Ensinaram-me na família e na escola que é uma obrigação cívica ser transparente e verdadeiro, dizer o que se pensa, dar testemunho, assumir, expor e revelar em público as convicções, crenças e posições comungadas. Não por uma questão de coragem, mas por imperativo educacional e moral. Já faz muito tempo, mas a memória não se desvaneceu e continua a inspirar a prática quotidiana, por mais que os ventos politicamente correctos soprem noutra direcção e aconselhem a pôr de lado as aprendizagens de antanho. Para não esquecer, nada melhor do que exercitar. É o que passo a fazer.
Começo por confessar que sou católico. Não tanto no entendimento comum do termo, que o prende apenas a um ritual mais ou menos visível. Mas sobretudo, convicta e irrecusavelmente, nas inalienáveis matriz axiológica e textura cultural que me enformam e sustentam. Como quase todos os portugueses, particularmente os idosos e adultos, nasci, cresci e encorpei-me num caldo de princípios e valores, de ideais e utopias, de deveres e direitos, de modos de interpretação e condução da existência implícitos ao catolicismo. Foi e é neste contexto que se forjou e evolui a minha identidade, enriquecida e configurada com a abertura a outros horizontes que têm na transcendência e no primado do Humano a linha mestra, desafiadora, inquiridora e desassossegadora da consciência.
Como católico, tendo a rever-me em estilos, hábitos e rotinas da vida, em arquétipos e qualidades de carácter e cidadania, em modelos de estruturação e institucionalização da sociedade contribuintes para a realização superior dos axiomas e mandamentos fundadores do catolicismo. Entre eles nomeio os da dignidade, excelência, rectidão, fraternidade, igualdade, liberdade, solidariedade, respeito e apreço do outro como um prolongamento do Eu. Nisso partilho e incorporo os postulados, as propostas e promessas da revolução francesa, dos enciclopedistas, dos humanistas e iluministas, dos republicanos e das doutrinas, ideologias e políticas de cariz social.
Sou a favor da caridade percebida como virtude intrínseca do ‘ser humano’; porém contra a falsidade e a hipocrisia da sua divulgação e exibição, já que uma mão não deve saber o que a outra faz.
Advogo o caleidoscópio e o arco-íris da diversidade e rejeito os mecanismos e a sensaboria da uniformidade. Mas defendo o espaço público, a Escola e a Universidade públicas, a saúde, justiça e segurança para todos, o reforço da função de intervenção e regulação do Estado. Não me calo perante a aleivosia de nos quererem impingir, a todo custo, bitolas, formas, balizas, metodologias e normas de ordenamento jurídico, de funcionamento, gestão e avaliação (p. ex., nas escolas e universidades), ao arrepio das nossas fontes e raízes matriciais.
Sou decididamente contra estes tempos ‘líquidos’, de sociedade ‘líquida’, de amor ‘líquido’, de instituições ‘líquidas’, de família ‘líquida’, em que tudo se dilui, esvanece e liquefaz. Sou, portanto, contra o enfraquecimento e destruição dos laços e noções de solidariedade, das organizações incumbidas de proteger os cidadãos do abandono, do desamparo, do descaso, do infortúnio, da má-sorte, do desemprego. Sou contra as ‘reformas’, medidas e panaceias que aumentam o bem-estar material dos nababos, ricos e poderosos e condenam os restantes ao progressivo empobrecimento, à míngua e à miséria.
Não me dizem respeito as preferências sexuais dos outros; são um assunto do foro íntimo de cada um que não ouso questionar. Essa tentação não me passa pela cabeça. Todavia não sou favorável ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, pelo facto do casamento ser uma figura civilizacional e jurídica, criada para contratualizar a relação matrimonial entre uma mulher e um homem e para servir de base à estruturação e conservação da sociedade.
Numa conjuntura de queda abrupta e inquietante da natalidade, com as nefastas consequências que isso acarreta, sou contra a pacóvia e ensurdecedora tagarelice do enaltecimento do género. Sou firmemente a favor da diferenciação, formulação, proclamação e exaltação do feminino e do masculino.
Assumo estas posições sem medo de me colocarem rótulos depreciativos e ofensivos. Sem medo dos lobies e pregoeiros, hoje tanto em voga e com tão fácil acesso e poder de manipulação e propaganda nos media, que põem carimbos de ‘reaccionarismo’ a quem não alinha com a sua visão relativista.
Sou contra o Processo de Bolonha, por muitas razões, nomeadamente pela fraude que encobre, pela falta de cultura do espírito que o anima, por ser um embuste e instrumento ao serviço da insanidade e insensatez. Essencialmente por ser uma versão requentada do ‘eduquês’ e do correspondente relativismo pós-moderno favorecedor da progressão do império do bacoco e grotesco, do indolor e inestético, apostado em reduzir a influência e o papel formativos do professor e das aulas, em atentar contra o ensino e a transmissão exigentes e formais dos conhecimentos sólidos e em desvalorizar e despir estes de alcance e significado, apelando a deitá-los fora e a substituí-los a toda a hora por qualquer novidade. A apologia que os arautos do Processo de Bolonha fazem da flexibilidade, mutabilidade e criatividade traz e esconde no seu bojo uma atitude pessimista em relação ao saber; o apelo à aquisição de competências constantemente alteradas, ditas novas e actualizadas é, afinal, um convite à desaprendizagem, porquanto não é importante reter e conservar nada por muito tempo. Ele não deve gerar referências e ancoradoiros confiáveis e seguros; mancomunado como está com o mercado neo-liberal de consumo, interessa-lhe produzir identidades instáveis, mutáveis e mutantes, permanentemente insatisfeitas e precárias, inconstantes e inconsistentes, isto é, não identidades.
Nunca me arrebatou e hoje ainda menos me entusiasma a União Europeia. A minha pátria é a mesma de Fernando Pessoa: a da língua portuguesa. Somente numa associação íntima com os países lusófonos descortino um futuro de autonomia e sobrevivência para o universo de afectos, anseios, diásporas, fados, angústias, ideias, mensagens, perspectivas, saudades, errâncias e peregrinações que perfazem a alma lusitana e o seu ideário. Se a nossa pequenez territorial e económica nos força a procurar apoio e protecção, então procuremo-los no Brasil; agora como no passado, unamos a ele o nosso reino, porque nele estamos em casa e encontramos uma força acolhedora, expansiva e pujante.
Como se vê, sou conservador. Direi mesmo, muito conservador e, em igual medida, patriota. Defendo a conservação e o aprofundamento do legado civilizacional, social, comportamental, estético, ético e moral do Humanismo, do Iluminismo e da Modernidade, da República e da Democracia. Sim, sou pela conservação e perpetuação da sociedade e de tudo quanto lhe confere conteúdo e forma humanamente relevantes e dignificantes.
Por tudo isto venho aqui estabelecer demarcações e fronteiras. Estou plenamente convencido de que sou de esquerda. É a direita que, nas presentes circunstâncias, está animada de um frenesim reformista arrasador das conquistas, marcas, símbolos e traços da Humanidade.
1 comentário:
Poética
Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. Diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o
cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de excepção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora
de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário
do amante exemplar com cem modelos de cartas
e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc.
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbados
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare
- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.
Manuel Bandeira
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