A primeira vez que fui detido pela polícia tinha 14 anos. Por um motivo: jogar à bola na rua e fugir para que a polícia não confiscasse a bola. Em Santarém (no Choupal) havia um baldio inclinado onde tínhamos colocado umas pedras a servir de marca de balizas e onde improvisávamos umas futeboladas. Mas tínhamos de estar atentos à chegada do polícia. Porque era proibido jogar á bola na rua. E porque a polícia multava (coisa que nunca confirmei), mas sobretudo ficava com a bola (o que aconteceu muitas vezes). Uma bola, naquele tempo, era um bem escasso. Poucos tinham o privilégio de a possuir. E, daquela vez, a presença da polícia só foi detetada tardiamente e não nos restou outra solução se não fugir. Um polícia que vinha em sentido contrário percebeu o que se passava e deteve dois de nós. Fomos conduzidos à esquadra, a pé, e como a esquadra ficava no lado oposto da cidade, sofremos a suprema humilhação de a atravessarmos indo presos. Pouco tempo depois de chegarmos à esquadra o meu pai, entretanto avisado de que o filho tinha sido preso foi buscar-nos e nada de especial aconteceu.
No liceu de Santarém era proibido jogar à bola. Mas nos intervalos das aulas fazíamo-lo nas traseiras do liceu ou num improvisado polidesportivo existente. De vez em quando, o contínuo, que naquela altura ainda não se chamava de auxiliar de ação educativa, tirava-nos o número e apresentava queixa ao diretor de ciclo. Que me lembre nunca aconteceu nada de especial. E quando havia um feriado -assim se chamava quando o professor faltava- saíamos do liceu, o que também era proibido, e íamos jogar à bola para as traseiras do Convento (Santa Clara).Nesse tempo, na praia, também não se podia jogar à bola. Se aparecia o cabo do mar confiscava a bola.
Anos mais tarde, já profissional, vivi outro tipo de proibições. A I corrida do Tejo na Marginal foi realizada com um forte conflito com a GNR (major França de Sousa) e a II edição foi proibida pelo Governo Civil de Lisboa, na véspera da sua realização, com o argumento de quer era proibido correr na Marginal .O percurso da I meia maratona do 25 de abril (Trafaria/Belém) não foi autorizado porque também não era permitido correr sobre a Ponte 25 de Abril.
Os tempos são outros. E muitas das proibições deixaram de o ser. Vistas à distância algumas destas situações até parecem bizarras. Mas na nossa contemporaneidade há qualquer coisa de cultura do interdito que permanece.
Há cerca de uma semana uma aula de ginástica aeróbica, com cerca de uma centena de pessoas, e realizada ao ar livre no Porto de Recreio de Oeiras, foi interrompida porque a autoridade marítima invocou a ausência de licença para aquele efeito. E embora a entidade responsável pela gestão do espaço tenha dado total garantia de que tinha autorizado a referida ação, e que ela decorria no espaço que geria, a autoridade marítima invocou que a entidade gestora do espaço não tinha competências para autorizar o que quer que fosse no espaço , porque essa era uma competência dela (autoridade marítima).
Há dias, pessoa amiga, telefonou-me indignada porque um grupo de jovens, entre os quais se encontrava um dos filhos, montou uma rede de voleibol numa praia (Baleal) e divertia-se a jogar com os amigos quando foi mandado parar o jogo por uma patrulha da autoridade marítima. O argumento é que só podia o fazer em zona licenciada e devidamente autorizado. A praia naquele local estava deserta e nada daquela atividade prejudicava quem quer que fosse explicaram os jovens e os adultos que entretanto assistiram ao insólito da situação. Que não, diziam os polícias, porque a lei é clara.
Entre as minhas futeboladas de jovem e os jovens que no Baleal queriam divertir-se batendo umas bolas por cima de uma rede passaram cerca de 50 anos. Mas não passou o mesmo espírito miudinho, censório, policiesco, cujo comportamento não resiste ao mais elementar bom senso. E com não é possível legislar o bom senso o resultado é este. O que ajuda a explicar muitos dos nossos atrasos e das nossas dificuldades. Há um polícia e um censor escondidos em muitos de nós. É com o desporto como podia ser com qualquer outra atividade. E que não é culpa do governo, dos partidos políticos, da senhora Merkel ou da troika. É culpa das nossas mentalidades e dos valores que nos orientam na vida. Afinal, os mesmos problemas de sempre!
13 comentários:
Eu percebo a ideia subjacente ao texto de JMC.
E também passei por problemas idênticos na FPA quando organizavamos grandes competições internacionais.
Lembro-me do Mundial de Meia-Maratona na Marina de Vilamoura, onde fui deparar com 4 autoridades diferentes que mandavam naqueles arruamentos. E que não se entendiam.
Mas aqui acho que o problema não é cultural nem estamos nos tempos da Ditadura.
A interpretação relativizada dos textos legislativos (o tal bom senso?) decorre de uma geração (a do Maio de 68) que reinventou o conceito de liberdade.
"É proibido proibir" proclamou Daniel Cohn-Bendit enquanto atirava pedras à polícia e incendiava automóveis.
A liberdade tinha que ser total e prevalecer sobre a Lei.
Porquê? Porque sim!
Tempos revolucionários que deixaram marcas e que persistem no subconsciente dessa geração.
Ideias igualitárias e anárquicas, alegremente fundamentadas em textos de Jean-Paul Sartre.
Mas nos estados de direito é a Lei que prevalece.
Pode ser estúpida ou mal definida.
Mas pode ser mudada.
Pelos Governos e pelos Parlamentos.
Às autoridades policiais compete fazer cumprir as leis.
Só.
Caro Luis Leite
Deixemos as questões do Maio de 68 e as teses sartreanas para outras núpcias.
Um Estado de direito não é um Estado que pauta o seu comportamento pela mera legalidade (fazer cumprir as leis). Houve, e há, Estados que não são democráticos nem de direito, mas que sempre se assumiram como Estados de legalidade. Uma das primeiras consequências do princípio do Estado de direito está e na ausência do poder arbitrário, ou discricionário, marcado pelo capricho deste ou daquele zeloso funcionário policial . Que se limita a aplicar a lei sem cuidar de interpretar o seu espírito e respetivo alcance. E em que o prejuízo social da sua aplicação é maior que o benefício social que resultaria da sua não aplicação. A supremacia absoluta, ou a predominância da lei sobre a situação concreta não é uma característica dos Estados de direito mas uma sua adulteração…
Pelo menos agora não podem dizer que estou sempre de acordo consigo. A quem compete interpretar as leis é aos Juízes de Direito. Não aos polícias nem aos cidadãos, que só têm que as cumprir e fazer cumprir. Não vivemos muma democracia direta. Escolhemos um Governo e uma Assembleia da República. Temos representantes legais. Claro que o direito à indignação é legítimo. Tal como a liberdade de expressão desde que não seja crime nos termos da Lei.
O critério actual baseia-se no espírito de aconselhamento e cooperação, considerando que, na PSP, é considerado bom polícia aquele que não traz serviço para a esquadra, i.é, que consegue resolver os problemas de rua no próprio local.
É como nas escolas. O bom professor é aquele que resolve os problemas disciplinares directamente com o/os aluno/s, evitando ter que participar, ou levar o/s aluno/s à direcção da escola.
Não basta às leis desempenharem as funções pedagógicas que lhes competem, se os zeladores não desempenharem as mesmas que também lhes cabem.
Sim. É pertinente juntar numa coluna "aquilo que se repete". Porque permite analisar o que se fez.
Exatamente por isso, permitam que acrescente o seguinte comentário:
Talvez a questão seja outra.
Seja uma questão de Política de Desporto. Concretamente, o esbanjamento que o Estado permitiu a alguns negócios chorudos de construção de «equipamentos e infraestruturas desportivas para o Alto-Rendimento». Que estão vazios, a degradarem-se, e a contribuírem para a ruína do País.
E quem lucrou com esse desvario passa impune, sem lhe ser cobrada a dívida que provocou à Colectividade Desportiva.
É óbvio que uma Política de Desporto que «apenas» investe no Desporto de Alto Rendimento e nas Medalhas da Festa Quadrienal não lhe convém «outros espaços desportivos» que não sejam «especializados» e para essa «elite atlética». Usa a força da lei e da ordem para preservar a ordem e o lucro do seu negócio.
É uma Política que esbanja e restringe a prática desportiva a uma escassa elite de cidadãos/ãs. E critica ferozmente outra que não seja essa. É uma Política que ataca a diversificação dos espaços e a tipologia dos locais onde os quadros competitivos não-federados se poderiam realizar. Sobretudo porque não exigiam cadernos de encargos encomendados a arquitetos e engenheiros, nem grandes proventos às empresas que lhes pagaram as avenças.
Até proíbe, como faz um famoso e assíduo Comentador deste blogue, que se chame Desporto à competição que não seja Olímpica ou de Alto-Rendimento.
A Folha A4 punha na «ordem (evidentemente legal) esse abuso. Num instante. Em nome de uma Liderança, de um Desígnio, e de Objetivos mais consentâneos com o interesse público e com o respeito que o Estado deve merecer.
Vai uma aposta?
Talvez
Caro João Boaventura:
O espírito de aconselhamento e cooperação é viável e útil quando a atuação policial não enfrenta situações de infração da Lei, em casos extremos designadas como criminosas.
Nesses casos, só a coima ou a ordem de detenção, seguida das medidas estrita e proporcionalmente aceitáveis podem e devem ser empregues.
Nas escolas, a intervenção pedagógica do professor tem limites, em função da gravidade da infração.
Os "zeladores", na sua missão, não cumprem apenas funções pedagógicas, quando se trata de casos extremos de insubordinação e violência.
A aplicação de penas, nestes casos, acaba por ser pedagógica, mas de forma indireta, servindo de exemplo para os demais, cumprindo também a função de proteger a sociedade daqueles que não aceitam cumprir Leis e Regulamentos de são enquadramento social.
Quanto a Talvez, continua a sua viagem interplanetária e promete não descer à Terra tão cedo.
A atuação das autoridades policiais nos casos que menciona, ou do funcionário que dificulta a aposição de um carimbo com procedimentos fúteis é basicamente idêntica.
Deste modo, a questão em si não será tanto a atitude censória, mas tão-só o exercício do poderzinho associado a quem tem o carimbo na mão. Em muitos sítios, e não apenas em Portugal, existem pessoas que gostam de vincar o seu poder, por pequeno que seja, sobre a vida dos outros. Talvez assim se sintam mais úteis à comunidade e menos dispensáveis...
Caro Luís Leite
A sua observação é justa pelo que foge a uma situação de ambiente pacificado que permite o diálogo e o entendimento para uma solução que satisfaça as duas partes.
Não referi casos extremos onde a solução só pode ser extremada, como esclareceu e bem.
Cordialmente
Um exemplo típico da milenar «arte da fuga». Quando se estava a debater o concreto e a objetividade com «Alfredo Silva», de repente, ensaia-se a fuga para esta reflexão filosófica-metafísica, no concreto, desprovida de qualquer interesse para a realidade desportiva. A não ser na parte que referi, da política de esbanjamento do erário público, feita pelos equipamentos e infraestruturas que estão em decadência e a ser pagos pelos contribuintes.
Os «velhos» culpam os «novos», e até lhes pretendem indicar o caminho. Nesse mundo de ilusão e de ilusionismo em que teimam em viver, sobretudo quando se «reformam», não se apercebem de que foram os culpados da situação atual. Objetivamente, porque os outros não estavam cá, e não podem obviamente ser culpados pela realidade atual. Que, aliás, vão ter que pagar com o seu esforço e o das suas famílias por muitos anos. Os velhos esperam admiração e que lhes sigam os conselhos, depois de lhes fazerem isto?
Os «novos» que se acautelem com os «velhos». Porque tal como disse um famoso escritor em 1923: "Há sempre muitos inimigos. Mas acabam todos por se reunir apenas num: aquele que nos diz como devemos pensar".
É dessa «fuga à realidade» que estes comentários teimam aqui em prolongar. Esquecendo completamento o Desporto, e o que objetivamente nele fizeram.
Ou não?
Talvez
O Talvez tem ideias muito interessantes…mas devia explicar aos leitores do blogue que funções profissionais exerceu entre 2005 e 2011 e o modo como as sua ideias inovadoras foram aproveitadas pelo governo de então.Porque às tantas até parece que nunca teve nada a ver com a governação do desporto
Bem dito «Anónimo de 5Set2012 17:18».
Apenas posso «fugir» argumentando de que «sendo ninguém», e «não contando para nada», como haveria de ter tido alguma influência na governação?
Os cursos, os livros, a formação, e a qualificação profissional são importantes e imprescindíveis. E só lamento que muitos nossos concidadãos/ãs infelizmente, por razões sociais e económicas, não tenham mais possibilidades de as obter. Isso aumentaria a competição entre os que estão no «poder» e os que sofrem um destino tantas vezes cruel. Sou de uma aldeia da Beira em que para irmos à escola tínhamos que andar 11 kms a pé, fizesse sol ou gelo/chuva. E era preciso que se vendessem uns cestos ou uns legumes na feira quinzenal para pagar os tostões que faziam a diferença entre ir e não ir. A esses não chega ter 15 ou 16 valores para progredir. Depois vemos uns assessores bem-nascidos, ou uns cola-cartazes, ou uns amigalhaços com provas medíocres, a passarem à frente com menos mérito. Até inventam critérios nos concursos, fazendo equivaler administrativamente um curso de cinco anos escrutinado pelos pares a uma formação de poucas horas dadas num qualquer instituto extinto. Mas é assim a Vida. E nada mudará isto.
Mas regressando ao assunto diria que essa formação/conhecimento técnico é imprescindível, mas a Experiência Profissional é que potencia esse saber-fazer. É a Experiência que nos faz avançar e superar aquilo que éramos.
Se me conceder, uma ou a outra hipótese, poderei escapar melhor ao seu comentário verrinoso.
Talvez
# Quando se estava a debater o concreto e a objetividade com «Alfredo Silva», de repente, ensaia-se a fuga para esta reflexão filosófica-metafísica, no concreto, desprovida de qualquer interesse para a realidade desportiva.#
Primeiro, não se falou do Alfredo Silva.
Segundo, magister dixit.
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