domingo, 3 de abril de 2011

Festa brava!

Peço desculpa, mas hoje tinha que escrever muito. Ficam, contudo, os dados para o visitante serenamente formar a sua opinião.


Diga-se desde já, para que não se gerem equívocos, que tenho para mim que os núcleos duros de determinadas claques – que não se restringem somente aos denominados «3 grandes» (veja-se o recentíssimo caso de uma claque do Vitória de Guimarães) – são um espaço promotor de violência e banditismo. Por essa razão, o Estado, em vez de pretender transformá-las em associações de jovens e adultos bem comportados, com os elevados custos que consigna a tal missão impossível, primando por uma ineficácia absoluta comprovada por muitos anos, tudo deveria fazer para alcançar a sua extinção. Por isso, frise-se para a leitura seguinte, não há muito a distinguir entre claques “legalizadas” ou ilegais, designadamente quanto ao grau de violência, banditismo e perigosidade. Dito isto, vejamos mais de perto a “batalha das bandeiras e tarjas”, mais um episódio de uma guerra SL Benfica v. FC Porto, ou vice-versa para não ferir susceptibilidades.


No dia 31 de Março, lia-se na página do FC Porto (A Lei à Moda de Lisboa), que o clube tinha sido informado, nesse dia, numa reunião com a Polícia de Segurança Pública, que o SL Benfica pretendia impedir a entrada no Estádio da Luz de todos os adereços alusivos ao clube, como sejam bandeiras, estandartes ou faixas no jogo de hoje. Para o clube nortenho trata-se de uma decisão ilegal e, por essa razão, enviou exposições ao Ministério da Administração Interna, à Secretaria de Estado da Juventude e do Desporto, ao Conselho de Segurança e Ética no Desporto, à Liga Portuguesa de Futebol Profissional e à Federação Portuguesa de Futebol. Adiantava, à laia de argumento de maioria de razão, “que se há alguém que se acha no direito de estar acima da lei é o próprio Benfica, que continua a permitir a entrada no seu estádio de todos os adereços alusivos às claques No Name Boys e Diabos Vermelhos, dois agrupamentos ilegais, porque nunca efectuaram o registo dos seus elementos, como acontece com todas as outras [afirmação não verdadeira] claques desportivas em Portugal. No dia 1 de Abril era a vez de um comunicado do SL Benfica. Nele se refere que, em relação aos adeptos, o clube se limita a aplicar, dentro do quadro legal vigente, o princípio da reciprocidade: “Os nossos sócios e adeptos nas deslocações ao Estádio do Dragão têm sido sistematicamente impedidos de entrar com bandeiras do Benfica ou quaisquer outro tipo de adereços, ao contrário do que sucede em todos os restantes estádios nacionais e estrangeiros”. “Esta decisão foi devidamente ponderada e é irreversível, porque em questões morais – e dentro da legalidade – nunca se deve vacilar.” É obvio que os dois comunicados não deixam de dar loas ao fair-play e ao respeito devido a todos (mas nenhuns, diríamos nós).
Chegados aqui entraram no «jogo» duas instituições públicas e, embora dotadas de diversa capacidade de intervenção, qual delas com pior prestação. Primeiro a Polícia de Segurança Pública (PSP) que veio, em conferência de imprensa, considerar “que a lei está do lado do Benfica e não vai interferir no controlo dos objectos que podem ou não entrar no Estádio da Luz este domingo para o embate com o F.C. Porto”. Ignorância sem limites! “A PSP «lamenta» o ambiente criado em redor deste jogo e apela aos adeptos que apoiem as respectivas equipas sem recurso à violência, defendendo que «o futebol não é uma guerra» ”. Lindo e eficaz! Adiante: “A PSP considera que essa é uma responsabilidade do promotor do espectáculo, ou seja, neste caso, do Benfica. «Nada mais podemos fazer do que lamentar, mas não vamos interferir em questiúnculas clubísticas. São os produtores do espectáculo que devem garantir a segurança dentro do recinto, só vamos interferir se o Benfica permitir a entrada de objectos que são expressamente proibidos», começou por explicar o sub-intendente Costa Ramos”. Lindo e eficaz! Ignorância sem limites! “A lei não faz referência a bandeiras, tarjas e cachecóis, mas a PSP entende que essa é uma responsabilidade dos ARD (assistentes de recinto desportivo). «Não vamos interferir, os adeptos do F.C. Porto façam como entenderem, mas se o ARD disser que não entra, não entra», acrescentou o sub-intendente, admitindo que é uma medida que pode vir a provocar tumultos e «a polícia está lá para isso». Ignorância sem limites!
Depois veio o presidente de algo meio desconhecido, mesmo quase clandestino, o Conselho para a Ética e Segurança no Desporto (CESD). Para Carlos Cardoso a lei não obriga o Benfica a deixar entrar «o que quer que seja» no seu estádio: «Gostávamos que o espectáculo desportivo fosse uma festa. Os adereços fazem parte da festa, lamentamos que isto aconteça», começa por dizer Carlos Cardoso ao Maisfutebol, para depois defender que o organismo a que preside não pode actuar: «Não há nada na lei que obrigue o promotor a deixar entrar o que quer que seja. O que a lei 39/2009 prevê é a proibição de determinados objectos, por motivos de segurança.» Ignorância sem limites! O CESD já recebeu de resto a denúncia do F.C. Porto e vai encaminhar o assunto para o Ministério da Administração Interna, responsável pelo policiamento no clássico: «Vamos comunicar ao MAI que isto se passa e alertar para que haja bom senso.» Lindo e eficaz! «É uma questão para o MAI, para as forças policiais que estiverem presentes, para que haja bom senso da parte do Benfica», prossegue, admitindo de resto que, se a proibição do Benfica se estender à generalidade dos adeptos e não apenas às claques, a situação na Luz será muito confusa: «Acho que será o caos total. O bom senso tem que imperar.» Lindo e eficaz! Quanto ao problema geral das claques não legalizadas, Carlos Cardoso diz que não está esquecido, mas é um problema complexo. Pouco mais pode ser feito do que sensibilizar os clubes. Lindo e eficaz!


Mas o que podemos retirar, com alguma segurança, das normas constantes da Lei n.º 39/2009, de 30 de Julho (Estabelece o regime jurídico do combate à violência, ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espectáculos desportivos, de forma a possibilitar a realização dos mesmos com segurança)? Primeiro: “Artigo 5.º Regulamentos de prevenção da violência 1. O organizador da competição desportiva aprova regulamentos internos em matéria de prevenção e punição das manifestações de violência, racismo, xenofobia e intolerância nos espectáculos desportivos, nos termos da lei. 2. Os regulamentos previstos no número anterior estão sujeitos a registo junto do CESD, que é condição da sua validade, e devem estar conformes com: … 3. Os regulamentos previstos no n.º 1 devem conter, entre outras, as seguintes matérias: … d) Discriminação dos tipos de objectos e substâncias previstos na alínea d) do n.º 1 do artigo 22.º” Segundo: “Artigo 7.º Regulamentos de segurança e de utilização dos espaços de acesso público 1. O promotor do espectáculo desportivo aprova regulamentos internos em matéria de segurança e de utilização dos espaços de acesso público. 2. Os regulamentos previstos no número anterior devem conter, entre outras, as seguintes medidas, cuja execução deve ser precedida de concertação com as forças de segurança, a ANPC, os serviços de emergência médica e o organizador da competição desportiva: …. d) Instalação ou montagem de anéis de segurança e a adopção obrigatória de sistemas de controlo de acesso, de modo a impedir a introdução de objectos ou substâncias proibidos ou susceptíveis de possibilitar ou gerar actos de violência, nos termos previstos na presente lei; … 3. Os regulamentos previstos no n.º 1 estão sujeitos a registo junto do CESD, que é condição da sua validade. 4. A não aprovação e a não adopção da regulamentação prevista no n.º 1 pelo promotor do espectáculo desportivo, ou a adopção de regulamentação cujo registo seja recusado pelo CESD, implicam, enquanto a situação se mantiver, a impossibilidade de serem realizados espectáculos desportivos no recinto desportivo respectivo, bem como a impossibilidade de obtenção de licença de funcionamento ou a suspensão imediata de funcionamento, consoante os casos. 5.As sanções mencionadas no número anterior são aplicadas pelo Instituto do Desporto de Portugal, I. P., sob proposta do CESD”. Terceiro: “Artigo 22.º Condições de acesso de espectadores ao recinto desportivo 1. São condições de acesso dos espectadores ao recinto desportivo: a) A posse de título de ingresso válido; b) A observância das normas do regulamento de segurança e de utilização dos espaços de acesso público; … d) Não transportar ou trazer consigo objectos ou substâncias proibidos ou susceptíveis de gerar ou possibilitar actos de violência; e) Não ostentar cartazes, bandeiras, símbolos ou outros sinais com mensagens ofensivas, de carácter racista ou xenófobo; … g) Consentir na revista pessoal de prevenção e segurança, com o objectivo de detectar e impedir a entrada de objectos e substâncias proibidos ou susceptíveis de gerar ou possibilitar actos de violência; … 3. É vedado o acesso ao recinto desportivo a todos os espectadores que não cumpram o previsto no n.º 1, exceptuando o disposto nas alíneas b), d) e g) do mesmo número, quando se trate de objectos que sejam auxiliares das pessoas com deficiência e ou incapacidades”. Quarto: Artigo 23.º Condições de permanência dos espectadores no recinto desportivo 1. São condições de permanência dos espectadores no recinto desportivo: a) Não ostentar cartazes, bandeiras, símbolos ou outros sinais com mensagens ofensivas, violentas, de carácter racista ou xenófobo, intolerantes nos espectáculos desportivos, que incitem à violência ou a qualquer outra forma de discriminação, ou que traduzam manifestações de ideologia política; …” Quinto: “Artigo 24.º Condições especiais de permanência dos grupos organizados de adeptos 1. Os grupos organizados de adeptos podem, excepcionalmente, utilizar os seguintes materiais ou artigos, no interior do recinto desportivo: a) Instrumentos produtores de ruídos, usualmente denominado «megafone» e «tambores»; b) Artifício pirotécnico de utilização técnica fumígeno, usualmente denominado «pote de fumo». 2. O disposto na alínea a) do número anterior carece de autorização prévia do promotor do espectáculo desportivo, devendo este comunicar à força de segurança. 3. O disposto na alínea b) do n.º 1 carece de autorização e monitorização da força de segurança, em concordância com a ANPC e com o promotor do espectáculo desportivo”. Sexto: “Artigo 25.º Revista pessoal de prevenção e segurança 1. O assistente de recinto desportivo pode, na área definida para o controlo de acessos, efectuar revistas pessoais de prevenção e segurança aos espectadores, nos termos da legislação aplicável ao exercício da actividade de segurança privada, com o objectivo de impedir a introdução no recinto desportivo de objectos ou substâncias proibidos, susceptíveis de possibilitar ou gerar actos de violência. … 3.As forças de segurança destacadas para o espectáculo desportivo, sempre que tal se mostre necessário, podem proceder a revistas aos espectadores, por forma a evitar a existência no recinto de objectos ou substâncias proibidos ou susceptíveis de possibilitar actos de violência. 4. A revista é obrigatória no que diz respeito aos grupos organizados de adeptos”. Sétimo: “Artigo 39.º Contra-ordenações 1. Constitui contra-ordenação, para efeitos do disposto na presente lei: … b) A introdução, transporte e venda nos recintos desportivos de bebidas ou outros produtos contidos em recipientes que não sejam feitos de material leve não contundente; c) A introdução, venda e aluguer ou distribuição nos recintos desportivos de almofadas que não sejam feitas de material leve não contundente; d) A prática de actos ou o incitamento à violência, ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espectáculos desportivos, sem prejuízo de outras sanções aplicáveis; e) A utilização nos recintos desportivos de buzinas alimentadas por baterias, corrente eléctrica ou outras formas de energia, bem como quaisquer instrumentos produtores de ruídos instalados de forma fixa, com excepção da instalação sonora do promotor do espectáculo desportivo; f) A utilização de dispositivos luminosos tipo luz laser, que, pela sua intensidade, seja capaz de provocar danos físicos ou perturbar a concentração e o desempenho dos atletas; g) A introdução ou utilização de substâncias ou engenhos explosivos ou pirotécnicos ou objectos que produzam efeitos similares, sem prejuízo de outras sanções aplicáveis; h) O arremesso de objectos, fora dos casos previstos no artigo 31.º”


Completando este arco normativo o Regulamento de Competições da LPFP estabelece – em conformidade com as normas constantes dos artigos 5º, nº 3, alínea d) e 21º, nº, alínea d), da lei –, que os clubes devem adoptar obrigatoriamente um controlo de acesso do público, de modo a impedir a introdução de objectos proibidos ou susceptíveis de possibilitar actos de violência [artigo 52º, alínea g)]. E, pasme-se, até diz o que deve ser considerado proibido no seu segundo (?) § único: “Para efeito do disposto na alínea anterior, sem prejuízo do estabelecido no artigo 24º da Lei 39/2009, de 30 de Julho, são considerados proibidos os objectos, substâncias e materiais susceptíveis de possibilitar actos de violência, designadamente: 1.Bolas, chapéus-de-chuva, capacetes; 2.Mastros de bandeira de haste rígida ou similares; 3.Armas de qualquer tipo, munições ou seus componentes, bem como quaisquer objectos contundentes, designadamente, facas, dardos, ferramentas ou seringas; 4.Projécteis de qualquer tipo, tais como cavilhas, pedaços de madeira, plástico ou metal, pedras, vidro, latas, garrafas, canecas, embalagens, caixas ou quaisquer recipientes que possam ser arremessados e causar lesões; 5.Objectos volumosos, tais como escadas de mão, bancos ou cadeiras; 6.Substâncias corrosivas ou inflamáveis, explosivas ou pirotécnicas, líquidos e gases, fogo de artifício, foguetes luminosos (very lights), tintas, bombas de fumo ou outros materiais pirotécnicos; 7.Latas de gases aerossóis, substâncias corrosivas ou inflamáveis, tintas ou recipientes que contenham substâncias prejudiciais à saúde ou que sejam inflamáveis; 8.Apontadores de laser ou outros dispositivos luminosos que sejam capazes de provocar danos físicos ou perturbar a concentração ou o desempenho dos atletas e demais agentes desportivos; … 2. Para além do disposto no número anterior, devem os Clubes visitados, ou considerados como tal, proceder à colocação, em todas as entradas do estádio, de um mapa-aviso, de dimensões adequadas, com a descrição de todas os objectos ou comportamentos proibidos no recinto ou complexo desportivo, nomeadamente invasões do terreno de jogo, arremesso de objectos, uso de linguagem ou cânticos injuriosos ou que incitem à violência, racismo ou xenofobia, bem como a introdução e ingestão de bebidas alcoólicas, estupefacientes ou material produtor de fogo-de-artifício ou objectos similares, e quaisquer outros susceptíveis de possibilitarem a prática de actos de violência”.


SL BENFICA, outros clubes, PSP e Senhor Carlos Cardoso, leiam o que têm à mão e com que devem lidar todos os dias, apliquem a lei ou, então, demitam-se e calem-se.

5 comentários:

Armando Inocentes disse...

Como é normal no Prof. Meirim, uma análise lúcida e bem fundamentada!

Está provado que temos muitas leis, e boas (por isso as podemos exprtar!), mas se nem os dirigentes nem as autoridades as conhecem, como as podem aplicar?

Que tipo de fiscalização pode ser exercida quando se fala sem ter conhecimento de causa?

Todos se preocupam com a violência, o racismo, a xenofobia e a intolerância nos espectáculos desportivos, mas quero deixar aqui uma questão: A FPF já pagou o que tinha a pagar à família do adepto leonino que morreu no Jamor com um very-light no peito?

josé manuel constantino disse...

De facto deve ser elogiado o bom senso, não apenas do Presidente da Comissão de Ética, mas de todos os intervenientes. Antes e depois do jogo. O banditismo e a pancadaria gratuita.A criminalidade à solta. A patetice dos "responsáveis".A elegância do corte da energia eléctrica e a ligação do sistema de rega. E o rigor do controle dos acessos que permitiu a entrada de um porco! Ora um porco não está previsto nos regulamentos ser impedido de entrar. E portanto cumpriu-se a lei.Como diz o outro o futebol é isto mesmo. É uma festa. Que deve ser vivida com fair-play. Que na boca daquela rapaziada vale o mesmo que um taliban a defender um mundo em paz!!!

Luís Leite disse...

Concordo com tudo o que foi escrito por JM Meirim, menos na frase repetida "ignorância sem limites".

Na verdade, tudo o que aconteceu, acontece e acontecerá nos estádios (claques violentas, objectos atirados para o relvado, apagões e regas automáticas) não resultam de ignorância sem limites.

Os responsáveis (todos) conhecem a legislação.

Só que a legislação só se leva a sério quando traz dividendos políticos.
E a festa do futebol é festa brava MESMO.
Agrada ao povão e faz esquecer outras coisas mais importantes e incómodas.

Não há ignorância nem incompetência.
Há aproveitamento político.
Interesseiro e intencional.

Luís Leite disse...

O que se passa no Futebol português em geral e o que se passou ontem no Estádio da Luz não são mais do que um reflexo do ponto a que chegámos neste pobre país.
O grau zero da moral, o grau zero da política.
O Futebol é em Portugal (sempre foi), um instrumento que serve para distrair o povão daquilo que é importante.
Os Governos sabem-no e aproveitam as situações causadas por alarves sem escrúpulos que estão à frente dos clubes...
Quanto mais javardice e polémica mais negócio para muita gente.
A javardice vende bem, muito bem...

joão boaventura disse...

A este propósito, numa visão de outra área, não menos necessária, proponho uma leitura do post As claques são economicamente nefastas, ínsita no blog “O desporto e a sua economia”, criado recentemente pelo nosso amigo Fernando Tenreiro.