domingo, 29 de maio de 2011

Somente umas normas ou um sistema a revogar?

É já do conhecimento público o teor do Relatório e do Projecto de diploma elaborado pela Comissão para a Justiça Desportiva.
Esta comissão foi criada por Despacho conjunto do Secretário de Estado da Juventude e do Desporto e do Secretário de Estado da Justiça (Despacho nº 14534/2010, publicado no Diário da República, II Série, de 20 de Setembro de 2010), tendo por mandato promover uma adequada conexão entre a justiça e o desporto, formulando propostas de diplomas legais no sentido de se alcançar uma justiça desportiva especializada, uniformizada e simultaneamente mais célere e segura».
A Comissão foi integrada, entre outros membros, por docentes universitários que, assim julgo, ninguém ousará colocar em crise a sua idoneidade técnica.
Pode-se não concordar com as suas propostas e respectiva sustentação. O que não se pode é diminuir a sua capacidade como docentes de Direito e, num aspecto particular, no universo jus científico do Direito Constitucional e do Direito Administrativo.

O texto vai ser objecto, assim se anseia, de leitura crítica e de debate.
Nós próprios tentaremos contribuir para a consolidação desse espaço.
Seja-me permitido, por ora, congratularmo-nos pelo acolhimento de duas nossas posições, de há muito sustentadas.

O projecto, na sua norma revogatória, presente no artigo 59º, estabelece o seguinte:

São revogados:
a) O artigo 18º da Lei nº 5/2007, de 16 de Janeiro;
b) O artigo 12º do Decreto-Lei nº 248-B/2008, de 31 de Dezembro;
c) Os nºs 2 a 5 do artigo 57º da Lei nº 27/2009, de 19 de Junho.


O artigo 18º (Justiça desportiva) da Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto (Lei nº 5/2007, de 16 de Janeiro) determina:

1. Os litígios emergentes dos actos e omissões dos órgãos das federações desportivas e das ligas profissionais, no âmbito do exercício dos poderes públicos, estão sujeitos às normas do contencioso administrativo, ficando sempre salvaguardados os efeitos desportivos entretanto validamente produzidos ao abrigo da última decisão da instância competente na ordem desportiva.
2.Não são susceptíveis de recurso fora das instâncias competentes na ordem desportiva as decisões e deliberações sobre questões estritamente desportivas.
3.São questões estritamente desportivas as que tenham por fundamento normas de natureza técnica ou de carácter disciplinar, enquanto questões emergentes da aplicação das leis do jogo, dos regulamentos e das regras de organização das respectivas competições.
4.Para efeitos do disposto no número anterior, as decisões e deliberações disciplinares relativas a infracções à ética desportiva, no âmbito da violência, da dopagem, da corrupção, do racismo e da xenofobia não são matérias estritamente desportivas.
5.Os litígios relativos a questões estritamente desportivas podem ser resolvidos por recurso à arbitragem ou mediação, dependendo de prévia existência de compromisso arbitral escrito ou sujeição a disposição estatutária ou regulamentar das associações desportivas.

Por seu turno, no artigo 12º (Justiça desportiva) do regime jurídico das federações desportivas e do estatuto de utilidade pública desportiva (Decreto-Lei nº 248-B/2008, de 31 de Dezembro), estabelece-se:

Os litígios emergentes dos actos e omissões dos órgãos das federações desportivas, no âmbito do exercício dos poderes públicos, estão sujeitos às normas do contencioso administrativo, ficando sempre salvaguardados os efeitos desportivos entretanto validamente produzidos ao abrigo da última decisão da instância competente na ordem desportiva.


Por último, os nºs 2 a 5 do artigo 57º (Aplicação de sanções disciplinares) da Lei nº 27/2009, de 19 de Junho (Estabelece o regime jurídico da luta contra a dopagem no desporto):


1. - A aplicação das sanções disciplinares previstas na presente lei compete à ADoP e encontra-se delegada nas federações desportivas titulares do estatuto de utilidade pública desportiva, a quem cabe igualmente a instrução dos processos disciplinares.
2 - As federações desportivas devem dispor de uma instância de recurso, para a qual o agente desportivo sancionado possa recorrer, sem efeito suspensivo, a qual deve ser uma entidade diversa e independente da que o sancionou em primeira instância.
3 - Entre a comunicação da infracção a uma norma antidopagem e a aplicação da correspondente sanção disciplinar não pode mediar um prazo superior a 60 dias.
4 - A ADoP pode, a todo o tempo, avocar a aplicação das sanções disciplinares, bem como alterar as decisões de arquivamento, absolvição ou condenação proferidas por órgão jurisdicional de uma federação desportiva, proferindo nova decisão.
5 - Da decisão proferida pela ADoP cabe recurso para o Tribunal Arbitral do Desporto de Lausanne.


Com a revogação proposta para estas normas, adianta-se, como sempre defendemos, um conceito de questão estritamente desportiva que, a existir, afasta a impugnação junto dos tribunais.
A Comissão exclui da competência do Tribunal Arbitral (Artigo 6º, nº 5), a resolução de questões emergentes da aplicação das normas técnicas e disciplinares directamente respeitantes à prática da própria competição desportiva.
E só destas.

E quanto à acção disciplinar em matéria da dopagem, a Comissão chega mesmo a referir expressamente que a regulamentação actual “é tudo menos juridicamente canónica”.

Se outra valia não teve o labor desta Comissão – e há que reconhecer que teve e bastante –, fica a leitura que deita por terra muitas posições peregrinas, normas inconstitucionais e um quero, posso e mando que em nada pode conferir qualidade e segurança à aplicação da justiça desportiva.




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