segunda-feira, 6 de julho de 2009

Para muitos, nada. Para poucos, quase tudo

A propósito do ultimo post que aqui deixei e dos seus diversos comentários não posso deixar de voltar ao tema - ainda que numa outra perspectiva - tendo também em conta acontecimentos recentes no desporto e na sociedade nacional, bem como o falecimento e o octogésimo aniversário de duas referências do moderno pensamento sociológico. Refiro-me a Ralf Dahrendorf e Jürgen Habermas.

O leitor desinteressado de uma apologia teórica, ou cansado de retórica sobre desenvolvimento, pode apear-se aqui.

O desenvolvimento é dominantemente visto como um processo comandado pela economia, competindo ao Estado e à sociedade minorar os danos e proteger os excluídos. Amiúde se confunde desenvolvimento com crescimento económico.

Ora, aqueles autores moldaram a minha formação intelectual para me distanciar desta perspectiva. O desenvolvimento só faz sentido na medida em que seja inclusivo e propiciador da liberdade em todo o seu percurso. O exercício da liberdade, enquanto bem e ordem geral, é mediado e mediatizado por valores e praticas sociais cristalizadas em instituições, pelo que, da qualidade do debate público e mobilização cívica se molda o capital social, expresso nos valores e instituições.

Infelizmente em momento algum da nossa história democrática conseguimos transformar a liberdade em desenvolvimento, sustentável e sustentado, e o desenvolvimento na valorização de liberdades pessoais e consolidação da cultura cívica democrática.

O cidadão, enquanto agente portador de direitos, liberdades e garantias mobilizáveis através do seu envolvimento sócio-politico no espaço público, cada vez mais se transforma num mero consumidor acrítico de factos mediáticos superficiais e simplificados pela voragem do imediato.

A esfera pública cívica foi engolida por uma comunicação social que não é mais do que um repositório de “produtos políticos” e produtos de mercado personalizados, campanhas de interesses e promoção da imagem pessoal, marcada pelo ritmo das audiências, das modas e das tiragens. O desporto é exemplar nesta tendência. A “linguagem do poder” sobrepõe-se ao “poder da linguagem”, com todos os condicionalismos que isso gera no desenvolvimento da sociedade.

Assim, discutem-se projectos e ideias - quando se discutem - a partir do mero ataque pessoal. Desrespeitam-se instituições e processo democráticos elementares. Confunde-se a ética com a lei. Confunde-se desenvolvimento com modernização económica. Confunde-se a mudança e a reforma institucional com modernização legislativa, discricionariamente desenvolvida, implementada e fiscalizada.

As politicas públicas navegam ao sabor destes circunstancialismos, numa lógica técnico-burocrática gerida por políticos profissionais formados em gabinetes e aparelhos partidários, sem o suporte de um quadro ideológico sólido sobre um projecto de sociedade. Tendência reforçada pela afirmação de concepções funcionalistas do sistema de governação da União Europeia.

O desenvolvimento e a sua lógica de mudança não se coadunam com um tempo imediato, personalizado e simplificado “just in time”, sem uma visão de futuro emergente das estruturas e corpos sociais. Não deve processar desigualdades sociais, placidamente encardas como meras externalidades residuais, mas potenciar a valorização da diversidade social.

Por mais voltas que se queiram dar, as reformas e as politicas não se implementam à margem dos direitos e deveres de cidadania, expressos na sua prática diária democrática. Ainda que este seja um caminho árduo, tortuoso e lento, não existem politicas públicas e processos de desenvolvimento sustentável sem validação expressa no domínio das liberdades concretas e da responsabilidade cívica. Tudo o mais não passa de uma imposição dos interesses do momento face aos interesses do Estado. Ou se preferirem, dos interesses de políticos em relação aos interesses de estadistas. Dos interesses de dirigentes em relação aos interesses de lideres.

Num país com o atraso estrutural de Portugal, adiar a afirmação dos valores democráticos na organização social, económica e política dos vários domínios da vida do país significa condicionar o seu desenvolvimento à partida, uma vez que as opções individuais se aprisionam no défice de capital social.

Aqui chegado o leitor poderá questionar muita coisa. Nomeadamente o que tem isto a ver com o desporto. Diria: Para muitos, nada. Para poucos, quase tudo.

19 comentários:

Anónimo disse...

Este João Almeida escreve, escreve e não diz nada, para muitos...faça um esforço para escrever sobre desporto por favor.

Anónimo disse...

No passado, o “nada” de “muitos” ainda era menor; e o “tudo” de “poucos” ainda era maior. No domínio da biologia, nas sociedades não-humanas «hierárquicas», essa assimetria ainda era maior. Nas sociedades biológicas não-humanas, de organização predominantemente «territorial», essa assimetria diminuiu um pouco. E nas sociedades não-humanas mais complexas, já com transmissão genética de comportamentos altruístas e de forte cooperação, ainda diminuiu um pouco mais. A partir de um certo limiar de «ética» ou de «altruísmo», e mesmo de «solidariedade», a própria sobrevivência é posta em causa, e pode destruir a existência da comunidade (espécie). Portanto a questão não é nova nem é fácil. É uma questão de adequação ao contexto, e de proporção eficaz, perante os «recursos».
Quanto ao «desenvolvimento», ele nasceu de um compromisso político. E depois, passou à fase de “sustentável”, sem que tenha sido alterado esse desígnio político inicial. Esse compromisso foi imposto pelas macro-estruturas criadas no pós-guerra 1945 (ONU, UNESCO, FMI, Banco Mundial, OMC, G7), dominadas por aqueles “poucos” que dominavam o «poder», e que, em nome do «progresso» e do «permanente crescimento», seduziram as populações acenando-lhes com essa ideia de «desenvolvimento». Perante a impossibilidade de obrigarem à força as populações, e depois de verificarem a catástrofe, sobretudo para os seus lucros, acharam que o truque para pararem a reivindicação das populações (nos EUA, na Europa e na URSS) era melhor conseguido com um negócio político, exactamente chamado «desenvolvimento». Mantiveram a dominação, e continuaram a produzir o «crescimento dos seus lucros» em que a troco do apaziguamento e da paragem da «revolução» com a ideia do «consumo» e do «bem-estar». O Povo comprou de imediato essa ilusão da «felicidade» e os mesmos continuaram a ser poucos e a maioria a não ter nada.
É deste negócio que a ideia de «desenvolvimento» é feita, chama-se-lhe “sustentável” ou outra coisa qualquer. Não é portanto possível melhorar o «desenvolvimento». Essa é a falácia de João Almeida nesta mensagem.
A pergunta que deve ser feita, não deve ser a mera constatação da evidência que dá título á mensagem. Deve ser, a do porquê não haver alternativa para a decisão «democrática» do Povo, respondida maioritariamente em eleições livres, de que quer que essa assimetria continue a existir, com base nessa contrapartida do «consumo» e do «bem-estar» (é igual no PCP, BE, PS, PSD e CDS). E, portanto, que é a continuação da estratégia do «desenvolvimento sustentável» que deve ser o caminho a seguir. O desporto tem que seguir esse rumo, se quiser obedecer à vontade do Povo. O Povo será parvo? Será? Sabendo que, ao não haver alternativa, o que pode acontecer é a catástrofe?
Sobre Ralf Dahrendorf e Jürgen Habermas, são autores que contribuíram para o impasse sociologista que fez atrasar as ciências sociais na última metade do século XX. E cuja crítica se iniciou no famoso encontro entre Jean Piaget e Noam Chomhski na Abadia de Rouyaumont em 1974, com o contributo de François Jacob, Maurice Godelier, Gregory Bateson, Jean-Pierre Changeux, passando pela crítica de Lyotard em 1987, até à de Fernando Gil em 1986 e á A. Giddens em 2002.

Anónimo

ftenreiro disse...

a contextualização do anónimo das 23 é eficaz

contudo, chega a um ponto sem saída

quando sugere a falácia do desenvolvimento do João Almeida


os manuais de economia têm uma imagem clara do significado de desenvolvimento

a imagem é a comparação entre a casa de uma família de áfrica e de outra do reino unido

as fotos mostram todos os haveres de cada uma e como se depreenderá a primeira prima pela escassez e a segunda pela abundância de bens domésticos

existe uma outra imagem que é a comparação entre os haveres de uma família do mundo ocidental no início do século XX e de outra no fim do mesmo século. No início não havia água canalizada, electricidade, gaz etc etc

o resultado é o mesmo há famílias no mundo que são mais ricas e outras são acedem aos mesmos mecanismos de desenvolvimento


estas imagens são simples, universais e transversais a todas as ciências, há desenvolvimento quando este se concretiza em bem-estar para as populações



a questão da escassez e da aplicação adequada dos recursos é o passo seguinte, como diz o anónimo das 23

os países que conseguem aplicar bem os seus recursos desenvolvem-se enquanto os outros estagnam, nós estamos da fase da estagnação, atrasando-nos no desenvolvimento

e perante o atraso procuramos sair com projectos extraordinários

os outros países são mais rápidos a actuar e alteraram os seus procedimentos com a rapidez possível

são países com conhecimento das coisas superior e são mais complexos e finos nas suas decisões

o desenvolvimento fica limitado pela capacidade de actuação nacional, as possibilidades e os limites são para todos

ganham os eficientes

discordo pois da falácia do desenvolvimento em si do anónimo das 23, mas de certos tipos de desenvolvimento

é essa a discussão dos economistas portugueses, como aplicar bem os recursos escassos que temos

como levar o poder político a não obrigar o país a loucuras económicas


no desporto
há países que consequem dezenas de medalhas nos jogos olímpicos e outros que conseguem duas ou três,
há países que dão desporto a mais de 50% da população e têm os estádios cheios e pagamentos a horas aos seus atletas e outros países como portugal que não o conseguem

quando quantificamos aquilo que dizemos podemos tornar claras as ideias
a quantificação estatística como a monetarização do valor dos bens e serviços são instrumentos que ajudam o desenvolvimento

escusado será dizer que o desporto português produz menos estatísticas, menos estudos e menos investigação e divulga-as menos do que os países que possuem resultados desportivos superiores

quando foi o último congresso do desporto em portugal? outros países fazem-nos anualmente

no nosso desporto estamos limitados no conceito de desenvolvimento que não temos e no uso dos recursos escassos

e noutro factor que é o do uso e aprofundamento do conhecimento

A legislatura que aí vem deveria dar cartas no respeitante ao investimento em conhecimento do desporto e na contaminação de toda a sociedade por este novo activo

Anónimo disse...

Agora são duas falácias.
Mas antes, que fique claro que as falácias não se referem às Pessoas, mas apenas aos argumentos do texto que escrevem.
A primeira falácia é a do «desenvolvimento».
Não é uma falácia de João Almeida, é uma falácia que está dentro da própria noção e intenção política dessa «ideia de desenvolvimento pós-1945».
Porque o objectivo dessa ideia de «desenvolvimento» foi o de não permitir que houvesse um modelo de futuro alternativo. Concretamente aquele «desenvolvimento» que foi proposto pela famosa “vanguarda revolucionária” marxista no século XIX, e portanto não ancorado no aumento do PIB, da demografia e do consumo. Neste caso, é sempre útil não esquecer como Aristóteles fez a diferença entre «crescimento» e «desenvolvimento» nas Categorias. O que o conceito de «desenvolvimento» escondeu foi a perpetuação do mesmo tipo de caminho, para a economia e para a sociedade, que existia antes das duas «guerras», e que vem desde a dita “revolução industrial”. Portanto, a falácia é tomar o diferente pelo igual. Não perceber o truque, ou o negócio político, que faz-de-conta que o «desenvolvimento» é diferente do «crescimento», quando são a mesma coisa, apesar de vir mascarado.
A segunda falácia comete-a F. Tenreiro.
É a falácia de que a Economia é uma ciência, e que, portanto, é o caminho «quantificador e estatístico» que lhe dá rigor e objectividade. Os erros de análise estão à vista na actualidade. Mas voltemos à questão. A casa do reino unido não é mais «rica» do que a de África por causa da escassez ou da abundância de bens domésticos. Essa é a ideologia do «crescimento», que a noção de «desenvolvimento» tenta manter, e que permanece desde o século XVIII. Essa é, agora, a segunda falácia.
Não é por ter mais bens que automaticamente se têm mais necessidades e expectativas de vida satisfeitas.
Sobre esta ilusão quantificadora, como panaceia para o rigor e para a objectividade, D. Hume contava a história do sol. Que, lá por se «pôr» todos os dias, e por eu fazer toda a matemática desse cálculo, nada me diz nessa quantificação porque há-de ele voltar a «pôr-se».
A Economia não serve, na actualidade, para analisar a «Economia das Sociedades Humanas» porque esqueceu que é na «Troca entre humanos», e na definição de metas não-quantificáveis de futuro e de vida, que está a sua base e a sua explicação. Esqueceu o legado antigo. De que tudo na Economia parte da seguinte pergunta: “O que faz com que tantas sociedades, em tantas épocas e em contextos tão diferentes, os indivíduos e os grupos se sintam obrigados, quando lhes dão, a receber, mas também obrigados, quando recebem, a retribuir o que lhes foi dado, e a restituir ora a mesma coisa, ou o seu equivalente, ora algo mais e melhor?”. Foi esta «Reciprocidade» (ou este «Contrato» entre coisas, recursos e pessoas) que o «crescimento» matou a partir do século XVIII. E que a actual noção de «desenvolvimento» continua a matar. Razão pela qual, como titula João Almeida, “«poucos» passaram a ter «tudo», e todos a ter cada vez menos”. Do que resulta a falácia da via quantificadora servir para medir aquilo que é a base da Economia. A qual é sobretudo um acto político, intencional e consciente, de um determinado «poder instituído», o qual não se resolve nem se percebe por um faz-de-conta estatístico-matemático, que funciona apenas de cortina-de-fumo para a ignorância.
Em suma, o desporto é um assunto desportivo.

Anónimo

ftenreiro disse...

é evidente que o João Almeida não é uma falácia, pelo contrário é uma certeza

aqui temos discutido ideias

a negação da economia é um acto que alguns dos economistas subscritores dos manifestos fazem

o anónimo das 23,19 apresenta ideias que negam a ideia de ciência à economia

em primeiro lugar as consequências económicas dos actos políticos podem ser positivas e negativas

as decisões políticas se estiverem de acordo com a teoria económica terão maior probabilidade de gerarem resultados positivos
mas podem gerar resultados negativos se forem mal aplicadas e se a teoria estiver ultrapassada.
Outras razões são os políticos que erram e os economistas que fornecem más soluções, etc.

em segundo lugar, manuais de economia actuais, de Paul Krugman prémio nobel da economia e de Ben Bernanke presidente da reserva federal americana, para dar apenas dois exemplos, definem que a ciência económica é a escolha da aplicação eficiente de recursos que são escassos (em síntese e citando de cor). Outras interpretações sobre o que é a economia também são possíveis. Esta definição identifica um objecto que não choca com outras ciências e que é importante para todos decidir bem sobre recursos escassos.

em terceiro quanto ao desenvolvimento e ao crescimento, os manuais também dão o seguinte exemplo, que aplico ao nosso desporto: o investimento dos estádios do euro foram excelentes para os empreiteiros e não servem para o bem estar da população portuguesa. Houve crescimento do produto e não houve aumento do bem-estar. Se tomarmos o investimento feito no Futebol Clube do Porto desde os anos oitenta do século passado houve crescimento do produto e do bem-estar das populações da região norte, portanto houve desenvolvimento com o aumento do produto que beneficia toda a população e agentes económicos. Outro exemplo, o da segunda circular: construir dois estádios iguais na segunda circular beneficiou os empreiteiros e comerciantes da zona, prejudicou os dois clubes com os débitos que mantêm para o seu pagamento e alternativamente poderia ter beneficiado mais os
clubes modernizando o Estádio Nacional e entregando a gestão ao Benfica e ao Sporting, após o investimento do Estado. Replicado o modelo a decisão política afectou o desenvolvimento nacional havendo o exemplo da actuação económica correcta em todo o mundo desenvolvido, com dois ou mais clubes por estádio.

em quarto lugar a comparação entre áfrica e o reino unido trás o conceito de felicidade e, por isso, é acompanhado pelo exemplo da diferença entre o principio e o fim do século. A banda larga que nos permite esta discussão não é possível em grandes partes de áfrica, tenho dificuldades em negar o bem-estar que hoje possuímos e a diversidade que esse poder material permite. Há agentes que limitam a liberdade dos outros como quando vamos aos centros comerciais para comprar alguns dos produtos standardizados aí existentes em vez de procurar o pequeno produtor local. ou quando preferimos o benfica ao clube desportivo local para a prática desportiva.

por fim, há um problema cultural em portugal,
confunde-se estatísticas com ignorância, dizendo que 'as estatísticas servem para mentir'
não quero ferir as vossas convicções, direi apenas que este argumento é frágil e próprio de uma sociedade que está muito fraca no domínio do conhecimento e que necessita de investir muito para compreender que:
1 - no desporto português os estudos não estão feitos
2 - não existe planeamento no desporto português
3 - estamos no último lugar do desenvolvimento europeu, no que respeita ao desporto português

creio que o João Almeida e o anónimo das 23,19 devem tentar não perder de ideia a situação material do desporto nacional

Anónimo disse...

Conclusão:

Todos têm razão.

O que se passa com os estudos económicos passa-se com os estudos técnicos para saber como rentabilizar e alargar os espaços do Jamor.

Depois da operação "18 buracos no Jamor", os estudos económicos e técnicos foram para a reciclagem, porque os não-estudos políticos sobrepõem-se aos estudos económicos e técnicos.

Os políticos fazem figura de ricos porque pagam aos que fizeram os estudos económicos, e aos que elaboraram os estudos técnicos, não pelo apreço que os referidos trabalhos lhe tenham merecido mas como forma de os calar, porque vão fazer tudo ao contrário do que a ciência aplicada indiciava.

A isto se chama "crescimento" político da ignorância, e "desenvolvimento sustentado" do retrocesso da nação.

Portugal é um país periférico, não pela sua posição geográfica, mas pelas medida periféricas dos políticos que escolhemos. Pelo que, em última instância, os culpados somos nós.

Por isso, todos têm razão.

Por isso, proponho que passemos a construir porque, se os políticos nos vêem às turras uns com os outros, aqui no blog, eles esfregam as mãos de contentamento porque estamos entretidos a jogar à cabra cega, para ficarem à vontade a delapidar o nosso dinheiro.

Anónimo disse...

O crescimento e o desenvolvimento vistos por Miguel Sousa Tavares
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ESTA NOITE SONHEI COM MÁRIO LINO

Miguel de Sousa Tavares

Segunda-feira passada, a meio da tarde, faço a A-6, em direcção a Espanha na companhia de uma amiga estrangeira; quarta-feira de manhã, refaço o mesmo percurso, em sentido inverso, rumo a Lisboa. Tanto para lá como para cá, é uma auto-estrada luxuosa e fantasma. Em contrapartida, numa breve incursão pela estrada nacional, entre Arraiolos e Borba, vamos encontrar um trânsito cerrado, composto esmagadoramente por camiões de mercadorias espanhóis. Vinda de um país onde as auto-estradas estão sempre cheias, ela está espantada com o que vê:
- É sempre assim, esta auto-estrada?
- Assim, como?
- Deserta, magnífica, sem trânsito?
- É, é sempre assim.
- Todos os dias?
- Todos, menos ao domingo, que sempre tem mais gente.
- Mas, se não há trânsito, porque a fizeram?
- Porque havia dinheiro para gastar dos Fundos Europeus, e porque diziam que o desenvolvimento era isto.
- E têm mais auto-estradas destas?
- Várias e ainda temos outras em construção: só de Lisboa para o Porto, vamos ficar com três. Entre S. Paulo e o Rio de Janeiro, por exemplo, não há nenhuma: só uns quilómetros à saída de S. Paulo e outros à chegada ao Rio. Nós vamos ter três entre o Porto e Lisboa: é a aposta no automóvel, na poupança de energia, nos acordos de Quioto, etc. - respondi, rindo-me.
- E, já agora, porque é que a auto-estrada está deserta e a estrada nacional está cheia de camiões?
- Porque assim não pagam portagem.
- E porque são quase todos espanhóis?
- Vêm trazer-nos comida.
- Mas vocês não têm agricultura?
- Não: a Europa paga-nos para não ter. E os nossos agricultores dizem que produzir não é rentável.
- Mas para os espanhóis é?
- Pelos vistos...

(continua)

Anónimo disse...

(Continuação do anterior)

ESTA NOITE SONHEI COM MÁRIO LINO

Miguel de Sousa Tavares

Ela ficou a pensar um pouco e voltou à carga:
- Mas porque não investem antes no comboio?
- Investimos, mas não resultou.
- Não resultou, como?
- Houve aí uns experts que gastaram uma fortuna a modernizar a linha Lisboa-Porto, com comboios pendulares e tudo, mas não resultou.
- Mas porquê?
- Olha, é assim: a maior parte do tempo, o comboio não 'pendula'; e, quando 'pendula', enjoa de morte. Não há sinal de telemóvel nem Internet, não há restaurante, há apenas um bar infecto e, de facto, o único sinal de 'modernidade' foi proibirem de fumar em qualquer espaço do comboio. Por isso, as pessoas preferem ir de carro e a companhia ferroviária do Estado perde centenas de milhões todos os anos.
- E gastaram nisso uma fortuna?
- Gastámos. E a única coisa que se conseguiu foi tirar 25 minutos às três horas e meia que demorava a viagem há cinquenta anos...
- Estás a brincar comigo!
- Não, estou a falar a sério!
- E o que fizeram a esses incompetentes?
- Nada. Ou melhor, agora vão dar-lhes uma nova oportunidade, que é encherem o país de TGV: Porto-Lisboa, Porto-Vigo, Madrid-Lisboa... e ainda há umas ameaças de fazerem outro no Algarve e outro no Centro.
- Mas que tamanho tem Portugal, de cima a baixo?
- Do ponto mais a norte ao ponto mais a sul, 561 km.
Ela ficou a olhar para mim, sem saber se era para acreditar ou não.
- Mas, ao menos, o TGV vai directo de Lisboa ao Porto?
- Não, pára em várias estações: de cima para baixo e se a memória não me falha, pára em Aveiro, para os compensar por não arrancarmos já com o TGV deles para Salamanca; depois, pára em Coimbra para não ofender o prof. Vital Moreira, que é muito importante lá; a seguir, pára numa aldeia chamada Ota, para os compensar por não terem feito lá o novo aeroporto de Lisboa; depois, pára em Alcochete, a sul de Lisboa, onde ficará o futuro aeroporto; e, finalmente, pára em Lisboa, em duas estações.
- Como: então o TGV vem do Norte, ultrapassa Lisboa pelo sul, e depois volta para trás e entra em Lisboa?
- Isso mesmo.
- E como entra em Lisboa?
- Por uma nova ponte que vão fazer.
- Uma ponte ferroviária?
- E rodoviária também: vai trazer mais uns vinte ou trinta mil carros todos os dias para Lisboa.
- Mas isso é o caos, Lisboa já está congestionada de carros!
- Pois é.
- E, então?
- Então, nada. São os especialistas que decidiram assim.

Ela ficou pensativa outra vez. Manifestamente, o assunto estava a fasciná-la.
- E, desculpa lá, esse TGV para Madrid vai ter passageiros? Se a auto-estrada está deserta...
- Não, não vai ter.
- Não vai? Então, vai ser uma ruína!
- Não, é preciso distinguir: para as empresas que o vão construir e para os bancos que o vão capitalizar, vai ser um negócio fantástico! A exploração é que vai ser uma ruína - aliás, já admitida pelo Governo - porque, de facto, nem os especialistas conseguem encontrar passageiros que cheguem para o justificar.

(continua)

Anónimo disse...

(Conclusão)

ESTA NOITE SONHEI COM MÁRIO LINO

Miguel de Sousa Tavares

- E quem paga os prejuízos da exploração: as empresas construtoras?
- Naaaão! Quem paga são os contribuintes! Aqui a regra é essa!
- E vocês não despedem o Governo?
- Talvez, mas não serve de muito: quem assinou os acordos para o TGV com Espanha foi a oposição, quando era governo...
- Que país o vosso! Mas qual é o argumento dos governos para fazerem um TGV que já sabem que vai perder dinheiro?
- Dizem que não podemos ficar fora da Rede Europeia de Alta Velocidade.
- O que é isso? Ir em TGV de Lisboa a Helsínquia?
- A Helsínquia, não, porque os países escandinavos não têm TGV.
- Como? Então, os países mais evoluídos da Europa não têm TGV e vocês têm de ter?
- É, dizem que assim entramos mais depressa na modernidade.

Fizemos mais uns quilómetros de deserto rodoviário de luxo, até que ela pareceu lembrar-se de qualquer coisa que tinha ficado para trás:
- E esse novo aeroporto de que falaste, é o quê?
- O novo aeroporto internacional de Lisboa, do lado de lá do rio e a uns 50 quilómetros de Lisboa.
- Mas vocês vão fechar este aeroporto que é um luxo, quase no centro da cidade, e fazer um novo?
- É isso mesmo. Dizem que este está saturado.
- Não me pareceu nada...
- Porque não está: cada vez tem menos voos e só este ano a TAP vai cancelar cerca de 20.000. O que está a crescer são os voos das low-cost, que, aliás, estão a liquidar a TAP.
- Mas, então, porque não fazem como se faz em todo o lado, que é deixar as companhias de linha no aeroporto principal e chutar as low-cost para um pequeno aeroporto de periferia? Não têm nenhum disponível?
- Temos vários. Mas os especialistas dizem que o novo aeroporto vai ser um hub ibérico, fazendo a trasfega de todos os voos da América do Sul para a Europa: um sucesso garantido.
- E tu acreditas nisso?
- Eu acredito em tudo e não acredito em nada. Olha ali ao fundo: sabes o que é aquilo?
- Um lago enorme! Extraordinário!
- Não: é a barragem de Alqueva, a maior da Europa.
- Ena! Deve produzir energia para meio país!
- Praticamente zero.
- A sério? Mas, ao menos, não vos faltará água para beber!
- A água não é potável: já vem contaminada de Espanha.
- Já não sei se estás a gozar comigo ou não, mas, se não serve para beber, serve para regar - ou nem isso?
- Servir, serve, mas vai demorar vinte ou mais anos até instalarem o perímetro de rega, porque, como te disse, aqui acredita-se que a agricultura não tem futuro: antes, porque não havia água; agora, porque há água a mais.
- Estás a dizer-me que fizeram a maior barragem da Europa e não serve para nada?
- Vai servir para regar campos de golfe e urbanizações turísticas, que é o que nós fazemos mais e melhor.
Apesar do sol de frente, impiedoso, ela tirou os óculos escuros e virou-se para me olhar bem de frente:
- Desculpa lá a última pergunta: vocês são doidos ou são ricos?
- Antes, éramos só doidos e fizemos algumas coisas notáveis por esse mundo fora; depois, disseram-nos que afinal éramos ricos e desatámos a fazer todas as asneiras possíveis cá dentro; em breve, voltaremos a ser pobres e enlouqueceremos de vez.

Ela voltou a colocar os óculos de sol e a recostar-se para trás no assento. E suspirou:
- Bem, uma coisa posso dizer: há poucos países tão agradáveis para viajar como Portugal! Olha-me só para esta auto-estrada sem ninguém!

Anónimo disse...

(Continuação do anterior)

ESTA NOITE SONHEI COM MÁRIO LINO

Miguel de Sousa Tavares

Ela ficou a pensar um pouco e voltou à carga:
- Mas porque não investem antes no comboio?
- Investimos, mas não resultou.
- Não resultou, como?
- Houve aí uns experts que gastaram uma fortuna a modernizar a linha Lisboa-Porto, com comboios pendulares e tudo, mas não resultou.
- Mas porquê?
- Olha, é assim: a maior parte do tempo, o comboio não 'pendula'; e, quando 'pendula', enjoa de morte. Não há sinal de telemóvel nem Internet, não há restaurante, há apenas um bar infecto e, de facto, o único sinal de 'modernidade' foi proibirem de fumar em qualquer espaço do comboio. Por isso, as pessoas preferem ir de carro e a companhia ferroviária do Estado perde centenas de milhões todos os anos.
- E gastaram nisso uma fortuna?
- Gastámos. E a única coisa que se conseguiu foi tirar 25 minutos às três horas e meia que demorava a viagem há cinquenta anos...
- Estás a brincar comigo!
- Não, estou a falar a sério!
- E o que fizeram a esses incompetentes?
- Nada. Ou melhor, agora vão dar-lhes uma nova oportunidade, que é encherem o país de TGV: Porto-Lisboa, Porto-Vigo, Madrid-Lisboa... e ainda há umas ameaças de fazerem outro no Algarve e outro no Centro.
- Mas que tamanho tem Portugal, de cima a baixo?
- Do ponto mais a norte ao ponto mais a sul, 561 km.
Ela ficou a olhar para mim, sem saber se era para acreditar ou não.
- Mas, ao menos, o TGV vai directo de Lisboa ao Porto?
- Não, pára em várias estações: de cima para baixo e se a memória não me falha, pára em Aveiro, para os compensar por não arrancarmos já com o TGV deles para Salamanca; depois, pára em Coimbra para não ofender o prof. Vital Moreira, que é muito importante lá; a seguir, pára numa aldeia chamada Ota, para os compensar por não terem feito lá o novo aeroporto de Lisboa; depois, pára em Alcochete, a sul de Lisboa, onde ficará o futuro aeroporto; e, finalmente, pára em Lisboa, em duas estações.
- Como: então o TGV vem do Norte, ultrapassa Lisboa pelo sul, e depois volta para trás e entra em Lisboa?
- Isso mesmo.
- E como entra em Lisboa?
- Por uma nova ponte que vão fazer.
- Uma ponte ferroviária?
- E rodoviária também: vai trazer mais uns vinte ou trinta mil carros todos os dias para Lisboa.
- Mas isso é o caos, Lisboa já está congestionada de carros!
- Pois é.
- E, então?
- Então, nada. São os especialistas que decidiram assim.

Ela ficou pensativa outra vez. Manifestamente, o assunto estava a fasciná-la.
- E, desculpa lá, esse TGV para Madrid vai ter passageiros? Se a auto-estrada está deserta...
- Não, não vai ter.
- Não vai? Então, vai ser uma ruína!

(continua)

Anónimo disse...

(Conclusão)

ESTA NOITE SONHEI COM MÁRIO LINO

Miguel de Sousa Tavares

- Não, é preciso distinguir: para as empresas que o vão construir e para os bancos que o vão capitalizar, vai ser um negócio fantástico! A exploração é que vai ser uma ruína - aliás, já admitida pelo Governo - porque, de facto, nem os especialistas conseguem encontrar passageiros que cheguem para o justificar.
- E quem paga os prejuízos da exploração: as empresas construtoras?
- Naaaão! Quem paga são os contribuintes! Aqui a regra é essa!
- E vocês não despedem o Governo?
- Talvez, mas não serve de muito: quem assinou os acordos para o TGV com Espanha foi a oposição, quando era governo...
- Que país o vosso! Mas qual é o argumento dos governos para fazerem um TGV que já sabem que vai perder dinheiro?
- Dizem que não podemos ficar fora da Rede Europeia de Alta Velocidade.
- O que é isso? Ir em TGV de Lisboa a Helsínquia?
- A Helsínquia, não, porque os países escandinavos não têm TGV.
- Como? Então, os países mais evoluídos da Europa não têm TGV e vocês têm de ter?
- É, dizem que assim entramos mais depressa na modernidade.

Fizemos mais uns quilómetros de deserto rodoviário de luxo, até que ela pareceu lembrar-se de qualquer coisa que tinha ficado para trás:
- E esse novo aeroporto de que falaste, é o quê?
- O novo aeroporto internacional de Lisboa, do lado de lá do rio e a uns 50 quilómetros de Lisboa.
- Mas vocês vão fechar este aeroporto que é um luxo, quase no centro da cidade, e fazer um novo?
- É isso mesmo. Dizem que este está saturado.
- Não me pareceu nada...
- Porque não está: cada vez tem menos voos e só este ano a TAP vai cancelar cerca de 20.000. O que está a crescer são os voos das low-cost, que, aliás, estão a liquidar a TAP.
- Mas, então, porque não fazem como se faz em todo o lado, que é deixar as companhias de linha no aeroporto principal e chutar as low-cost para um pequeno aeroporto de periferia? Não têm nenhum disponível?
- Temos vários. Mas os especialistas dizem que o novo aeroporto vai ser um hub ibérico, fazendo a trasfega de todos os voos da América do Sul para a Europa: um sucesso garantido.
- E tu acreditas nisso?
- Eu acredito em tudo e não acredito em nada. Olha ali ao fundo: sabes o que é aquilo?
- Um lago enorme! Extraordinário!
- Não: é a barragem de Alqueva, a maior da Europa.
- Ena! Deve produzir energia para meio país!
- Praticamente zero.
- A sério? Mas, ao menos, não vos faltará água para beber!
- A água não é potável: já vem contaminada de Espanha.
- Já não sei se estás a gozar comigo ou não, mas, se não serve para beber, serve para regar - ou nem isso?
- Servir, serve, mas vai demorar vinte ou mais anos até instalarem o perímetro de rega, porque, como te disse, aqui acredita-se que a agricultura não tem futuro: antes, porque não havia água; agora, porque há água a mais.
- Estás a dizer-me que fizeram a maior barragem da Europa e não serve para nada?
- Vai servir para regar campos de golfe e urbanizações turísticas, que é o que nós fazemos mais e melhor.
Apesar do sol de frente, impiedoso, ela tirou os óculos escuros e virou-se para me olhar bem de frente:
- Desculpa lá a última pergunta: vocês são doidos ou são ricos?
- Antes, éramos só doidos e fizemos algumas coisas notáveis por esse mundo fora; depois, disseram-nos que afinal éramos ricos e desatámos a fazer todas as asneiras possíveis cá dentro; em breve, voltaremos a ser pobres e enlouqueceremos de vez.

Ela voltou a colocar os óculos de sol e a recostar-se para trás no assento. E suspirou:
- Bem, uma coisa posso dizer: há poucos países tão agradáveis para viajar como Portugal! Olha-me só para esta auto-estrada sem ninguém!

Anónimo disse...

Com o devido respeito, F. Tenreiro não percebeu.
Para que serve medir «o quê», se esse «o quê» já deixou de ser isso? Em Portugal há um especialista nessa falácia econométrica, que bate todos os outros, não deixando de ganhar com isso muito dinheiro. São os famosos “estudos económicos de Augusto Mateus”, sobre algumas realidades portuguesas. De facto, são exemplares desse erro e dessa falácia. Calculam muito para um determinado cenário, mas quase sempre o cenário muda e os cálculos ficam obsoletos.
É o mesmo que acontece com as “estatísticas publicadas pelo IDP”. Não vale a pena fingir. Essas «estatísticas» não servem para nada. Não permitem uma base válida para a «tomada de decisão». Sejam aos governos dos partidos A, B ou C. Todos os que trabalham no desporto sabem que não correspondem, nem fazem correctamente o diagnóstico da realidade. Não porque não estejam bem-feitas em termos técnicos. Mas porque partem de premissas insuficientes, e de um contexto desadequado à realidade desportiva nacional e internacional. Basta analisar a amostra, os métodos e os procedimentos de validação dos «resultados». Aquilo que dizem «é verdade», mas a «verdade» de um «quê» que já foi ultrapassado pela realidade actual. Portanto, ficam obsoletas para qualquer validade sobre o presente e o futuro da política desportiva.
Em termos científicos, só se consegue medir um «quê» dentro dele mesmo. Dirac e Gödel têm essa demonstração feita há muito. E o primeiro também é «prémio Nobel». E o segundo não é, mas tem mais influência na matemática do que muitos «prémios nóbeis» juntos.
O mínimo que conseguem, e com os sabidos imensos limites do cálculo infinitesimal e topológico, é estabelecerem a «relação» de «um outro» com «outro outro». Isto é, com outro «quê», mas apenas na condição de ser uma «diferença» (ou «gradiente»).
Se vamos medir um desporto que já deixou de ser isso, o que estamos a medir? E para que servem as estatísticas daquilo que ele já não é? Se vamos fazer agora melhor estatísticas, para um desporto que vai amanhã deixar de ser o que é, quais são as que devemos fazer até amanhã, isto é, na próxima legislatura?
Sobre os critérios, o contexto e as premissas do que é o desporto na actualidade e na próxima década toda a gente está calada. Ou acha que sabe. Querem, assim, com este facilitismo, saltar a condição prévia às estatísticas poderem alguma vez serem úteis e boas.

Anónimo

Anónimo disse...

(Continuação do anterior)

ESTA NOITE SONHEI COM MÁRIO LINO

Miguel de Sousa Tavares

Ela ficou a pensar um pouco e voltou à carga:
- Mas porque não investem antes no comboio?
- Investimos, mas não resultou.
- Não resultou, como?
- Houve aí uns experts que gastaram uma fortuna a modernizar a linha Lisboa-Porto, com comboios pendulares e tudo, mas não resultou.
- Mas porquê?
- Olha, é assim: a maior parte do tempo, o comboio não 'pendula'; e, quando 'pendula', enjoa de morte. Não há sinal de telemóvel nem Internet, não há restaurante, há apenas um bar infecto e, de facto, o único sinal de 'modernidade' foi proibirem de fumar em qualquer espaço do comboio. Por isso, as pessoas preferem ir de carro e a companhia ferroviária do Estado perde centenas de milhões todos os anos.
- E gastaram nisso uma fortuna?
- Gastámos. E a única coisa que se conseguiu foi tirar 25 minutos às três horas e meia que demorava a viagem há cinquenta anos...
- Estás a brincar comigo!
- Não, estou a falar a sério!
- E o que fizeram a esses incompetentes?
- Nada. Ou melhor, agora vão dar-lhes uma nova oportunidade, que é encherem o país de TGV: Porto-Lisboa, Porto-Vigo, Madrid-Lisboa... e ainda há umas ameaças de fazerem outro no Algarve e outro no Centro.
- Mas que tamanho tem Portugal, de cima a baixo?
- Do ponto mais a norte ao ponto mais a sul, 561 km.
Ela ficou a olhar para mim, sem saber se era para acreditar ou não.
- Mas, ao menos, o TGV vai directo de Lisboa ao Porto?
- Não, pára em várias estações: de cima para baixo e se a memória não me falha, pára em Aveiro, para os compensar por não arrancarmos já com o TGV deles para Salamanca; depois, pára em Coimbra para não ofender o prof. Vital Moreira, que é muito importante lá; a seguir, pára numa aldeia chamada Ota, para os compensar por não terem feito lá o novo aeroporto de Lisboa; depois, pára em Alcochete, a sul de Lisboa, onde ficará o futuro aeroporto; e, finalmente, pára em Lisboa, em duas estações.
- Como: então o TGV vem do Norte, ultrapassa Lisboa pelo sul, e depois volta para trás e entra em Lisboa?
- Isso mesmo.
- E como entra em Lisboa?
- Por uma nova ponte que vão fazer.
- Uma ponte ferroviária?
- E rodoviária também: vai trazer mais uns vinte ou trinta mil carros todos os dias para Lisboa.
- Mas isso é o caos, Lisboa já está congestionada de carros!
- Pois é.
- E, então?
- Então, nada. São os especialistas que decidiram assim.

(Continua)

Anónimo disse...

(continuação)

ESTA NOITE SONHEI COM MÁRIO LINO

Miguel de Sousa Tavares

Ela ficou pensativa outra vez. Manifestamente, o assunto estava a fasciná-la.
- E, desculpa lá, esse TGV para Madrid vai ter passageiros? Se a auto-estrada está deserta...
- Não, não vai ter.
- Não vai? Então, vai ser uma ruína!
- Não, é preciso distinguir: para as empresas que o vão construir e para os bancos que o vão capitalizar, vai ser um negócio fantástico! A exploração é que vai ser uma ruína - aliás, já admitida pelo Governo - porque, de facto, nem os especialistas conseguem encontrar passageiros que cheguem para o justificar.
- E quem paga os prejuízos da exploração: as empresas construtoras?
- Naaaão! Quem paga são os contribuintes! Aqui a regra é essa!
- E vocês não despedem o Governo?
- Talvez, mas não serve de muito: quem assinou os acordos para o TGV com Espanha foi a oposição, quando era governo...
- Que país o vosso! Mas qual é o argumento dos governos para fazerem um TGV que já sabem que vai perder dinheiro?
- Dizem que não podemos ficar fora da Rede Europeia de Alta Velocidade.
- O que é isso? Ir em TGV de Lisboa a Helsínquia?
- A Helsínquia, não, porque os países escandinavos não têm TGV.
- Como? Então, os países mais evoluídos da Europa não têm TGV e vocês têm de ter?
- É, dizem que assim entramos mais depressa na modernidade.

Fizemos mais uns quilómetros de deserto rodoviário de luxo, até que ela pareceu lembrar-se de qualquer coisa que tinha ficado para trás:
- E esse novo aeroporto de que falaste, é o quê?
- O novo aeroporto internacional de Lisboa, do lado de lá do rio e a uns 50 quilómetros de Lisboa.
- Mas vocês vão fechar este aeroporto que é um luxo, quase no centro da cidade, e fazer um novo?
- É isso mesmo. Dizem que este está saturado.
- Não me pareceu nada...
- Porque não está: cada vez tem menos voos e só este ano a TAP vai cancelar cerca de 20.000. O que está a crescer são os voos das low-cost, que, aliás, estão a liquidar a TAP.
- Mas, então, porque não fazem como se faz em todo o lado, que é deixar as companhias de linha no aeroporto principal e chutar as low-cost para um pequeno aeroporto de periferia? Não têm nenhum disponível?
- Temos vários. Mas os especialistas dizem que o novo aeroporto vai ser um hub ibérico, fazendo a trasfega de todos os voos da América do Sul para a Europa: um sucesso garantido.
- E tu acreditas nisso?
- Eu acredito em tudo e não acredito em nada. Olha ali ao fundo: sabes o que é aquilo?
- Um lago enorme! Extraordinário!
- Não: é a barragem de Alqueva, a maior da Europa.
- Ena! Deve produzir energia para meio país!
- Praticamente zero.

(continua)

Anónimo disse...

(conclusão)

ESTA NOITE SONHEI COM MÁRIO LINO

Miguel Sousa Tavares

- A sério? Mas, ao menos, não vos faltará água para beber!
- A água não é potável: já vem contaminada de Espanha.
- Já não sei se estás a gozar comigo ou não, mas, se não serve para beber, serve para regar - ou nem isso?
- Servir, serve, mas vai demorar vinte ou mais anos até instalarem o perímetro de rega, porque, como te disse, aqui acredita-se que a agricultura não tem futuro: antes, porque não havia água; agora, porque há água a mais.
- Estás a dizer-me que fizeram a maior barragem da Europa e não serve para nada?
- Vai servir para regar campos de golfe e urbanizações turísticas, que é o que nós fazemos mais e melhor.
Apesar do sol de frente, impiedoso, ela tirou os óculos escuros e virou-se para me olhar bem de frente:
- Desculpa lá a última pergunta: vocês são doidos ou são ricos?
- Antes, éramos só doidos e fizemos algumas coisas notáveis por esse mundo fora; depois, disseram-nos que afinal éramos ricos e desatámos a fazer todas as asneiras possíveis cá dentro; em breve, voltaremos a ser pobres e enlouqueceremos de vez.

Ela voltou a colocar os óculos de sol e a recostar-se para trás no assento. E suspirou:
- Bem, uma coisa posso dizer: há poucos países tão agradáveis para viajar como Portugal! Olha-me só para esta auto-estrada sem ninguém!

Anónimo disse...

O Anónimo das 15:55, esse, é ainda o melhor exemplo da «falácia».
Quer ele que nos preocupemos com um facto-do-passado, como se fosse um assunto do presente. Está a querer vender-nos banha-da-cobra. Parece aqueles «especialistas» que, nos anos 50, se plantavam nas estações de camionagem para vender a estátua do Marquês de Pombal aos que vinham da Província. O que vale é que é sem o saber.
Percebe-se pelo teor da mensagem que está todo inchado, cheio de moralidade e de «certeza». Mas, na prática, está a falar de fantasias sem o perceber. Porque o «campo de golfe» já não é assunto que interesse a alguém. Tinha-o sido antes. Antes de ser construído. Portanto está a falar de nada (eu acho que está a fazer propaganda por alguém), julgando que está a falar de alguma coisa prática e consistente para a qual valha a pena gastar energia.
Durante mais de 30 anos andaram a «decidir», e vai um político e fez qualquer coisa nesse «buraco verde e degradado». Agora já não interessa. Em desporto diz-se que «uma equipa joga o que a outra a deixa jogar».
Mas vejamos o contexto (ou o cenário) para percebermos a ingenuidade dos que acreditam na «objectividade estatístico-matemática».
Aqui, neste caso, segundo dizem, quem esteve por detrás de «que não se fizesse nada» parecem ter sido os testas-de-ferro dos interesses imobiliários para esse local. Ajudados por alguém que queria para ali um estádio de outra modalidade. Tudo atado, era um grande condomínio de luxo com umas modalidades para o lazer de quem lá podia comprar um barraquito.
As estatísticas que medem num cenário ou no outro são as mesmas. Mas não nos dizem absolutamente nada sobre a realidade, nem sobre a «verdade dessa realidade».

Anónimo

Anónimo disse...

Ao anónimo das 18:25

Em 40 linhas gastou 20, ou seja 50% do texto, para dizer que o anónimo "falacioso" (o 3.º da sua lista falaciosa) das 15:55, esteve

"a falar de nada (eu acho que está a fazer propaganda por alguém), julgando que está a falar de alguma coisa prática e consistente para a qual valha a pena gastar energia."

Se aquele anónimo falou do nada, que nada de consistente disse, e para o qual não valia a pena gastar energia, pergunto:

Como conseguiu gastar 50% da energia do texto para falar do nada?

Só gostava que o anónimo das 18:25 nos informasse por quem é que está a fazer propaganda, partindo do princípio falacioso de que, o que aqui está em jogo, afinal, é saber quem é que anda a fazer propaganda de quem, a mando de quem, e contra quem.

Isto, partindo do principio de que o bom julgador a si se julga.

João Almeida disse...

Agradeço a todos os anónimos, e em particular ao Fernando Tenreiro, todos os comentários e contributos, mesmo aqueles que em nada dignificam quem os escreve.

Fico agradavelmente surpreendido com a adesão e discussão em torno deste tema. É natural existirem diversos e conflituosos posicionamentos, bem como filiações conceptuais e politicas divergentes sobre o mesmo.

As minhas referências estão
mencionadas e assumidas no post. Não quero, contudo, e para já, deixar de fazer algumas breves observações. Aproveito, para isso, uma frase simples de F Tenreiro:

“Há agentes que limitam a liberdade dos outros”

A concepção de desenvolvimento como liberdade, a partir da valorização do capital social dos cidadãos não é uma ideia nova. Muito menos exclusiva do pensar sociológico e dos dois autores que mencionei. Amartya Sen ou John Friedmann são apenas duas de várias referências de outros domínios científicos que acompanham esta matriz, na ciência económica. Ainda ontem a encíclica de Bento XVI cauciona esta perspectiva, onde se enraíza muita da doutrina social da Igreja, inclusivé os fundamentos controversos da Teologia da Libertação.

Se a liberdade dos agentes envolvidos no desporto nacional se mantiver no plano formal sem tradução nas práticas materiais, reproduzir-se-ão muitas das ineficiências descritas nos comentários ao post.

Desde logo por aqueles que se confortam à sombra das arbitrariedades políticas e delas dependem para subsistir e garantir a subsistência das organizações que governam.

Não havendo espaço público de qualidade para a afirmação das liberdades individuais, as politicas públicas não se fundarão no combate de ideias, no escrutinio público e numa ética de responsabilidade, mas em projectos de poder pessoal e contingências de oportunidade imediata, sem concepção estratégica ou plano de desenvolvimento.

Nestes casos, os estudos apenas servem para ratificar decisões políticas previamente estabelecidas, e não para suportarem e enformarem todo um processo democrático de tomada de decisão.

É bem verdade que por vezes tudo isto bloqueia a celeridade das reformas. É bem verdade que o ciclo de vida politico e mediático não se coaduna com um tempo longo. É bem verdade que da democracia representativa à democracia participativa vai um enorme passo.

Os indicadores estão aí para comprovar as diferenças de desenvolvimento daqueles que assumiram e deram esse passo.

O desporto nacional ainda tem um longo fosso a transpor.

Esperemos que esteja enganado e esta seja uma “falácia”.

Prometo voltar ao tema…

ftenreiro disse...

tenho de voltar às estatísticas

elas são o que cada cidadão quiser que elas sejam

em termos económicos a informação é um bem que tem um custo de produção muito elevado e cujo custo de produção é zero para o consumidor

o que os países desenvolvidos de todo o mundo fazem é pagar através do seu Estado, a União Europeia também o faz: produz e dá gratuitamente na Internet

ainda há poucos anos pedia-se uns numeros ao INE e o custo eram uns milhares de escudos

actualmente o INE dá na Internet e se perguntarmos o serviço de atendimento a clientes é acessível e faz um bom trabalho

se os valores do IDP, os poucos que mete cá fora, são ou não úteis, isso depende da arte de quem pega neles

caro anónimo, deixe a verosimilhança das estatísticas em paz e invista na da sua arte de pegar nelas e fazer delas aquilo que você quer bem feito, para vender a terceiros com lucro



quanto aos estudos
um colega e amigo disse-me ontem que não achava que o IDP não devia ter um área de estudos, planeamento, prospectiva ou o que quer que fosse, podia quando muito comprar estudos

fiquei igualzinho ao Manuel Pinho

O meu colega e amigo ignora que:
A economia, saúde, cultura, finanças, educação, obras públicas que são os maiores ministérios do país têm áreas de estudos

elas são úteis para sustentar a produção de medidas públicas eficazes e eficientes.
a cultura pública para a existência destes órgãos não choca com a das universidades porque o trabalho feito num e noutro lugar é distinto e complementar

Recentemente fiz um novo trabalho e foram surgindo novas questões sobre o modelo de produção desportiva português
caberá ao meu chefe usar aquilo da melhor forma para a sua política desportiva

o que acontece é que eu tenho um contacto directo diário com a produção desportiva, os seus agentes e fui encontrar novas perspectivas públicas, neste caso, e que não são as que encontro quando trabalho na faculdade as quais têm uma preocupação científica acima da utilidade da política desportiva

reconheço que os passos que dei agora já deveriam ter sido dados há anos, mas como não existem estudos na administração pública desportiva isso prejudica o desporto

politicamente o que se passou nesta legislatura sob a direcção do PS teve o beneplácito dos partidos da oposição

noutros sectores, o PS teve maior oposição o que não aconteceu no desporto

isso teria beneficiado todos

não há concepção de políticas desportivas no desporto e isso deve-se em primeiro lugar à inexistência de uma cultura de estudos desportivos úteis ao desenvolvimento

os órgãos do Estado do desporto estão a ser reduzidos à minima expressão:
- fazem contratos-programa que juridicamente não são cumpridos, Pequim
- fazem leis de bases e seus desenvolvimentos numa base puramente juridica
- o desporto não tem uma área dedicada à recreação
- o desporto não tem uma área dedicada ao desporto profissional, veja-se os salários em atraso no profissional (e no amador)
- nas infra-estruturas é conivente com o que é mono e megalomania
- investe num campo de golfe escusado
- vende património, cultura e história para pagar o campo que vai oferecer à federação
- o desporto não tem uma perspectiva ética, cultural e histórica do seu ser e do seu devir


O desporto actual e resultados desta legislatura são os matraquilhos do futebol para o qual o PSD, PC, BE também se envolveram com passos inconsequentes ou pela ausência

para as pessoas do desporto isto é uma objectiva perda de tempo e dinheiro

já não falo da população que não passa pelo desporto quando poderia dele beneficiar às resmas