Eles comem tudo… - era assim a passagem de uma das muitas e justas canções do cívico protesto de Zeca Afonso, entoadas às escondidas da polícia do regime anterior ao 25 de Abril de 1974. Ela fazia todo o sentido naquela época, mas ainda o faz mais nesta conjuntura de uma democracia pervertida e putrefacta. Só que vai rareando a coragem para a assumir.
Como se dizia na minha aldeia do Nordeste Transmontano: "o Céu é de quem o ganha e o mundo é de quem mais arrebanha". Ora, como se sabe, nos tempos que correm o mérito para ganhar o Céu não faz parte da ordem do dia; em vigor está o arrebanhar o mais que se puder, por todo e qualquer meio. Vê-se à vista desarmada e às escâncaras que o país foi abocanhado até ao tutano; a fractura entre os muito ricos e o cada vez maior número de pobres é abissal. Estamos entregues a dois clãs: um é o do dinheiro arrebanhado às carradas nas fraudulentas operações bancárias; o outro é o dos lucros e dízimos cobrados em negociatas sujas, envolvendo relações promíscuas entre a política e o polvo das obras grandes e pequenas, do ferro novo e velho, entre o sector público e o privado e vice-versa. Os dois clãs fingem que são antagónicos e não se estimam, mas é apenas até um certo ponto; no fundo têm que suportar-se, cultivar a empatia e selar pactos de cumplicidade, não vá o diabo tecê-las e atear um fogo que queimaria os dois lados.
Para que a crítica seja contida, convém multiplicar e diversificar os beneficiários. Vai daí, ambos os clãs tratam de meter muita gente dentro do mesmo saco: distribuem cargos, prebendas e sinecuras aos companheiros de caminhada e aos amigos de ocasião; às remunerações milionárias inerentes a nomeações por compadrio seguem-se indemnizações do mesmo teor em caso de alternância de lugar, para não falar nas escandalosas reformas de nababos, auto-atribuídas após poucos anos ou meses de permanência numa função.
Esta elite esperta e inteligente, para não sofrer grandes arranhadelas, fabrica leis de encomenda ajustadas aos interesses dos tubarões do comércio e da indústria e das falências por grosso e atacado. Para cúmulo é toda esta amálgama de barões ilustres que, sem qualquer pingo de decência e rebate de uma sã consciência moral, tem garantido o acesso diário aos jornais e canais de rádio e televisão, para perorar sobre a gravidade da crise, para falar sobre a necessidade de impor sacrifícios a quem já é sacrificado, para ditar receitas e soluções de dor aos que nascem e crescem no meio dela. Os tartufos da desmedida abastança e ganância querem sujeitar ainda mais à míngua e à noite quem nunca descolou delas.
Por este andar, fazendo fé na pressa, no ímpeto e fervor dos reformadores que nos comandam e tendo em atenção a alta cotação atingida pela trampa e porcaria que nos cercam, veremos aprovada, não tarda nada, uma lei a decretar que os pobres passarão a nascer sem ânus. Assim se cumprirá a profecia antiga.
O decoro desapareceu completamente. Aumentar o ordenado mínimo é um crime de lesa-pátria. Para conter o défice público é preciso cortar nos serviços públicos e nos vencimentos dos respectivos funcionários. Para debelar a crise económica é inevitável ‘flexibilizar’ ainda mais os despedimentos dos trabalhadores, acrescentar as horas de labor, reduzir os feriados e dias santos, encurtar ou acabar com o tempo de recriação e lazer, abandonar noções civilizacionais e humanistas acerca do trabalho e dos seus agentes. A besta de carga, o escravo e o servo da gleba estão de volta. A albarda, as molhelhas, o chicote, o jugo e a vara com ferrão surgem em novo formato ao sabor da moda. É este o sentido de várias medidas e reformas tão saudadas pelos bufarinheiros, senhores e bobos da corte. Regressamos ao passado, num desespero que se afoga no rufar dos tambores da revolução francesa e na saudade do grito que a inflamou.
Eles comem tudo… e a maioria consente desiludida e silenciosa. Paga os ordenados e as reformas obscenas, as nacionalizações das bancarrotas e fraudes bancárias, as comissões e corrupções imundas, os desleixos, juros e moras da ‘justiça’, a festa, o sol, o fausto e a vida regalada dos mandarins do regime. Paga tudo com a exploração do seu corpo, com a amargura do rosto, com a tristeza dos olhos e o acabrunhamento da sua alma.
Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar – proclamou e intimou à revolta Sophia de Mello Breyner. Porém há quem assista a este deprimente espectáculo, sem levantar a mão e a voz. E devia fazê-lo por dever de ofício! Trai e vende-se por um prato de lentilhas; contenta-se em apanhar as migalhas que caem deste festim infame. De um jeito que avilta e se cola ao nome e à pele como nódoa indigna, colabora no retrocesso civilizacional. É esta conivência que hoje constitui a missão e marca o destino de não poucos dirigentes e quadros da Universidade. Instituição erigida para reflectir e visionar os caminhos e o devir da sociedade, está a ser reorganizada, conformada e metida nos trilhos neoliberais, para deixar de pensar, de criticar e reclamar, enfim, para servir os poderosos e valentes, donos desta hora que o presente sente e o futuro confirmará como inditosa e desumanizada.
Qual será a cara do deus Jano predominante no novo ano?
Jorge Olímpio Bento
segunda-feira, 28 de dezembro de 2009
Retrocesso civilizacional
publicado por jorge bento às 13:50
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
4 comentários:
Excelente observação! Parabéns (infelizmente - pelo conteúdo da mensagem. É a dura realidade.) E ninguém vê isto ou não "queremos" ver?
É caso para dizer: "E o burro quem é?" (quem são?).
Votos para um ano repleto de sucesso!
O empresário Ferraz da Costa disse o mesmo,numa entrevista, e numa simples frase:
"Em Portugal rouba-se descaradamente"
Bom Ano Novo... menos descarado
Não há razão para que os estádios do Euro 2004 não sejam demolidos.
Não há um modelo de competição nacional, as selecções nacionais vão ter cada vez mais estrangeiros.
Os estádios serviram para a candidatura do futebol português a vice-presidente da UEFA e da FIFA (?), ele que lhes apresente a conta.
Deveria ser aberta uma subscrição pública para quem vibrou nos estádios durante o euro 2004.
Os governantes que decidiram o Euro2004 deveriam contribuir com soluções para os problemas destas populações locais.
A gestão dos estádios compromete as finanças locais sem ser do erário público nacional.
Esta é outra forma de retroceder que é não ter em trinta anos um modelo de desporto e depois afirmar que a lei não permite a venda ou a demolição dos estádios que não servem para nada, nem mesmo para aqueles a quem foram doados que demonstram um comportamento negligente e incompetente, face ao esforço feito pelo país.
O Complexo Desportivo da Lapa vai ser demolido contra a sua viabilidade ética, cultural, histórica, social e desportiva.
A Câmara Municipal de Lisboa ainda não se pronunciou sobre este acto.
Já se deu o dinheiro do Euro 2004 a quem se queria dar, turismo, federação, clubes, empreiteiros, ..., a demolição é o mal menor.
O desporto ainda mais pobre?
Mas com toda a certeza, quando não se sabe o que se fazer.
O advogado Alexandre Mestre incentiva o COP a avançar com a Lisboa Olímpica.
O economista Augusto Mateus já o disse: demolição e o dinheiro devia ter sido dado ao turismo e à cultura.
O desporto é tratado pela sociedade portuguesa como um pária e um inimputável!
O modelo de desporto português que atingiu o seu máximo na anterior legislatura dá provas da sua real valia para o bem-estar dos portugueses.
Só as pessoas do desporto é que se iludem com os benefícios que recebem.
Retrocesso civilizacional - o diagnóstico é mesmo esse, infelizmente, para quem não faz parte da camarilha!
Parabéns ao autor do texto. Subscrevo-o a 100%. Eu não era capaz de escrever de forma tão brilhante, inclusive invocando um provérbio transmontano!
Enviar um comentário