sexta-feira, 9 de setembro de 2011

O sobressalto ético

Os “campeões” e as “estrelas” do desporto sempre foram uma ferramenta utilizada para mobilizar os jovens no âmbito da respectiva formação desportiva. Normalmente recorrendo a desportistas onde estão presentes a excepcionalidade e o talento desportivos. Mas, na grande maioria das situações, não exercendo qualquer critério selectivo a um comportamento sócio-desportivo que possa ser apontado como exemplo para quem se inicia no desporto. Esta tendência foi o resultado directo de ideologias importadas a leste, muito em torno do papel social do campeão e a pressão dos valores sociais dominantes em torno do espectáculo desportivo em que o mérito se centra predominantemente nas capacidades técnicas e menos no comportamento sócio-desportivo.
Como, por mais que se insista, a dimensão desportiva não acarreta necessariamente uma dimensão ética, começaram a surgir, ao lado da formação técnica, programas de promoção da ética no desporto. O facto da formação do praticante desportivo ocorrer num contexto marcadamente de confronto, oposição e de competição colocando problemas próprios animou muita da pedagogia do desporto que encontrava um pretexto para a educação de certo tipo de valores muito ligados ao que se convencionou designar por “espírito desportivo ”e o fair-play. Na generalidade dos casos, reconheça-se, com escassos resultados práticos. Porque a formação do praticante continuou, no essencial, a incidir nas competências técnicas. E porque o problema só em parte é do desporto.
O assunto, tradicionalmente, foi abordado com uma boa dose de voluntarismo. E colocando-o de modo marginal no âmbito da formação dos treinadores. E, em alguns círculos, carregada de uma lógica fundamentalista. E, portanto, desligada da realidade. Associando a prática do desporto, por si só, à aquisição de certo tipo de valores, olvidou-se, muitas vezes, que o modo como se preparam os treinadores determinará, em parte, o modo como se formam os praticantes. E numa sociedade, em perda crescente de valores ligados à nobreza de carácter, pedir ao desporto onde o resultado e o sucesso são determinantes, que resgate o ónus da boa formação, é, muitas vezes, exigir de mais.
Em qualquer actividade social- e o desporto não é excepção -fazem falta os bons exemplos. E um bom exemplo vale por mil palavras. Fazem mais falta ao desporto que os programas e a retórica que lhes está associada. E eles são essenciais para dar sentido formativo à regulação dos comportamentos em situação competitiva, no âmbito dos que o praticam, treinam, dirigem, assistem ou comentam. Todos e não apenas os praticantes. E neste particular é indispensável acolher no seio das práticas desportivas valores civilizacionalmente aceites em qualquer situação de vida em sociedade: o exercício das liberdades, o respeito pelos outros, a tolerância nas relações humanas, o acatamento da regra, a afirmação do primado do direito sobre o arbítrio. O desporto não precisa de se pôr a inventar uma ética. Basta que integre e preserve o que são aos valores civilizacionalmente aceites como válidos.
De quando em vez há em certo tipo de entidades uma espécie de sobressalto. E lá vem a ética.Parece bem,ninguém ousa contestar e as consciências dormem sossegadas.Mal não faz esta inquietação. Sobretudo se junta à preocupação um comportamento cívico correspondente aos valores que pretende ver salvaguardados. E é sempre possível que alguém descubra, na voragem dos novos tempos da prática do desporto, que no regresso ao básico -a formação dos treinadores dos praticantes e dos restantes actores desportivos - está muita da resposta à valorização da qualidade do desporto praticado. Os comportamentos desviantes são apenas um dos seus factores de perturbação. Na óptica do rendimento, da recreação ou de qualquer outra dimensão em que o desporto se contextualize.

14 comentários:

João Paulo Rocha disse...

Pertinente, actual, claro e oportuno.

Armando Inocentes disse...

Sem dúvida, como é normal, um bom texto de JMConstantino, sobre o qual se deve reflectir. E dou-lhe toda a razão...

Claro que não é só com o comportamento dos praticantes que nos deveremos preocupar. Essencialmente com o dos treinadores, dirigentes (clubísticos, federativos e governamentais e, porque não, com o dos árbitros? (para já não falar no dos médicos desportivos...)

Sem dúvida que "a dimensão desportiva não acarreta necessariamente uma dimensão ética" mas deveria! O problema é que confundimos «ética» com espírito desportivo» e com «fair play». E não são a mesma coisa embora pareçam...

Um abraço!

Kaiser Soze disse...

Infelizmente, a ética e o próprio fair play não encontram, verdadeiramente, lugar nas competições profissionais porque se aplaude, somente, o sucesso e o sucesso nem sempre se compadece com a defesa de qualquer outra coisa que não ele próprio.

Não é bonito mas a verdade nem sempre é estéticamente aprazível.

Os valores, desportivos e outros, podem ser encontrados fora do âmbito da excelência, no pessoal que é amador no desporto e naqueles que levam uma vida "normal" mas dificilmente o veremos como protagonista num campeonato do mundo, por exemplo, em qualquer modalidade.
E aqui veremos a grande viciosidade da coisa: quem pratica a ética não aparece na televisão e, como tal, para a população, não existe; quem procura, somente, ganhar é visível mas tem outras preocupações que não a ética.

Lembro-me sempre do que o meu treinador me dizia (o meu treinador no contexto internacional): se o árbitro não viu, não aconteceu.
Ora, a étia vê sempre!

Anónimo disse...

O texto de José Manuel Constantino é excelente.
Armando Inocentes não explica as diferença entre ética, espírito desportivo e fair-play.
Kaiser Soze é realista.

joão boaventura disse...

Peter Singer, na sua “Ética Prática”, à maneira de S. Tomás de Aquino que sentenciava que “de Deus não sabemos o que é, mas sabemos o que ele não é”, resolveu igualmente abordar o que a ética não é.

O anterior IDP tem no seu portal o Código da Ética Desportiva.

Leonardo Boff, assevera que “a ética surge quando o outro emerge diante de nós”, a velha alteridade, o outro, em todas e quaisquer circunstãncias, como o autor desenvolve no seu blog.

Levinas é mais objectivo quando expõe que “ética não é ser bonzinho ou moralista, mas apenas uma estrutura que mantém a nossa vida, e na medida em que, na raiz, dependemos da alteridade e do outro. Subjectividade é mais que sujeito. Sujeito traz a ideia de sujeito de algo, dominando algo, sendo sujeito activo da história, autor ou livre. Na subjectividade temos o subjectum, o que está jogado por baixo, o que está na base e no chão, sustentando tudo o mais, inclusive os pés que pisam sobre. Vejam que diferença interessante; num momento somos senhores, em outro somos servidores. Levinas enfatiza o sentido da diaconia (serviço) e de sustentação que caracteriza todo ser humano, que carrega a sua pessoa e outros nas “costas”, e ainda mais, dentro de si, como a mulher grávida. Estamos grávidos desde sempre e o tempo inteiro. Podemos dar bom frutos, ou podemos tentar escapar de outrem. ‘Alteridade’ é o conceito-chave do início ao fim.” (in pp 277, da referência “Alteridade e ética”, volume organizado por Ricardo Timm de Souza et al, a propósito do centenário do nascimento de Emmanuel Levinas, que vale a pena ler nas páginas que nos são acessíveis.

Heidegger recorda que a etimologia de “ethos” tem um sentido mais antigo e mais sugestivo, o de “moradia” ou “lugar onde se habita”, isto é, a morada do homem é o ser que somos, e em que nos tornamos, pelo agir livre e responsável.

Portanto, a ética (ou fair play, ou espírito desportivo) é sempre a mesma, quer seja no desporto, quer em qualquer outra actividade humana, desde de que respeitemos o outro, como a nós mesmos.

Anónimo disse...

Quem não tem respeito por si próprio (a auto-consciência crítica), como poderá respeitar "o outro"?

Anónimo disse...

Porquê?
Porque o texto de JMConstantino, e os comentários que se lhe seguem, são o mesmo erro? Um erro que há 30 anos, infelizmente, permanece, como uma erva daninha.
Humanamente, todos temos Direito a discutir e falar «de tudo». Mas essa possibilidade não altera a competência ou a falta dela. Ética é sabê-lo distinguir.
Muitos são apenas livres-palradores, uns quase anarquistas, iguais àqueles que graffitam as paredes da democracia. Falam de «ética & desporto», como um analfabeto falaria de medicina ou de engenharia. Claro que têm o direito, e podem falar. Mas continuam a ser o que são, e a saberem o que sabem. Inabalavelmente.
Por exemplo, sobre «ética», alguém perdoaria ao «partido rosa» se se aproveitasse da «crise» para incendiar uma não-solução, preferindo o caminho fácil da crítica cobarde? Isso seria «falta de Ética», digo eu.
Qual é o erro do texto de JMConstantino?
Para os que comentaram a seguir, não há nenhum. Pois.
O primeiro erro é não ir às fontes, aos dados factuais tal como são pelo escrutínio científico. Esses não estão disponíveis na wikipédia, nem no clique na barra do Google, como fazem quase todos os que aqui escrevem.
O segundo erro de JMConstantino, e dos seus seguidores, é separar ética de desporto. Afirmarem que são duas coisas diferentes.
Razão pela qual não permitem nenhum «programa de ética desportiva» … até lhes têm ódio (como afirmam aqui, sem pudor).
Ora, o Desporto é uma «modalidade da ética». Não é um assunto exterior.
É uma Ética (que trata a questão humana do confronto e da competição). O desporto não é um jogo, uma modalidade (as modalidades), ou uma competição fora-da-ética. Portanto, não é preciso ensinar ética desportiva aos treinadores, aos jogadores, e a outras espécies que gravitam à volta do Desporto. Basta voltar a «praticar Desporto». Sobretudo esse que foi morto pelos quadros competitivos do alto-rendimento. Essa parte do «Desporto» que foi expulsa das sociedades humanas pelo alto-rendimento Modernista e olímpico. Não acabar com a parte do alto-rendimento. Não. Mantê-la. Mas não deixar que mate a outra.
O Desporto não é o artifício que consegue transformar a “competição real” (da guerra, da economia, e todas as outras) em “jogo de reciprocidade”? Em que cada modalidade desportiva procura captar, pela sedução da sua ludo-motricidade competitiva, a maneira mais eficaz de executar essa operação ritual?
Para o público que assiste há 3 mil anos, o desporto não é o limite para as consequências do confronto que esse «competir desportivo» cria enquanto compromisso Ético?
Já se deram ao trabalho de ler o que fez aparecer o «desporto» nos colégios de Rugby e Winchester no século XIX? E antes, na passagem da sociedade micénica para a sociedade dórica?
Porque seguiram às cegas o texto de JMConstantino?

Funcionário do Estado

Anónimo disse...

O Funcionário de Estado deve visitar os campos desportivos-coisa que naturalmente não faz porque tem de tratar do gato-e avaliar o profundo sentido ético de um simples jogo de futebol entre jovens a praticar desporto.Como se os devios comportamentais fossem apenas uma consequência do alto rendimento Haja pachorra para aturar a pesporrência!

Anónimo disse...

O Funcionário do Estado, querendo falar de muita coisa, do céu e do inferno, do norte e do sul, do este e do oeste, acaba por não esclarecer nada.

Limita-se a escrever notas num papel, como guia para uma conferência sobre a ética.

Sinais de pessoa perturbada, vá lá saber-se porquê... talvez porque ainda não o convidaram a proferir a conferência sobre a ética.

De qualquer forma é bom guardar as notas de apoio.

Sobre "Porque seguiram às cegas o texto de JMConstantino?", está implícita a resposta na própria pergunta... porque somos todos ceguinhos.

Logo o Funcionário do Estado é o único que tem olho. O que confere ao Funcionário do Estado a categoria de Rei na terra dos ceguinhos.

Anónimo disse...

Desporto Portugal 2011,
interesses prioritários:
Futebol (indústria, negócios e comissões de transferências de jogadores estrangeiros) e Caminhadas (a demagogia feita desporto).
J.O. Londres 2012: previsão actual, Portugal - 0 medalhas.

Armando Inocentes disse...

Apesar de não ser meu hábito responder a anónimos, vou abrir uma excepção… ao anónimo do dia 9 às 17.47!

O uso e abuso do termo «ética» fazem com que a sua generalização o tenha tornado banal. “A pergunta «o que é a ética?» está para além da capacidade humana de resposta; «ética» é apenas um rótulo. A questão crítica é «como é que deverá o termo ‘ética’ ser usado?». A melhor resposta é provavelmente que deverá ser evitado a todo o custo, uma vez que está irremediavelmente corrupta.” (Meehan, 1998).

Mas poderemos dizer, como Brito (2005), que “a ética é a reflexão sobre a dimensão moral que caracteriza o humano e que é irredutível a qualquer outra dimensão do homem, seja ela psicológica, social ou histórica. A ética é uma reflexão crítica, filosófica sobre a moral na procura daquilo que a caracteriza e a justifica.”
Logo, ética desportiva é aquilo que fazemos aqui em Colectividade Desportiva: refletimos, ajuizamos sobre o bem e o mal… mas falamos tão pouco de moral desportiva! A ética é prescritiva, a moral é normativa. A ética é universal, a moral é cultural – daí a moral desportiva ser diferente de cultura para cultura.

O fair-play, termo inglês, vem dos “fairs”, mercados realizados na Idade Média, em que as relações entre os homens eram norteadas pela honestidade, pelo cavalheirismo, daí ter-se adaptado este termo ao jogo (play).
Como diz Weiss (2006), para definir fair-play exige-se:
- Primeiro, uniformidade de condições de competição, e igualdade de oportunidades para todos os participantes (nota minha: o que actualmente é utópico!),
-Segundo, respeito pelo ser humano e colega, e
- Terceiro, estrita adesão às regras e incondicional cumprimento do regulamento da competição (nota minha: cumprir regras e regulamentos nada tem de ético, de honesto sim!)

O ”espírito desportivo” foi a tentativa de tradução para a nossa língua do “fair-play”, embora este termo se tenha vulgarizado de tal modo que o continuamos a usar.
Como já alguém aqui trouxe Ricoeur (que defende o primado da ética sobre a moral), “nós existimos, em certo sentido, no belo meio de uma conversação que já começou e na qual tentamos orientar-nos a fim de podermos por nossa parte acrescentar-lhe a nossa contribuição” (id. 2010).

Ora, acabamos por chegar à conclusão que afinal “a ética não vê tudo”. Nós é que tentamos ver tudo, discutir tudo e chegar a conclusões. Será possível?

Anónimo disse...

Anónimo 11 de Setembro de 2011 16:15.
Lendo este comentário (Futebol, Caminhadas e medalhas J.O. 2012), apenas outro: há quem queira cumprir promessas, mas não consegue. Agora escreve sob o anonimato!

Anónimo disse...

O anonimato é ético?
O anonimato é "fair play"?
Sobressaltemo-nos!

joão boaventura disse...

Vale a pena ler o que George Orwell escreveu no “Tribune”, em 14.10.1945, sobre The Sporting Spirit, a propósito das relações anglo-soviéticas e reflexos desportivos dos encontros futebolísticos de idêntico âmbito.

Isso a propósito da definição de “espírito desportivo” que, face ao que Orwell observou, nos idos de 40, o levou a impregná-lo de “espírito guerreiro” porque o desporto, neste caso o futebol, se lhe afigurou estar “orientado para as noções vagas e sinistras do prestígio tribal”.

Este artigo de Orwell, escrito em 1941, foi revisitado e apoiado num artigo publicado em 30.07.2004, por Brendam Gallagher, no The Telegraph, o qual sugere e nos remete, de certa maneira, para a leitura de um livro publicado em 1995, e com sucessivas reedições (1997, 1999, 2001, 2002, 2004), da autoria de Michael Billig, com o título sugestivo de Banal nationalism, do qual a editora Sage Publications Ltd, nas autoriza a leitura elucidativa de algumas páginas.