Uma política pública não se atem apenas sobre os instrumentos regulatórios e normativos que a concretizam, ela expressa também a forma como um determinado sistema social se vê a si mesmo, e quais os valores e processos de decisão/governação em que se fundamenta.
Conhecendo as profundas alterações que o desporto sofreu nas ultimas décadas, em virtude das consequências da sua crescente profissionalização e comercialização, com a emergência de novos actores e lógicas de decisão que horizontalizaram a governação numa complexa rede de parceiros. Tendo presente as diferentes soluções de governação em cada modalidade desportiva e a concepção do sistema desportivo em cada Estado-membro, particularmente após o alargamento a leste, é sem surpresa que a Comissão abandona o modelo descrito em 1998 e no Livro Branco sobre o Desporto assume que:
"O debate político sobre o desporto na Europa atribui frequentemente uma importância considerável ao chamado «Modelo Europeu do Desporto». A Comissão considera que certos valores e tradições do desporto europeu devem ser promovidos. Contudo, considera que, dada a diversidade e as complexidades das estruturas desportivas europeias, é irrealista tentar definir um modelo único de organização do desporto na Europa"
Se os valores solidários onde assentam as bases do desporto europeu o permitem distinguir de outros modelos de organização desportiva, não deixa de ser evidente que muitos desses valores se podem encontrar em várias partes do globo. Na Europa o desporto tende também a importar mecanismos de governação e regulação (sistemas de licenciamento, tectos salariais, competições fechadas ou organizadas em estruturas não piramidais, etc.) de outras latitudes. Tudo isto reconfigura os pilares do Modelo Europeu de Desporto (MED) e a sua fiabilidade enquanto instrumento de análise da complexidade actual do desporto da UE.
No entanto as características do MED têm vindo a ser ao longo dos anos um precioso instrumento político ao dispor das federações para garantirem uma “excepção desportiva” à aplicação do direito comunitário, na senda de um quadro regulador que valorizasse a sua autonomia, autoridade e centralidade nos processos decisórios, evitando que o desporto fosse “governado por juízes”. Neste propósito têm pugnado - quer no Relatório Independente sobre o Desporto Europeu, quer no Relatório sobre o Futuro do Futebol Profissional na Europa do Parlamento Europeu (ainda que de uma forma mais contida neste relatório elaborado por Ivo Belet) - pela necessidade de maior segurança jurídica e de melhor regulação que cubra o vazio legal que leva ao aumento da litigância junto dos tribunais europeus, como único caminho para a boa governação do sector. Tal desiderato só seria possível se a Comissão reconhecesse a singularidade do MED (1) e publicasse orientações precisas sobre a aplicação das normas comunitárias ao desporto (2), no sentido de o proteger, o que limitaria as eventuais consequências das decisões do Tribunal de Justiça da União Europeia.
Em Berlaymont nenhum dos dois objectivos viria a ser acolhido. Os protestos não se fizeram esperar e sentiram-se mais do que uma vez. A Comissão veio, tão simplesmente, frisar que a complexidade e a volatilidade que caracterizam a governação do desporto no espaço europeu não se coadunam com orientações pré-definidas, quer no plano jurídico, quer no plano organizacional. A certeza e a segurança legal só são possíveis trilhando um caminho, passo a passo, que justifique em cada caso específico, mediante a validação de requisitos precisos, a aplicação sensível do direito comunitário às características que distinguem o desporto de outras actividades económicas. O desporto é auto-regulado - com autonomia para escolher o seu modelo organizacional no respeito pela lei e por princípios gerais de boa governança - mas não é susceptível de derrogações apriorísticas do direito comunitário, pelo que as federações desportivas devem justificar perante os supervisores comunitários o valor e o mérito de cada política, conquistando “caso a caso” maior certeza legal, ao invés de procurarem o beneplácito da UE para agirem em livre arbítrio em determinados domínios da sua acção.
Este é um cenário cada vez mais desconfortável, e um caminho com vários escolhos e tensões entre actores políticos e desportivos, à medida que o poder e os centros de decisão se dispersam... O receio sobre o impacto da acção comunitária no domínio do desporto - nomeadamente após alguns ecos durante a presidência francesa de 2008 sobre uma visão intervencionista alargada da UE - aumentou consideravelmente, não só entre o movimento desportivo que criou uma associação para representar os seus interesses junto das instituições europeias, como pôs em alerta estados tradicionalmente eurocépticos, como o Reino Unido, onde a regulação do desporto profissional é uma prioridade estratégica do governo nacional. Relembre-se que foi elaborado sob os auspícios da presidência deste país o Relatório Independente sobre o Desporto Europeu, alinhado com as posições da UEFA.
Começam cedo a tornar-se visíveis os resultados do labor desta aliança de interesses. Na audição da cipriota Androulla Vassiliou, responsável pela política desportiva na nova Comissão Barroso II, no Parlamento Europeu, o inevitável Ivo Belet (01:29 do vídeo de audição) abriu as hostilidades e salientou que os deputados estavam ansiosos por se livrarem da abordagem “caso a caso” e indagou a comissária sobre eventuais planos para esboçar orientações num conjunto de tópicos com vista a “conferir maior certeza legal” ao mundo do desporto.
A recusa da Comissão a um modelo único de organização do desporto europeu - claro sinal dissonante com a sua tendência natural para a homogeneização e convergência de políticas entre os Estados-membros -, o comprometimento num plano de acção supletivo e complementar à auto-regulação das federações desportivas e dos governos nacionais, no sentido, aliás, do disposto no Tratado de Lisboa não são elementos convincentes sobre o papel secundário de Bruxelas.
O problema permanece na forma como o sistema desportivo reflecte sobre si mesmo e sobre os seus processos. Permanece, como sempre, na aplicação de princípios elementares de boa governança à regulação desportiva e na convivência com as normas públicas.
A lei que clama para preservar as virtudes sociais e culturais de um modelo é, todavia, a mesma que refuta para regular uma actividade com uma expressão económica iniludivel.
Conhecendo as profundas alterações que o desporto sofreu nas ultimas décadas, em virtude das consequências da sua crescente profissionalização e comercialização, com a emergência de novos actores e lógicas de decisão que horizontalizaram a governação numa complexa rede de parceiros. Tendo presente as diferentes soluções de governação em cada modalidade desportiva e a concepção do sistema desportivo em cada Estado-membro, particularmente após o alargamento a leste, é sem surpresa que a Comissão abandona o modelo descrito em 1998 e no Livro Branco sobre o Desporto assume que:
"O debate político sobre o desporto na Europa atribui frequentemente uma importância considerável ao chamado «Modelo Europeu do Desporto». A Comissão considera que certos valores e tradições do desporto europeu devem ser promovidos. Contudo, considera que, dada a diversidade e as complexidades das estruturas desportivas europeias, é irrealista tentar definir um modelo único de organização do desporto na Europa"
Se os valores solidários onde assentam as bases do desporto europeu o permitem distinguir de outros modelos de organização desportiva, não deixa de ser evidente que muitos desses valores se podem encontrar em várias partes do globo. Na Europa o desporto tende também a importar mecanismos de governação e regulação (sistemas de licenciamento, tectos salariais, competições fechadas ou organizadas em estruturas não piramidais, etc.) de outras latitudes. Tudo isto reconfigura os pilares do Modelo Europeu de Desporto (MED) e a sua fiabilidade enquanto instrumento de análise da complexidade actual do desporto da UE.
No entanto as características do MED têm vindo a ser ao longo dos anos um precioso instrumento político ao dispor das federações para garantirem uma “excepção desportiva” à aplicação do direito comunitário, na senda de um quadro regulador que valorizasse a sua autonomia, autoridade e centralidade nos processos decisórios, evitando que o desporto fosse “governado por juízes”. Neste propósito têm pugnado - quer no Relatório Independente sobre o Desporto Europeu, quer no Relatório sobre o Futuro do Futebol Profissional na Europa do Parlamento Europeu (ainda que de uma forma mais contida neste relatório elaborado por Ivo Belet) - pela necessidade de maior segurança jurídica e de melhor regulação que cubra o vazio legal que leva ao aumento da litigância junto dos tribunais europeus, como único caminho para a boa governação do sector. Tal desiderato só seria possível se a Comissão reconhecesse a singularidade do MED (1) e publicasse orientações precisas sobre a aplicação das normas comunitárias ao desporto (2), no sentido de o proteger, o que limitaria as eventuais consequências das decisões do Tribunal de Justiça da União Europeia.
Em Berlaymont nenhum dos dois objectivos viria a ser acolhido. Os protestos não se fizeram esperar e sentiram-se mais do que uma vez. A Comissão veio, tão simplesmente, frisar que a complexidade e a volatilidade que caracterizam a governação do desporto no espaço europeu não se coadunam com orientações pré-definidas, quer no plano jurídico, quer no plano organizacional. A certeza e a segurança legal só são possíveis trilhando um caminho, passo a passo, que justifique em cada caso específico, mediante a validação de requisitos precisos, a aplicação sensível do direito comunitário às características que distinguem o desporto de outras actividades económicas. O desporto é auto-regulado - com autonomia para escolher o seu modelo organizacional no respeito pela lei e por princípios gerais de boa governança - mas não é susceptível de derrogações apriorísticas do direito comunitário, pelo que as federações desportivas devem justificar perante os supervisores comunitários o valor e o mérito de cada política, conquistando “caso a caso” maior certeza legal, ao invés de procurarem o beneplácito da UE para agirem em livre arbítrio em determinados domínios da sua acção.
Este é um cenário cada vez mais desconfortável, e um caminho com vários escolhos e tensões entre actores políticos e desportivos, à medida que o poder e os centros de decisão se dispersam... O receio sobre o impacto da acção comunitária no domínio do desporto - nomeadamente após alguns ecos durante a presidência francesa de 2008 sobre uma visão intervencionista alargada da UE - aumentou consideravelmente, não só entre o movimento desportivo que criou uma associação para representar os seus interesses junto das instituições europeias, como pôs em alerta estados tradicionalmente eurocépticos, como o Reino Unido, onde a regulação do desporto profissional é uma prioridade estratégica do governo nacional. Relembre-se que foi elaborado sob os auspícios da presidência deste país o Relatório Independente sobre o Desporto Europeu, alinhado com as posições da UEFA.
Começam cedo a tornar-se visíveis os resultados do labor desta aliança de interesses. Na audição da cipriota Androulla Vassiliou, responsável pela política desportiva na nova Comissão Barroso II, no Parlamento Europeu, o inevitável Ivo Belet (01:29 do vídeo de audição) abriu as hostilidades e salientou que os deputados estavam ansiosos por se livrarem da abordagem “caso a caso” e indagou a comissária sobre eventuais planos para esboçar orientações num conjunto de tópicos com vista a “conferir maior certeza legal” ao mundo do desporto.
A recusa da Comissão a um modelo único de organização do desporto europeu - claro sinal dissonante com a sua tendência natural para a homogeneização e convergência de políticas entre os Estados-membros -, o comprometimento num plano de acção supletivo e complementar à auto-regulação das federações desportivas e dos governos nacionais, no sentido, aliás, do disposto no Tratado de Lisboa não são elementos convincentes sobre o papel secundário de Bruxelas.
O problema permanece na forma como o sistema desportivo reflecte sobre si mesmo e sobre os seus processos. Permanece, como sempre, na aplicação de princípios elementares de boa governança à regulação desportiva e na convivência com as normas públicas.
A lei que clama para preservar as virtudes sociais e culturais de um modelo é, todavia, a mesma que refuta para regular uma actividade com uma expressão económica iniludivel.
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