segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Da beleza e da verdade ausentes

O que me sustenta é a beleza. (...) Rezo a tudo o que floresce e frutifica. Nada que cante ou que dance me é indiferente. Nada que fira ou destrua me é semelhante.
Faiza Hayat

Diz-se que a beleza é a sombra de Deus na terra. E Platão definiu a verdade como a beleza no seu máximo esplendor. Ambas as asserções estabelecem uma ligação de reciprocidade causal entre a beleza e a verdade, a estética e a ética, o bom e o bem, o moral e o belo; e, por outro lado, relacionam a mentira e a fealdade, sugerem que estas saem da barriga uma da outra, que há um cordão umbilical a unir as duas. Mentira e fealdade são coisas do demo, do ‘cão’ e do ‘chifrudo’.
Ora isto suscita-nos muitas inquietações e interrogações, sobretudo quando olhamos ao nosso redor e observamos o panorama cívico que nos cerca. Assenta nos pilares da beleza o Mundo imundo – logo não mundo - que está a crescer e a impor-se à nossa volta? São o belo e o verdadeiro que constituem as marcas evidentes deste tempo de neblina e cerração em que vivemos? Irradia beleza e verdade o País que estamos a construir?
Nem o Mundo nem o País são uma entidade resultante de golpes de magia, de sonhos de grandeza, de anseios, desejos e ideais utópicos e generosos ou da abstracção fantasiosa. Um e outro são a expressão concreta dos modos de acção, de comportamento, empenhamento e funcionamento dos diferentes actores, sectores e actividades que os perfazem.
É de beleza e verdade o contexto social que, já não na calada da noite ou na vergonha do lusco-fusco, mas à luz do meio-dia, se implanta com armas e bagagens e toma posse absoluta, despudorada, obscena e desumanizante da nossa vida?
É de beleza e verdade o comportamento da economia, da banca e dos demais segmentos económico-financeiros? É bela a conduta fiscal das empresas, das associações comerciais e profissões liberais?
São belos os princípios que subjazem às propostas e reformas formuladas e recomendadas em nome e no interesse dos beneficiários do pensamento neoliberal? É de beleza e verdade a indiferença com que são encarados hoje os trabalhadores por conta de outrem, os desempregados, reformados, pobres e idosos? São a beleza, a verdade e a recta intenção que presidem ao reformismo em curso nos mais diversos campos, às leis de trabalho, à flexibilização dos vínculos laborais, à liquidação dos direitos e garantias sociais e dos laços de solidariedade, à destruição do que é sólido, à exaltação do que é líquido, à instauração e exploração do capital do medo, das inseguranças e ansiedades, à produção consciente e objectiva de danos colaterais, à liberalização dos despedimentos e às demais medidas tão reclamadas e enaltecidas pelos arautos do mercado selvagem?
São edificantes, éticos e estéticos os fundamentos oficiais da convulsão provocada no domínio da educação básica e secundária, bem como no ensino superior? Inspiram-se na verdade e beleza a caça e a campanha de descrédito movidas aos professores, à sua honorabilidade e autoridade, tal como os regimes e regulamentos impostos à organização e ao governo das universidades públicas?
Se fossem ditadas pela beleza e verdade as intenções propaladas e as finalidades encobertas, haveria necessidade de recorrer a máquinas de propaganda tão gigantescas, alienantes e manipuladoras?
São a verdade, a beleza, a independência e a isenção que determinam a conduta da comunicação social face aos diversos poderes e tutelas e o seu relacionamento com o universo dos consumidores? São belos os motivos e justas as razões que levam os media a conceder tempo de antena aos prevaricadores, dando-lhes oportunidades aumentadas de atirarem areia para os olhos dos cidadãos ingénuos e incautos? Chama-se a isto deontologia profissional?
Inspiram-se na verdade e beleza a actuação dos políticos, a repartição de prebendas e sinecuras entre si, a vinculação a interesses e privilégios ocultos e dissimulados, a administração e legislação da coisa pública a favor de lobies, coutadas e corporações privadas?
É o apego à verdade, à transparência e à obrigação de equidade que comanda o nosso sistema judicial de cima a baixo, em todas as suas estruturas? Terão todos os cidadãos direitos iguais e possibilidades reais de acesso à justiça? É esta cega, surda e muda face aos diferentes estatutos sócio-económicos dos indivíduos?
É belo o futebol? Sim, é bela a coreografia das suas acções. É belíssimo como jogo balizado pelo ideal desportivo e como palco de representação simbólica da trama da vida e da tentativa denodada de superação e sublimação dos instintos que moram dentro de nós. É belíssimo enquanto campo de respeito e cultivo de princípios e normas de civismo que a todos nos obrigam. É belíssimo quando a ética ganha forma resplandecente e corpo levitante com a ajuda do esmeril apurado da estética das emoções.
Mas é assim belo todo o universo do futebol? Não, não é; simplesmente porque nem todo tem nascedoiro no berço da verdade. No plano da sua organização, do seu negócio e mediatização muito do futebol é mentiroso, feio e falso. Algum é até cobarde; tão cobarde que vive escondido e não tem coragem de mostrar às claras o seu rosto de desdouro. Outro, pelo contrário, já assimilou de tal maneira a fealdade como natureza intrínseca que não tem qualquer rebuço em exibi-la publicamente, ufano e orgulhoso das suas vilanias. Enfim há dimensões do futebol que parecem dispensar noções claras e firmes de demarcação entre verdade e mentira, beleza e fealdade, limpeza e sujeira.
O que se diz do futebol aplica-se inteiramente à política. Que contributo pode dar a maneira vigente de fazer política para um País e um Mundo moldados pela beleza e verdade? Nenhum; ninguém pode dar o que não tem. Por isso o lado mais visível e badalado da política comanda, avaliza, legitima e reforça a versão que está a ser edificada pelos outros configuradores da Nação. Estão bem uns para os outros. No País do sucesso e na política tragicómica que o suporta a beleza e a verdade são, pouco a pouco, categorias ausentes.
Paulatinamente, o carácter é forçado à emigração e ao exílio. Então falar na sua formação e apontar a retomada do caminho dos deveres – isso tornou-se objecto de chacota e sinónimo de ingenuidade! O mesmo vale para a invocação da seriedade e honestidade.
Mas… ainda esperam os cidadãos pela verdade? Não estão já completa e inexoravelmente conformados ao ludíbrio, à farsa e falsidade? No País e no Mundo - eis um facto incontornável - está a perder-se a verdade da palavra e do compromisso assumido. A inverdade tornou-se existencial; estamos cada vez mais instalados na mentira, é dela que se parte e é ela que entretém e vende. É da mentira que se tece o novo tipo de vida e está contaminado por ela o ar que se respira. Contudo a sociedade finca-se e constitui-se na verdade; a que pratica a mentira condena-se à destruição e a desaparecer ou, no mínimo, agrava as dificuldades para resolver os seus problemas.
Neste Natal recriemos a verdade e a beleza dos sentimentos, exigências e procedimentos, das palavras, das intenções, das atitudes, dos gestos e juramentos. Façamos disto o berço do nascimento do Deus Menino, do imaginário mais lindo e sublime que os humanos conseguem sonhar para embelezar e redimir a sua vida. Pode ser que, deste jeito, ainda consigamos reencontrar a nossa identidade.

5 comentários:

Luís Leite disse...

Muito discutível, filosoficamente, esta abordagem estética do comportamento social.
Depreende-se do texto que o "belo" transparece inevitavelmente da boa ética, da boa moral.
Entramos no mundo das aparências.
Por outro lado, alguns dos criadores do "belo" foram psicopatas ou seres marginais, pouco ou nada preocupados com valores morais ou éticos. Maus exemplos. Nas artes como no desporto.
Julgo que a beleza, só por si, poderá ou não ter a ver com a moral e a ética. A menos que entremos nos domínios da mais completa subjectividade.
Quanto ao Natal, festa de uma religião, transformou-se, com o mundo pós-moderno, na festa do consumo, a pretexto da manutenção, episódica e periódica, da reunião das famílias.
Não está em causa o idealismo do autor que, procurando encontrar respostas e caminhos, é merecedor de apoio sem quaisquer reservas.

jorge bento disse...

Caro Luís Leite:

Agradeço e aprecio as suas considerações.
Não consigo separar a ética e a estética. De resto considero a estética e a beleza os bens supremos da existência. É de estética e beleza que andamos carecidos no sentimentos, nos desejos, nas aspirações, nos ideais, nas atitudes, nas palavras, nos comportamentos, nos actos e gestos, nas relações e oposições, nas maneiras de olhar o outro, o diferente e estranho etc.
Quanto ao Natal, ele simboliza um momento em que sonhamos com outro mundo, com outra vida, com outros e melhores modos de ser humano. Esta dimensão 'religiosa' e simbólica é deveras importante.

Luís Leite disse...

Caro Professor:

Enquanto ciência de génese idealista ocidental e clássica, autónoma na Filosofia, a Estética rege-se por cânones e regras axiomáticas rígidas, objectivas e universais, não sujeitas a interpretações subjectivas ou circunstanciais de conceitos diversos de "beleza", modas ou tendências (não farei aqui, obviamente, citações de autores).
Assim, o enquadramento que daremos à "beleza" reclamada, enquanto comportamental, é essencialmente moral e ético, não artístico. Identifica-se aqui o "belo" com o "Bem moral".
Tal como a reclamada (no seu texto) "verdade" (não existe "a" verdade absoluta), esta "beleza" tem uma componente subjectiva/relativa importante e não negligenciável.
Sempre existiram pessoas feias que são lindas e vice-versa.
Os critérios escolhidos por si são os que resultam da tradição moral cristã associada ao Natal. Que todos nós aceitamos como "um" modelo de virtudes. Também no Desporto.
Os meus votos de um bom Natal para si e para os que nos leram.

jorge bento disse...

Caro Luís Leite:

Mais uma vez o seu comentário foi deveras pertinente. Ele desafia-me para um esforço de clarificação. Quando falo de arte é no sentido da 'arété' dos gregos, que engloba um misto de técnica, de virtuosismo e excelência. Também no tocante a beleza não sigo as definições da moda; ligo o belo ao bom, ao genuíno, ao sincero (sem cera), ao autêntico e verdadeiro e não ao postiço, ao superficial e supérfluo. Por isso mesmo vejo a ética e a estética a viverem em comunhão de bens.
Muito obrigado pelas suas achegas!

jorge bento disse...

Caro Luís Leite:

Em complemento da reacção de há pouco, deixo-lhe esta passagem de um texto de Ronaldo Monte, meu amigo e Professor de Psiquiatria da Universidade Federal da Paraíba, Brasil: O jardineiro “trabalha na contracorrente do esforço dos governos e grandes corporações em transformar o planeta num deserto infértil. Ele trabalha com zelo para a beleza do mundo. É isto que o torna perigoso”.