1. Quando nos debruçamos sobre o fascinante panorama da mitologia grega, constatamos que ela não deixa nada a desejar, no tocante ao alcance, à beleza, densidade, inteligência, pertinência, profundidade e subtileza das suas explicações, interpretações e propostas, em relação à ciência moderna e contemporânea. Pelo contrário! E no entanto aquela não é, nem de perto, nem de longe, uma antecipação aproximativa ou tampouco precursora desta. É, sim e quando muito, como salienta o filósofo francês Luc Ferry, “o primeiro momento da filosofia”, repleto de mensagens e metáforas que apontam aos homens os caminhos para uma vida boa, decente e digna, “sem recurso às ilusões do além”, encorajando-os a olhar de frente o destino da insuperável e irremediável finitude humana, entregues a si próprios, por sua conta e risco.
O grande projecto da mitologia grega é o de oferecer aos seres efémeros e perecíveis, que somos, meios de interpretar e atribuir um sentido ao mundo que nos envolve e de elaborar e dar significados possíveis à existência humana. Por isso ela contém directrizes e formulações de uma “doutrina da salvação sem Deus”, de uma “espiritualidade laica”, de um tratado de “sabedoria para os mortais”, visando uma vida feliz e lúcida, entendida como busca singular cumprida por cada indivíduo, responsavelmente e à sua maneira, em harmonia com a ordem do cosmos. Deste modo ela continua a ser fonte inesgotável de magistrais e carnais lições de vida para o tempo presente, cada vez mais afastado das crenças, promessas e referências dos monoteísmos religiosos (FERRY, Luc: A sabedoria dos mitos gregos: aprender a viver II. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009).
2. A mitologia é uma construção de histórias fabulosas, criadas e contadas pelos humanos a respeito de um universo desenhado e dominado pelos deuses, logo aparentemente adverso e estranho à natureza e condição do homem. Porém os criadores são perspicazes, sábios, visionários e utópicos: inventam a criatura para nela se rever, isto é, para imaginar, definir, representar e situar o seu papel e missão nesse mundo que os circunda, inclui e condiciona. Não é por acaso que se regista uma paulatina humanização dos deuses e uma progressiva divinização dos humanos.
Segundo o relato teogónico de Hesíodo (séc. IX ou VIII a.C.) e de outros mitólogos posteriores, à primeira geração de deuses ‘naturais’, brutais, disformes, excessivos, impulsivos, malvados, rudes e selvagens, com um poder cego estribado na força, no pasmo e na violência, sucede pouco a pouco uma segunda geração de deuses ‘olímpicos’, animados por uma lógica mais humana, menos natural e mais cultural, ligada ao exercício da astúcia, delicadeza e finura, diálogo e concórdia, inteligência e negociação, até chegar à consciência e lucidez, à sabedoria e serenidade.
A crescente humanização do divino, com deuses a assumir atitudes, marcas e traços de personalidades humanas, é acompanhada de um processo de divinização do humano, com indivíduos a alcandorar-se ao Olimpo, graças à coragem, grandeza, heroicidade, nobreza, superação, transcendência, valia e virtude dos seus actos e feitos. Obviamente, este último processo jamais será cabalmente concluído, quer porque não podemos desligar-nos da imposição matricial da mortalidade, quer ainda e sobretudo porque não logramos libertar-nos inteiramente das amarras das “paixões tristes”, feias e doentias (boçalidade, brutalidade, crueldade, culpa, desdém, grosseria, ignorância, inveja, medo, ódio, orgulho, rancor, sobranceria, vingança) que corrompem a alma e turvam o coração e o olhar (Percebe-se assim o lugar central e essencial do agonismo na cultura grega. É através do heroísmo e da glória decorrentes da competição permanente com a imortalidade dos deuses e com a da natureza que os humanos visam subtrair-se do mundo do efémero e ascender a uma espécie, não de eternidade, mas de alguma perenidade entre os seus pares que, de certa forma os assemelha aos seres divinos. Por pensarem de ‘antemão’ e saberem que a vida é curta, os humanos perguntam-se o que fazer com ela, antecipam o futuro, concebem e formulam horizontes e objectivos ‘distantes’, procurando contornar e transcender afincadamente a sua condição de mortais).
Estas paixões, herdadas dos deuses gregos iniciais, bárbaros, bravios, mal-educados, incultos, grotescos, intratáveis, toscos, contraditórios, desordeiros e devastadores, sem senso de justiça, apegados às trevas e hostis à luz e claridade, teimam em tolher-nos os passos. Então no contexto actual nem se fala! Tal como os deuses originais, estamos longe, muito longe mesmo, de sermos sábios, ajuizados, civilizados, correctos e generosos. Pior ainda, esfalfamo-nos a alargar e escurecer a caverna da irracionalidade e fazemos gala em exibir orgulhosa e ostensivamente as características e comportamentos de um primitivismo apavorante e degradante.
Ora sem qualidades, que estejam além das naturais, é impossível alcançar a harmonia, a vida boa, ética e esteticamente decente, elevada e nobilitante. Neste ponto a mitologia grega é peremptória: somente a ordem justa é viável e fiável, durável e portadora de futuro; a injustiça inscreve-se no precário e transitório, atrai a desagregação e destruição. A força bruta requer ser substituída pela inteligência; e esta não reina e atinge o seu intento sem a ajuda insubstituível da justiça.
3. A que propósito vem isto? – perguntará o leitor, carregado de razão. Lembrei-me de evocar e acordar ensinamentos mitológicos por causa do estado aberrante a que chegou a justiça no nosso País e do deplorável espectáculo que ela nos tem insistentemente proporcionado. Também me instigou a revisitar as origens do pensamento humano a ‘caça ao homem’ movida a Carlos Queirós, em nome do mais abjecto populismo, atiçado pelo conluio de oportunistas de vária espécie, de treinadores peritos em peladinhas e cheiro do balneário e de alguns comentadores da treta, frustrados por nunca terem dado um pontapé na bola com a indecorosa desenvoltura e jactância com que falam do que não sabem. Igualmente me motivaram para esta digressão recentes declarações virulentas de José Mourinho, um deus do futebol que, não raras vezes, parece preferir o caos e a guerra da cosmogonia à ordem sábia, sensata, contida e luminosa do Olimpo.
10 comentários:
A este propósito, um convite para assistir ao Nascimento dos Deuses Gregos.
Enjoy it.
Ulysses
O mito é o nada que é tudo
O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo –
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.
Este que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos braços.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou.
Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundá-la decorre
De nada, morre.
Fernando Pessoa
O maestro John Cage compaginando, pelo silêncio, O mito é o nada que é tudo, e
Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundá-la decorre
De nada, morre.
Como apologia ao post convido à leitura da Viagem Extatica ao Templo da Sabedoria, em quatro Cantos, pelo combativo miguelista José Agostinho de Macedo, publicado na Impressão Regia de Lisboa, em 1830.
O antigo é uma actualidade permanente, como o actual é um sempre de todos os tempos.
Ovídio não aparece aqui deslocado, porque os seus poemas também são mitológicos. A Roma também tem, na sua mitologia, os deuses correspondentes aos da mitologia grega.
“O Roubo da Europa por Júpiter”, ora escolhido, vem a propósito porque encontramos n’”O Roubo da Europa por Merkel”, o correspondente na mitologia europeia corrente.
Lenine tinha asseverado que a Europa nunca se faria e, no dia em que se fizesse, quem mandaria seria a Alemanha. Daí o relato actual de como Merkel vem raptando subrepticiamente a Europa, e que, só com as nuances da poesia nos é possível visionar.
Merkel é, na mitologia europeia, a deusa correspondente ao deus Júpiter dos romanos.
Lenine, disse em prosa, o que Ovídio já tinha antecipada em poesia.
“O Roubo de Europa por Júpiter”
O grão Jove o Céu Mercúrio chama,
E sem lhe declarar o amor, que o fere,
“Vai, ministro fiel dos meus decretos,
Vai, filho meu, côa sólita presteza;
Desce à Terra (lhe diz) donde se avista
Tua mãe reluzindo à sestra parte,
E que os seus naturais Sídon nomeiam.
O armentio real, que ao longe a relva
No monte anda a pascer, dirige à praia”
Disse, e já da montanha o gado expulso
Caminha à fresca praia, onde costuma
S do sidónio rei mimosa filha
Espairecer, folgar côas tírias irgens.
A majestade, e amor não bem se ajustam:
Jamais o mesmo peito os acomoda.
Do cetro a gravidade enfim depondo
O pai, e o rei dos deuses, Jove, aquele
Que armada tem do raio a sacra destra,
E que ao mínimo aceno abala o mundo,
Veste forma taurina entre as manadas
Muge, e pisa formoso as brandas ervas.
É cor da neve, que nem pés calacram,
Nem côas asas desfez o Sol chuvoso;
Alteia airosamente o móbil colo;
Das espáduas lhe pende, e bambaleia
A cândida barbela, as breve4s pontas
Da industriosa mão lavor parecem,
Ganham no lustre à pérola a mais pura.
Não tem pesado cenho, olhar terrível,
Antes benigna paz lhe alegra a fronte.
A filha de Agnor admira o touro.
Estranha ser tão belo, e ser tão manso,
Ao princípio, inda assim, teme tocar-lhe;
Vai-se depois avizinhando a ele,
E as flores, que apanhou, lhe aplica aos beiços.
Ei-lo já pela relva salta, e brinca,
Já põe na fulva areia o níveo lado.
À virgem pouco a pouco o medo extingue,
E agora of’rece brandamente o peito
Só para que lho afague a mão formosa,
Agora as pontas, que a real donzela
De recentes boninas lhe engrinalda.
Ela, enfim, que não sabe a que se atreve,
Ousa nas alvas costas assentar-se.
De espaço à beira-mar descendo o Nume,
Põe mentiroso pé n’água primeira,
Vai depois mais avante… enfim, nadando,
Leva a presa gentil por entre as ondas.
Ela de olhos na praia, ela medrosa
Segura uma das mãos numa das pontas,
Sobre o dorso agitado a outra encosta;
Enfuna o vento as sussurrantes vestes.
Despida finalmente a falsa imagem,
Eis aparece o deus, eis brilha Juve,
E em teus bosques, ó Creta, Amor triunfa !
Ovídio,
(Metamorfoses, Livros II, 836-875; III, 1-2)
(traduzido por Bocage)
Porque a obra original de Ovídio se chama “Metamorfoses”, explica-se assim as razões de Júpiter se transformar em touro para conquistar a formosa Europa, já que, estava vedado a Júpiter, mostrar o seu rosto, de onde a Bíblia terá extraído a oportuna ideia de que Deus também não podia mostrar a face a Moisés.
Aproveita-se igualmente a oportunidade para introduzir algumas obras pictóricas inspiradas no texto de Ovídio, “O Rapto de Europa por Júpiter”, onde este se transforma em touro branco, e se mistura com a manada preta para melhor chamar a atenção da belíssima Europa.
De Rubens.
De Albrecht Dürer.
De Rembrandt.
De Tiziano.
De Correggio.
De François Boucher.
De Paolo Veronese.
De Gustave Moreau.
Onde está
De Paolo Veronese,
aparece a obra de
François Boucher repetida, pelo que, penitenciando-me pelo erro, reponho a verdadeira obra de
Paolo Veronese
O aproveitamento simbólico compaginado pela sabedoria pictórica e estatuária europeias afigura-se bem contemplado em Strasburgo, na sede do Parlamento Europeu.
“A torre de Babel”, de Pieter Bruegel, “o velho”, serviu de inspiração para a construção do edifício “Edifício Louise Weiss”, do Parlamento Europeu, em Strasbourg.
Na mesma cidade, defronte do "Edifício Winston Churchill", parte também da sede do Parlamento Europeu, existe uma estátua representando o Rapto de Europa.
A sabedoria mitológica grego-romana absorvida, contemplada e simbolicamente aproveitada pela União Europeia, para uma mimética formação e integração dos europeus num espaço apologético da sua identidade.
Para uma melhor visão da imagem da estátua do "Rapto da Europa" frente ao "Edifício Winston Churchill":
manter um dedo pressionando a tecla ctrl, e, simultaneamente, rodar a roda do rato para a frente.
Finalmente, para quem tiver a oportunidade de colher uma moeda de 2 euros, da Grécia, poderá contemplar, uma vez mais o mitológico Rapto de Europa, numa das faces.
Para aumentar o tamanho é seguir as indicações indicadas no comentário anterior.
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