verdade este cenario do Luís Leite a falha de produção no alto rendimento do atletismo deve ser analisado tanto na falha da actuação dos agentes privados, como dos públicos.

Acho que antes de minimizar as provas amadoras e as comerciais deve-se fazer a análise cabal das condições da produção desportiva do alto rendimento que não se faz e é impossível de fazer enquanto o orçamento do desporto continuar a diminuir ano após ano.

Por exemplo, surgem novas actividades como o automobilismo e o karting que por si só e num ano recebem milhões de euros para eventos com atletas estrangeiros na sua maioria.

O automobilismo e o karting deveriam ser financiados pela industria automóvel e pelo turismo mas parece que os agentes públicos tiram dinheiro ao alto rendimento para dar para a terceiros.

Alguém tem de apertar o cinto. Uma delas é a investigação para acompanhar a competitidade desportiva europeia, a outra é o trabalho com atletas e treinadores.

Para agir simultaneamente do informal ao formal e dentro deste com impactos positivos na recreação e no alto rendimento é necessário ter instituições desportivas boas: leis, líderes, organizações, programas, incentivos, incentivos, auditorias e 'polícias'...

Só com boas instituições se fazem e consomem boas pizzas margueritas.

As boas instituições conseguem encontrar soluções melhores do que as más instituições e essa é a solução que talvez resolva as diferentes contradições aqui colocadas por todos.

Luís Leite disse...

F. Tenreiro:

O que é que você entende por "aumento do consumo desportivo do atletismo"?

Se você tiver na FPA 12 mil filiados e de um ano para outro passar para 15 mil filiados à custa dos que correm devagarinho ou fazem caminhadas e entretanto perceber que os que efectivamente fazem atletismo são
5 mil e já foram 7 mil, o que adianta este "sucesso" fingido?

Andar a pé ou fazer "jogging" não é Atletismo.
Seria o mesmo que considerar que correr os 100m em 30 segundos ou saltar 40cm em altura é Atletismo.
Não é!

Basearmo-nos em estatísticas destas é um logro, que serve para atingir determinados objectivos.
Em França e vários países europeus, para um atleta se filiar tem que fazer mínimos. Ou então não é considerado atleta nem se pode federar. Quando muito será um praticante básico de desporto informal (PBDI).

É como na "Educação": de que nos adianta ter amanhã 80% de licenciados se forem analfabetos funcionais, como se pode verificar no concurso do Malato?

Insisto: não devemos misturar as coisas porque só vamos nivelar por baixo. Foi assim que chegámos ao estado em que estamos na Europa e em Portugal (ainda mais): falta de exigência, hiper-facilitismo!

Será que ninguém me compreende?
Vamos continuar a fingir com a idealista, utópica e virtual "generalização da prática desportiva"?

Fernando Tenreiro disse...

Luís Leite

O atletismo é um bem que é composto por vários segmentos, para simplificar apenas dois: recreação e elite.

Isto significa que os dois devem ser considerados em complementaridade e as suas coincidências ou contradições devem ser resolvidas a contento dos dois visando o melhor máximo, salvo a redundancia, para o atletismo nacional.

Os seus argumentos porém indicam-me que está a sugerir problemas da organização da elite e que os problemas do recreio são uma distração.

Se o que diz é verdade então há desafios e contradições no âmago da elite a resolver no atletismo português.

Pode acontecer que nem seja a federação e os seus oficiais a definir exactamente o que o atletismo é, mas que tenham em mão uma definição aberta e sensível ao respirar do consumo social de atletismo de recreio em Portugal.

Não estou a misturar acho que o atletismo ao colocar a elite coontra a recreação está a misturá-los.

O atletismo deve antes concentrar a sua análise no que é a elite e o que está a falhar a este nível.

Há espaço aqui para a melhoria da regulação da federação e para a melhoria da regulação do Estado.

São níveis de intervenção distintos e que bem ponderados podem gerar oportunidades em vez de eliminar desenvolvimentos sociais e económicos significativos para bem do atletismo português.

As suas dúvidas parecem-me pertinentes e justificarem um trabalho de maior fôlego porque as respostas não estarão imediatamente disponíveis.

Luís Leite disse...

F. Tenreiro

Começando pelo fim:
você escreve "as suas dúvidas parecem-me pertinentes" etc.

Acontece que eu não tenho dúvidas. Tenho certezas. Você é que diz que eu tenho dúvidas.

Continuando:

O Atletismo não é propriamente um "bem". É uma "modalidade desportiva" que, como já aqui referi mais que uma vez, tem regras específicas próprias, enunciadas e reguladas pela IAAF e gerida pelas Federações Nacionais, por delegação da IAAF.

Como todas as modalidades, pode fazer bem, assim-assim, mal ou muito mal. Depende de muitos factores. Exige enquadramento técnico, sob pena de ser perigosa para saúde.

A alta-competição faz mais mal que bem (garanto-lhe), só que pode dar a ganhar muito dinheiro a quem a pratica como profissional.

Em lado nenhum está escrito que o Atletismo é composto por vários segmentos.
O que existem são disciplinas especializadas que se integram em sectores diferenciados (Velocidade, Meio-Fundo, Fundo, Barreiras, Saltos, Lançamentos, Provas Combinadas e Marcha Atlética).

A "recreação" não faz parte do Atletismo.
A recreação é aceitável enquanto primeiro contacto para crianças muito jovens (não federadas) tomarem contacto com os rudimentos da modalidade, que internacionalmente são materializados em actividades designadas "Kids Athletics", um programa pré-atletismo lançado pela IAAF em todo o mundo.

"Recreação" é "brincadeira" e nem exige o cumprimento de quaisquer regras.

Para além disso, vamos ver se nos entendemos:

Jogar pingue-pongue não é jogar "Ténis de mesa".
Jogar à bola no beco com umas pedras a fazerem de baliza não é "Futebol".
Andar a pé ou fazer "jogging" não são "Atletismo", tal como andar de automóvel não é "Automobilismo" e passear de mota não é "Motociclismo".
Como beber uma cerveja não é "alcoolismo" ou saltar 0,40cm nem comprimento não é ser "saltador em comprimento".
Como contar uma anedota não é ser "humorista" e assobiar uma melodia não é ser "músico".
Como fazer 2 minutos e trinta por Km nos 5000m não tem nada (mesmo nada, acredite) a ver com fazer 8 minutos por Km num passeio a pé.

Há limites para a classificação ou rotulagem das coisas.

A recreação é legítima como qualquer actividade humana desde que respeite os outros.

Portanto:
Pretender meter no mesmo saco a prática de uma modalidade desportiva e uma qualquer recreação (informal, descomprometida) é um disparate que só pode propiciar equívocos, desvalorizar o esforço, banalizar o que merece respeito e nivelar por baixo.

A recreação pseudo-desportiva por adultos não tem qualquer interesse para nenhuma modalidade desportiva.
Antes pelo contrário, opõe-se ao conceito de prática desportiva, que tem que ter um mínimo de formalidade para ser considerada como tal.

Basta de equívocos demagógicos.
OK?

Fernando Tenreiro disse...

Pois é, Luís Leite, a sua é uma posição extrema.

Jogar à bola com uma árvore no meio do campo e de pé descalço é futebol para a FIFA que publicou esta e outras situações marginais.

As posições de rotura têm feito mais mal do que bem ao desporto e, por isso, são conhecidos na literatura de desenvolvimento desportivo.

Não estou a criticá-lo nem a tentar que mude essa posição.

O facto é que existem pessoas da mais alta estirpe que professam posicionamentos equivalentes.

Há vinte e cinco anos a Professora Margarida Viegas na ex-Direcção Geral dos Desportos levava 'sovas' memoráveis porque havia pessoas que diziam que o desporto que valia era o de alta competição e que o fundamental era investir na alta competição. Que toda a população também quereria ser igual aos campeões e iam praticar todos desporto e Portugal ia ter mais desporto do que outros países europeus.

Segundo a literatura científica estes resultados automáticos nunca se realizaram e veja-se como as ideias que banem a recreação no século XX e o mexa-se ou a marcha e corrida no século XXI das federações estão vivas.

Só uma nota: eu não questiono as suas dúvidas, referia-me à dúvida levantada sobre o modelo em vigor que segundo diz beneficia as mini-maratonas. Se fala de um modelo alternativo isso é discutir diferenças que minimizam um modelo, para valorizarem um outro.

Portanto, você levanta dúvidas mesmo que para si a resposta seja transparente e esteja tomada à partida.

Luís Leite disse...

F. Tenreiro:

A questão da coexistência legítima de desporto formal e informal nada tem a ver com modelos. Sempre coexistiram em todas as sociedades.

Eu não tenho nada contra o desporto informal, a que você chama de "recreação". Eu próprio o pratico.
O que eu não aceito é que tudo seja metido no mesmo saco, como se tudo fosse "mais ou menos" a mesma coisa.

Sendo universalmente aceite que o sucesso desportivo dos países se mede periodicamente sobretudo nos Jogos Olímpicos, não é hipervalorizando o desporto de recreação que se conseguem mais medalhas.

O "mexa-se" do Prof. Sardinha, na Lei de Bases designado como "Actividade Física", para ser distinguido do "Desporto" não é Desporto.
Ou então a Lei não teria aquele nome.
É o próprio Governo que, implicitamente, o reconhece.

Julgo que se parte do princípio de que "mexa-se" e "actividade física" (uma designação idiota, tal a sua abrangência) são sinónimos.

O seu conceito, denominado "desporto recreação", remete para a brincadeira informal, sem regras, é um "divertimento", como tantos outros (ir ao cinema, ler um livro, ver televisão, ir a um concerto).

Só que, actualmente, existe um dogma que considera que o desporto informal e descomprometido faz bem à saúde.
Isto pode ser verdade, mas também pode ser mentira.
A falta de acompanhamento médico e de enquadramento técnico adequado pode ser muito perigosa em várias práticas informais.

Combater o sedentarismo é uma medida política de "saúde pública" defensável até certo ponto.
Mas pode nada ter a ver com desporto, até porque há desportos que são sedentários, como o xadrez ou o bridge.

Eu sei que posso ser considerado um excêntrico marginal por escrever o que escrevo, mas tento pensar pela minha cabeça, racionalmente.