Durante os últimos meses fiz um longo e aturado exercício de silêncio e uma saudável cura de contenção e renúncia. Por motu proprio, exilei-me e pus-me a salvo da vozearia delirante, ensurdecedora, imbecilizante e entontecedora que se abateu sobre a vida da nação. Ou seja, cuidei de evitar o contágio da fétida e lamacenta torrente que se apoderou dos programas televisivos e de não poucas páginas de jornais consagrados à participação portuguesa no Campeonato Mundial de Futebol.
1. Gosto imensamente do futebol e dos símbolos, significados e valores que ele, enquanto desporto, encerra, promove e exalta. Por isso mesmo não alinho e pactuo com o panorama mediático que à volta dele se instalou em Portugal, asfixiando e deixando na ignorância e abandono o teor cultural e civilizacional do jogo.
De tudo quanto é lura saem figuras do jet set postas em bicos de pés; encontram nos media as portas escancaradas de par em par, para se entregarem à bitaitada mais estapafúrdia e à irracionalidade mais absurda. É um fartar vilanagem! Salvo raríssimas excepções, não têm obra de vulto ou méritos reconhecidos no seu campo de origem (economia, cinema, artes, direito etc.), mas os media oferecem-lhes o pasto alimentício do auto-convencimento, da inflamação de egos sem consistência, da proclamação das suas insustentáveis ambições e da sublimação das suas pesadas frustrações. Vidas ocas, rasas e vazias são apresentadas como culminâncias de virtudes e fontes de admiração e inspiração. Num ápice, por obra de uma qualquer varinha ou poção mágica, tornam-se peritos no futebolês. Não têm noção do ridículo, nem eles nem quem os acoita. Adulam-se e incensam-se uns aos outros, tomam-se a sério e julgam-se a si mesmos sábios na comédia burlesca de traçar cenários e tácticas, debitar conselhos e estratégias, proferir sentenças e vaticínios, lavrar censuras e despedimentos.
O Mundial da África do Sul tornou, uma vez mais, claro que ex-jogadores sem preparação intelectual para a função não podem ser técnicos. A lição vale igualmente para esta espécie de analistas e escribas de pacotilha e para os seus anfitriões e compadres; mas eles recusam-se a aprendê-la, não é para eles. São ‘sabichões’ da bazófia e empáfia, emplumados e inchados de generalidades, superficialidades e vulgaridades, sempre disponíveis para escrevinhar, discorrer e falar acerca de qualquer coisa, sobretudo acerca do que desconhecem.
Promovidos a figuras públicas, estes sujeitos são-nos impingidos a toda a hora, de um modo tão ardiloso e cavernoso que os cidadãos comuns se deixam alienar, anestesiar e sujeitar à necessidade da sua existência e presença. Já não se passa sem eles, ignorando que custam dinheiro – e muito! Implanta-se assim também nos meandros do futebol o estilo de vida fácil, com ampla aceitação, difusão e prática em todo o contexto nacional. Há uma elite artificial e mediaticamente criada e imposta em todos os sectores. Vive à vara larga, à lauta e à francesa, de maneira escandalosa, imoral e nababesca. Sai muito caro sustentá-la! Todavia a maioria das pessoas arca com mais esse fardo sobre os seus ombros, sem se dar conta disso, tão natural e espontaneamente como respira.
2. A aventura da nossa selecção na África do Sul chegou ao fim, antes do tempo que todos desejávamos. Não vou perorar sobre o fundamento das expectativas, nem sobre o terreno movediço das ilusões. Fomos tão longe quanto nos foi possível, tal como os outros concorrentes.
Ganhar num palco que concita as atenções e olhares de todo o mundo é uma rara e doce iguaria ou sobremesa que, por isso mesmo, só vai à mesa dos privilegiados e sortudos - e em dias de comemoração especial. Pelo contrário, perder é como levar um violento sopapo no estômago; dói muito se somos nós os atingidos, mas não nos lembramos disso quando a dor é alheia.
É, pois, desejável e possível temperar os excessos e as feridas da paixão com uma aconselhada pitada de razão. Se assim não for, ganhar pode ser uma forma de vir a perder. Ao invés, se assim for, perder converte-se num método e começo de aprender.
Se compararmos o aspecto, a cara e o ar dos nossos futebolistas de ontem e de hoje, verificamos de imediato diferenças notórias. Os de agora parecem fedelhos, acabados de sair dos cueiros, sem rugas num rosto infantil, protegido por creme e pó de arroz, com a pele recoberta de tatuagens e com brincos a brilhar nas orelhas. No entanto são iguais aos seus predecessores no desejo e no gozo de vencer, na festa e orgulho da vitória, na tristeza e no acabrunhamento da derrota.
Não confundamos as coisas: as estrelas actuais ganham muito mais do que as de antanho, algumas são pagas a peso de oiro, extraído na fundura do nosso aparentemente irremediável desconserto passional. Contudo os sentimentos equivalem-se, face ao desfecho do jogo.
1. Gosto imensamente do futebol e dos símbolos, significados e valores que ele, enquanto desporto, encerra, promove e exalta. Por isso mesmo não alinho e pactuo com o panorama mediático que à volta dele se instalou em Portugal, asfixiando e deixando na ignorância e abandono o teor cultural e civilizacional do jogo.
De tudo quanto é lura saem figuras do jet set postas em bicos de pés; encontram nos media as portas escancaradas de par em par, para se entregarem à bitaitada mais estapafúrdia e à irracionalidade mais absurda. É um fartar vilanagem! Salvo raríssimas excepções, não têm obra de vulto ou méritos reconhecidos no seu campo de origem (economia, cinema, artes, direito etc.), mas os media oferecem-lhes o pasto alimentício do auto-convencimento, da inflamação de egos sem consistência, da proclamação das suas insustentáveis ambições e da sublimação das suas pesadas frustrações. Vidas ocas, rasas e vazias são apresentadas como culminâncias de virtudes e fontes de admiração e inspiração. Num ápice, por obra de uma qualquer varinha ou poção mágica, tornam-se peritos no futebolês. Não têm noção do ridículo, nem eles nem quem os acoita. Adulam-se e incensam-se uns aos outros, tomam-se a sério e julgam-se a si mesmos sábios na comédia burlesca de traçar cenários e tácticas, debitar conselhos e estratégias, proferir sentenças e vaticínios, lavrar censuras e despedimentos.
O Mundial da África do Sul tornou, uma vez mais, claro que ex-jogadores sem preparação intelectual para a função não podem ser técnicos. A lição vale igualmente para esta espécie de analistas e escribas de pacotilha e para os seus anfitriões e compadres; mas eles recusam-se a aprendê-la, não é para eles. São ‘sabichões’ da bazófia e empáfia, emplumados e inchados de generalidades, superficialidades e vulgaridades, sempre disponíveis para escrevinhar, discorrer e falar acerca de qualquer coisa, sobretudo acerca do que desconhecem.
Promovidos a figuras públicas, estes sujeitos são-nos impingidos a toda a hora, de um modo tão ardiloso e cavernoso que os cidadãos comuns se deixam alienar, anestesiar e sujeitar à necessidade da sua existência e presença. Já não se passa sem eles, ignorando que custam dinheiro – e muito! Implanta-se assim também nos meandros do futebol o estilo de vida fácil, com ampla aceitação, difusão e prática em todo o contexto nacional. Há uma elite artificial e mediaticamente criada e imposta em todos os sectores. Vive à vara larga, à lauta e à francesa, de maneira escandalosa, imoral e nababesca. Sai muito caro sustentá-la! Todavia a maioria das pessoas arca com mais esse fardo sobre os seus ombros, sem se dar conta disso, tão natural e espontaneamente como respira.
2. A aventura da nossa selecção na África do Sul chegou ao fim, antes do tempo que todos desejávamos. Não vou perorar sobre o fundamento das expectativas, nem sobre o terreno movediço das ilusões. Fomos tão longe quanto nos foi possível, tal como os outros concorrentes.
Ganhar num palco que concita as atenções e olhares de todo o mundo é uma rara e doce iguaria ou sobremesa que, por isso mesmo, só vai à mesa dos privilegiados e sortudos - e em dias de comemoração especial. Pelo contrário, perder é como levar um violento sopapo no estômago; dói muito se somos nós os atingidos, mas não nos lembramos disso quando a dor é alheia.
É, pois, desejável e possível temperar os excessos e as feridas da paixão com uma aconselhada pitada de razão. Se assim não for, ganhar pode ser uma forma de vir a perder. Ao invés, se assim for, perder converte-se num método e começo de aprender.
Se compararmos o aspecto, a cara e o ar dos nossos futebolistas de ontem e de hoje, verificamos de imediato diferenças notórias. Os de agora parecem fedelhos, acabados de sair dos cueiros, sem rugas num rosto infantil, protegido por creme e pó de arroz, com a pele recoberta de tatuagens e com brincos a brilhar nas orelhas. No entanto são iguais aos seus predecessores no desejo e no gozo de vencer, na festa e orgulho da vitória, na tristeza e no acabrunhamento da derrota.
Não confundamos as coisas: as estrelas actuais ganham muito mais do que as de antanho, algumas são pagas a peso de oiro, extraído na fundura do nosso aparentemente irremediável desconserto passional. Contudo os sentimentos equivalem-se, face ao desfecho do jogo.
3. Não é fácil encarar e digerir o panorama da derrota, com as bandeiras enroladas, os ajuntamentos desfeitos, o nacionalismo e o patriotismo murchos, as exaltações destroçadas e as gargantas caladas. (Para piorar o ambiente também o ‘nosso’ Brasil foi atirado pela borda fora). Porém o país e os seus problemas continuam aí, sem tirar nem pôr, reclamando um redobrar da nossa atenção, dedicação e compromisso. Ao nosso redor multiplicam-se os olhares de aflição e amargura, os dramas e as expressões do desespero.
Isto deve levar-nos a acordar para a realidade e a adquirir a convicção e (porque não?) certeza de que um campeonato do mundo de futebol, por mais que nos empolgue e absorva, não supera a importância da vida e a competição pela sua dignidade. A curto prazo teremos a oportunidade de disputar outro campeonato. No quadro quotidiano da existência não nos faltam desafios para enfrentar, já hoje, aqui e agora.
Os governantes, os políticos, os interesses, os poderes e os comentadores de plantão querem roubar-nos qualquer réstia de alegria. Deus – ou alguém em Seu nome – mandou escrever que não nascemos apenas para trabalhar; ordenou que houvesse Domingos e dias santos destinados ao lazer e ao ócio, à recriação e santificação da vida. Os donos deste tempo querem sobrepor-se à determinação divina, acabar com os feriados e reduzir-nos a bestas de carga da ganância e indecência ultraliberais. Exibem tanta preocupação e zelo com a situação do País! Porque é que não instituem um dia consagrado à celebração da vergonha na cara?
Sim, muitos e graves desafios mantêm-se à nossa espera. Estamos em vésperas de eleições e escolhas; e afundados em convulsões e crises que, antes de serem económicas e políticas, são éticas e morais. Como bons, abnegados, bem comportados, crentes, ingénuos, modelares, persistentes e louváveis portugueses, continuamos prontos para atingir a excelência no desempenho do nosso fado e sina, da nossa mais genuína e atávica profissão: a esperança.
2 comentários:
Mais um notável texto do Prof. Jorge O. Bento.
Parabéns ao Professor Doutor Jorge O. Bento, pela qualidade do texto e pela coragem , habitual nele, de colocar dada um no seu lugar.
fgomes
Enviar um comentário