sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Mitologia e sabedoria


1. Quando nos debruçamos sobre o fascinante panorama da mitologia grega, constatamos que ela não deixa nada a desejar, no tocante ao alcance, à beleza, densidade, inteligência, pertinência, profundidade e subtileza das suas explicações, interpretações e propostas, em relação à ciência moderna e contemporânea. Pelo contrário! E no entanto aquela não é, nem de perto, nem de longe, uma antecipação aproximativa ou tampouco precursora desta. É, sim e quando muito, como salienta o filósofo francês Luc Ferry, “o primeiro momento da filosofia”, repleto de mensagens e metáforas que apontam aos homens os caminhos para uma vida boa, decente e digna, “sem recurso às ilusões do além”, encorajando-os a olhar de frente o destino da insuperável e irremediável finitude humana, entregues a si próprios, por sua conta e risco.
O grande projecto da mitologia grega é o de oferecer aos seres efémeros e perecíveis, que somos, meios de interpretar e atribuir um sentido ao mundo que nos envolve e de elaborar e dar significados possíveis à existência humana. Por isso ela contém directrizes e formulações de uma “doutrina da salvação sem Deus”, de uma “espiritualidade laica”, de um tratado de “sabedoria para os mortais”, visando uma vida feliz e lúcida, entendida como busca singular cumprida por cada indivíduo, responsavelmente e à sua maneira, em harmonia com a ordem do cosmos. Deste modo ela continua a ser fonte inesgotável de magistrais e carnais lições de vida para o tempo presente, cada vez mais afastado das crenças, promessas e referências dos monoteísmos religiosos (FERRY, Luc: A sabedoria dos mitos gregos: aprender a viver II. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009).

2. A mitologia é uma construção de histórias fabulosas, criadas e contadas pelos humanos a respeito de um universo desenhado e dominado pelos deuses, logo aparentemente adverso e estranho à natureza e condição do homem. Porém os criadores são perspicazes, sábios, visionários e utópicos: inventam a criatura para nela se rever, isto é, para imaginar, definir, representar e situar o seu papel e missão nesse mundo que os circunda, inclui e condiciona. Não é por acaso que se regista uma paulatina humanização dos deuses e uma progressiva divinização dos humanos.
Segundo o relato teogónico de Hesíodo (séc. IX ou VIII a.C.) e de outros mitólogos posteriores, à primeira geração de deuses ‘naturais’, brutais, disformes, excessivos, impulsivos, malvados, rudes e selvagens, com um poder cego estribado na força, no pasmo e na violência, sucede pouco a pouco uma segunda geração de deuses ‘olímpicos’, animados por uma lógica mais humana, menos natural e mais cultural, ligada ao exercício da astúcia, delicadeza e finura, diálogo e concórdia, inteligência e negociação, até chegar à consciência e lucidez, à sabedoria e serenidade.
A crescente humanização do divino, com deuses a assumir atitudes, marcas e traços de personalidades humanas, é acompanhada de um processo de divinização do humano, com indivíduos a alcandorar-se ao Olimpo, graças à coragem, grandeza, heroicidade, nobreza, superação, transcendência, valia e virtude dos seus actos e feitos. Obviamente, este último processo jamais será cabalmente concluído, quer porque não podemos desligar-nos da imposição matricial da mortalidade, quer ainda e sobretudo porque não logramos libertar-nos inteiramente das amarras das “paixões tristes”, feias e doentias (boçalidade, brutalidade, crueldade, culpa, desdém, grosseria, ignorância, inveja, medo, ódio, orgulho, rancor, sobranceria, vingança) que corrompem a alma e turvam o coração e o olhar (Percebe-se assim o lugar central e essencial do agonismo na cultura grega. É através do heroísmo e da glória decorrentes da competição permanente com a imortalidade dos deuses e com a da natureza que os humanos visam subtrair-se do mundo do efémero e ascender a uma espécie, não de eternidade, mas de alguma perenidade entre os seus pares que, de certa forma os assemelha aos seres divinos. Por pensarem de ‘antemão’ e saberem que a vida é curta, os humanos perguntam-se o que fazer com ela, antecipam o futuro, concebem e formulam horizontes e objectivos ‘distantes’, procurando contornar e transcender afincadamente a sua condição de mortais).

Estas paixões, herdadas dos deuses gregos iniciais, bárbaros, bravios, mal-educados, incultos, grotescos, intratáveis, toscos, contraditórios, desordeiros e devastadores, sem senso de justiça, apegados às trevas e hostis à luz e claridade, teimam em tolher-nos os passos. Então no contexto actual nem se fala! Tal como os deuses originais, estamos longe, muito longe mesmo, de sermos sábios, ajuizados, civilizados, correctos e generosos. Pior ainda, esfalfamo-nos a alargar e escurecer a caverna da irracionalidade e fazemos gala em exibir orgulhosa e ostensivamente as características e comportamentos de um primitivismo apavorante e degradante.
Ora sem qualidades, que estejam além das naturais, é impossível alcançar a harmonia, a vida boa, ética e esteticamente decente, elevada e nobilitante. Neste ponto a mitologia grega é peremptória: somente a ordem justa é viável e fiável, durável e portadora de futuro; a injustiça inscreve-se no precário e transitório, atrai a desagregação e destruição. A força bruta requer ser substituída pela inteligência; e esta não reina e atinge o seu intento sem a ajuda insubstituível da justiça.

3. A que propósito vem isto? – perguntará o leitor, carregado de razão. Lembrei-me de evocar e acordar ensinamentos mitológicos por causa do estado aberrante a que chegou a justiça no nosso País e do deplorável espectáculo que ela nos tem insistentemente proporcionado. Também me instigou a revisitar as origens do pensamento humano a ‘caça ao homem’ movida a Carlos Queirós, em nome do mais abjecto populismo, atiçado pelo conluio de oportunistas de vária espécie, de treinadores peritos em peladinhas e cheiro do balneário e de alguns comentadores da treta, frustrados por nunca terem dado um pontapé na bola com a indecorosa desenvoltura e jactância com que falam do que não sabem. Igualmente me motivaram para esta digressão recentes declarações virulentas de José Mourinho, um deus do futebol que, não raras vezes, parece preferir o caos e a guerra da cosmogonia à ordem sábia, sensata, contida e luminosa do Olimpo.

10 comentários:

joão boaventura disse...

A este propósito, um convite para assistir ao Nascimento dos Deuses Gregos.

Enjoy it.

joão boaventura disse...

Ulysses

O mito é o nada que é tudo
O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo –
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.

Este que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos braços.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou.

Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundá-la decorre
De nada, morre.

Fernando Pessoa

joão boaventura disse...

O maestro John Cage compaginando, pelo silêncio, O mito é o nada que é tudo, e

Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundá-la decorre
De nada, morre.

joão boaventura disse...

Como apologia ao post convido à leitura da Viagem Extatica ao Templo da Sabedoria, em quatro Cantos, pelo combativo miguelista José Agostinho de Macedo, publicado na Impressão Regia de Lisboa, em 1830.

O antigo é uma actualidade permanente, como o actual é um sempre de todos os tempos.

joão boaventura disse...

Ovídio não aparece aqui deslocado, porque os seus poemas também são mitológicos. A Roma também tem, na sua mitologia, os deuses correspondentes aos da mitologia grega.

“O Roubo da Europa por Júpiter”, ora escolhido, vem a propósito porque encontramos n’”O Roubo da Europa por Merkel”, o correspondente na mitologia europeia corrente.

Lenine tinha asseverado que a Europa nunca se faria e, no dia em que se fizesse, quem mandaria seria a Alemanha. Daí o relato actual de como Merkel vem raptando subrepticiamente a Europa, e que, só com as nuances da poesia nos é possível visionar.

Merkel é, na mitologia europeia, a deusa correspondente ao deus Júpiter dos romanos.

Lenine, disse em prosa, o que Ovídio já tinha antecipada em poesia.

“O Roubo de Europa por Júpiter”

O grão Jove o Céu Mercúrio chama,
E sem lhe declarar o amor, que o fere,
“Vai, ministro fiel dos meus decretos,
Vai, filho meu, côa sólita presteza;
Desce à Terra (lhe diz) donde se avista
Tua mãe reluzindo à sestra parte,
E que os seus naturais Sídon nomeiam.
O armentio real, que ao longe a relva
No monte anda a pascer, dirige à praia”
Disse, e já da montanha o gado expulso
Caminha à fresca praia, onde costuma
S do sidónio rei mimosa filha
Espairecer, folgar côas tírias irgens.
A majestade, e amor não bem se ajustam:
Jamais o mesmo peito os acomoda.
Do cetro a gravidade enfim depondo
O pai, e o rei dos deuses, Jove, aquele
Que armada tem do raio a sacra destra,
E que ao mínimo aceno abala o mundo,
Veste forma taurina entre as manadas
Muge, e pisa formoso as brandas ervas.
É cor da neve, que nem pés calacram,
Nem côas asas desfez o Sol chuvoso;
Alteia airosamente o móbil colo;
Das espáduas lhe pende, e bambaleia
A cândida barbela, as breve4s pontas
Da industriosa mão lavor parecem,
Ganham no lustre à pérola a mais pura.
Não tem pesado cenho, olhar terrível,
Antes benigna paz lhe alegra a fronte.
A filha de Agnor admira o touro.
Estranha ser tão belo, e ser tão manso,
Ao princípio, inda assim, teme tocar-lhe;
Vai-se depois avizinhando a ele,
E as flores, que apanhou, lhe aplica aos beiços.
Ei-lo já pela relva salta, e brinca,
Já põe na fulva areia o níveo lado.
À virgem pouco a pouco o medo extingue,
E agora of’rece brandamente o peito
Só para que lho afague a mão formosa,
Agora as pontas, que a real donzela
De recentes boninas lhe engrinalda.
Ela, enfim, que não sabe a que se atreve,
Ousa nas alvas costas assentar-se.
De espaço à beira-mar descendo o Nume,
Põe mentiroso pé n’água primeira,
Vai depois mais avante… enfim, nadando,
Leva a presa gentil por entre as ondas.
Ela de olhos na praia, ela medrosa
Segura uma das mãos numa das pontas,
Sobre o dorso agitado a outra encosta;
Enfuna o vento as sussurrantes vestes.
Despida finalmente a falsa imagem,
Eis aparece o deus, eis brilha Juve,
E em teus bosques, ó Creta, Amor triunfa !

Ovídio,
(Metamorfoses, Livros II, 836-875; III, 1-2)
(traduzido por Bocage)

joão boaventura disse...

Porque a obra original de Ovídio se chama “Metamorfoses”, explica-se assim as razões de Júpiter se transformar em touro para conquistar a formosa Europa, já que, estava vedado a Júpiter, mostrar o seu rosto, de onde a Bíblia terá extraído a oportuna ideia de que Deus também não podia mostrar a face a Moisés.

Aproveita-se igualmente a oportunidade para introduzir algumas obras pictóricas inspiradas no texto de Ovídio, “O Rapto de Europa por Júpiter”, onde este se transforma em touro branco, e se mistura com a manada preta para melhor chamar a atenção da belíssima Europa.

De Rubens.

De Albrecht Dürer.

De Rembrandt.

De Tiziano.

De Correggio.

De François Boucher.

De Paolo Veronese.

De Gustave Moreau.

joão boaventura disse...

Onde está

De Paolo Veronese,

aparece a obra de
François Boucher repetida, pelo que, penitenciando-me pelo erro, reponho a verdadeira obra de

Paolo Veronese

joão boaventura disse...

O aproveitamento simbólico compaginado pela sabedoria pictórica e estatuária europeias afigura-se bem contemplado em Strasburgo, na sede do Parlamento Europeu.

“A torre de Babel”, de Pieter Bruegel, “o velho”, serviu de inspiração para a construção do edifício “Edifício Louise Weiss”, do Parlamento Europeu, em Strasbourg.

Na mesma cidade, defronte do "Edifício Winston Churchill", parte também da sede do Parlamento Europeu, existe uma estátua representando o Rapto de Europa.

A sabedoria mitológica grego-romana absorvida, contemplada e simbolicamente aproveitada pela União Europeia, para uma mimética formação e integração dos europeus num espaço apologético da sua identidade.

joão boaventura disse...

Para uma melhor visão da imagem da estátua do "Rapto da Europa" frente ao "Edifício Winston Churchill":

manter um dedo pressionando a tecla ctrl, e, simultaneamente, rodar a roda do rato para a frente.

joão boaventura disse...

Finalmente, para quem tiver a oportunidade de colher uma moeda de 2 euros, da Grécia, poderá contemplar, uma vez mais o mitológico Rapto de Europa, numa das faces.

Para aumentar o tamanho é seguir as indicações indicadas no comentário anterior.