Jorge de Sena
São os indicadores desportivos que nos colocam na cauda da Europa. São os resultados dos níveis desportivos de excelência que nos comprometem quando comparados com países de semelhante estatuto socioeconómico. São as oportunidades perdidas na organização de grandes eventos para gerar uma nova dinâmica de desenvolvimento desportivo. É a crise no associativismo voluntário, ou no desporto escolar. A falta de rigor técnico e de critérios de eficiência nas opções de investimento no parque desportivo. O débito legislativo inconsequente. As disfuncionalidades organizacionais das federações desportivas. As carências de estudos que confirmem, ou infirmem, tudo isto e avaliem o impacto das politicas desportivas…
Dobram-se anos - décadas até - onde os actores políticos e desportivos, respigam convenientemente, ao sabor da agenda política e mediática, estes e outros problemas, para salientarem a necessidade de mudança, expiarem os pecados do passado, ou realçarem a importância de uma medida específica, pomposamente anunciada como estruturante para um novo rumo.
Neste cenário, muito não passa do papel e de wishfull thinkings. Mesmo as medidas mais meritórias têm um efeito pífio e pontual. Têm-no porque aqueles são problemas que se deparam e florescem pela ausência de um quadro de referência na produção de políticas públicas desportivas. Por falta de uma abordagem estratégica e conceptual do sistema desportivo que atribua sentido e sustentabilidade a cada política, a cada medida concreta.
A carência de um plano de desenvolvimento que atribua um sentido, um desígnio, estabeleça compromissos, defina responsabilidades e se comprometa com medidas concretizáveis em objectivos mensuráveis, torna o país desportivo cada vez mais refém de interesses políticos circunstânciais e happenings mediáticos. A ausência de uma matriz sólida de bem comum para o desporto transforma a sua governação num roteiro casuístico ao sabor da espuma dos dias, afastando-se de vínculos duráveis e do compromisso no tempo com as diferentes perspectivas de cada interveniente, na opção por uma estratégia clara e escrutinada pelos cidadãos. Neste contexto não admira que Portugal seja dos países da União Europeia com maior produção normativa para o desporto e dos poucos sem um programa estratégico abrangente para esta área, com os custos que tal acarreta. Não deixo de ficar curioso se um dia aplicarem-se instrumentos de avaliação do impacto da regulação na legislação desportiva. Talvez aí se venha a ter uma mínima noção do custo e do tempo perdido nestes anos.
Aqui chegados poder-se-à dizer que o sucesso do planeamento estratégico e de um quadro de orientação das políticas públicas depende mais dos mecanismos institucionais e dos valores, regras, crenças e padrões éticos dos seus actores, do que propriamente dos objectivos concretos que nelas se expressam.
E o quadro de valores descredibiliza as instituições, debilita a intervenção cívica no espaço político e transforma-o num contexto de promoção social, oportunismo e carreirismo profissional, marcado pela superficialidade no debate democrático e ideológico, onde o poder é cada vez mais um mecanismo de diluição da responsabilidade política. Contribui para uma Administração – a todos os seus níveis - pouco transparente, pouco flexível, negligente no cumprimento da lei, pouco independente, desorganizada e ineficiente, na qual medram os clientelismos que cativam o Estado a interesses particulares, onde a legitimidade funcional – negociada entre parceiros - se sobrepõe à legitimidade processual – sufragada pelo voto. Desmobiliza os cidadãos e aliena os corpos sociais intermédios de um ethos de rigor e trabalho, para florescer uma cultura de vitimização e dependência do Estado que o corrompe a partir das micro relações sociológicas do quotidiano. Do pequeno favor, da "cunha", do "empurrãozinho" no processo, de mais "meia horinha" de treino no pavilhão...
Assim, neste cenário, quiçá hiperbolizado, e não exclusivo do nosso país, é evidente que a ausência de um modelo de desenvolvimento protege os interesses políticos, mais preocupados em adaptar-se e resistir à situação - cavalgando sobre soundbytes e administrando habilmente benesses pelos interesses instalados -, do que em evoluir, assumir riscos e se comprometerem a chegar a bom porto neste mar revolto. E protege-os na mesma proporção com que agrava o acentuar das debilidades sistémicas sujeitas a meros paliativos, ou à inacção completa.
Cabe aos demais intervenientes desportivos – à sociedade desportiva - saber até quando pretendem continuar a navegar neste mar à vista onde o conforto de uma mão "amiga" é um valor seguro quando o barco se está a afundar.
4 comentários:
Mais uma análise diagnóstica muito lúcida da nossa realidade político-desportiva.
O associativismo desportivo enquanto mola real da nossa prática desportiva informal cada se confina mais às pequenas colectividades de bairro.
Tudo o resto é um mar de interesses político-financeiros, os chamados tachos institucionais e as vantagens pessoais que deles se vão tirando.
Pensar em estratégia para o desporto português, só é viável fora do sistema. Como aqui neste blogue, o que é pouco, muito pouco.
Desportivamente, Portugal continuará a ser o "país da bola". O país da "clubite alarve", das SADes falidas, jogado quase exclusivamente por estrangeiros.
O país em que o que interessa é reforçar incessantemente os plantéis, sem se saber de onde vem o dinheiro (muitos milhões) e para onde vai a seguir.
Em que "demais intervenientes desportivos" deposita o autor esperança ou capacidade de mudar seja o que for?
Caro Luís Leite
Quando deixar de acreditar que o trabalho, o planeamento, o rigor, a competência técnica, a imparcialidade e a isenção são valores que norteiam as boas práticas e elementos geradores de mudança começo mais a pensar em salvar-me deste país do que em salvá-lo.
Diariamente sou confrontado com inúmeros exemplos do que aqui escrevi, e do que você comentou. Mas estaria a ser injusto se não lhe referisse também os projectos de sucesso que conseguem afirmar-se à margem deste "mar de interesses político-financeiros".
De cada vez que um destes exemplos se consolida e é exposto, afirma-se uma alternativa ao caminho da institucionalização acéfala num círculo vicioso de curto prazo ao sabor inconsequente do momento politico-mediático, saltam à vista as suas debilidades e encurta-se o espaço para as manobras de bastidores de actores cada vez menos confortavelmente instalados.
De cada vez que tiverem de prestar contas, de assumir responsabilidades, de responderem pela sua gestão, expõem as fragilidades da ausência de uma orientação estratégica e separa-se o trigo do joio. Não é assim tão complexo. Trata-se, tão simplesmente, de fazer funcionar e cumprir com as regras do processo democrático e do Estado de direito. Haja vontade de jogar neste tabuleiro.
Caro João Almeida:
Pois é... O problema é que não se vê ser "assumir responsabilidades e responder pela gestão ou ausência de orientação estratégica". Nobody cares... Tudo continua na mesma ou pior.
Aliás, politicamente, o Desporto em Portugal, com excepção do "mundo da bola", do aproveitamento ocasional que se faz das medalhas obtidas nas restantes modalidades, da promoção de determinados eventos ou ideias megalómanas e inconsequentes e de muita legislação demagógica mas "políticamente correcta", é muito pouco valorizado a nível do Governo e da Assembleia da República.
Nobody really cares!
A cultura desportiva dos que decidem é, na generalidade, muitíssimo fraca ou mesmo nula, não indo além da mera clubite aguda.
Já agora, gostava de conhecer alguns dos "projectos de sucesso" que refere... Devo andar distraído.
Mas gostava de conhecê-los.
Caro Luis Leite
Não posso deixar de concordar consigo.
Quanto a exemplos de boas práticas e projectos de sucesso, neste blogue já se retrataram alguns deles e por certo continuará a fazê-lo.
Não tenho dúvidas que ao longo da sua experiência já tenha contactado com vários.
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