terça-feira, 8 de maio de 2012

Desporto Doce - Venha Cá

"Os limites do meu mundo são os limites da minha linguagem"
Wittgenstein


Não se recorda na história moderna deste país um período de crise e austeridade onde os laços de solidariedade entre cidadãos e decisores fosse tão ténue e distanciado. Mesmo numa sociedade de cariz paroquial, no Portugal mais profundo e tradicional onde estão mais vincados estes traços comunitários, as dimensões de análise sociologicamente mais relevantes, tendem a demonstrar, em diversos estudos, um afastamento comprometedor e quebra de confiança, nos eleitos nacionais (algo recorrente), mas também, e mais preocupante, nos eleitos locais.

Ora, num contexto recessivo, marcado pela atomização do individuo e por fugazes relações sociais de cariz instrumental, estamos em crer que a debilitação da democracia representativa, principalmente ao nível local, constitui um obstáculo assinalável para a mobilização cívica da comunidade na sua expressão de democracia participativa, precisamente no momento onde este activismo supostamente deveria ser mais acentuado, responsável e concertado com aqueles que desempenham funções políticas.

Esta concepção, quiçá romântica, da politica, encarnada por lideres de referência num passado não muito distante, como processo de afirmação do bem comum e reforço dos laços de relação entre elite e sociedade, encontra-se manietada por uma reconfiguração do papel da economia e da cultura.

O facto da economia instrumentalizar a politica tem vindo a valorizar uma dimensão da actividade económica propicia à especulação (a maximização de recursos, a eficácia e a eficiência), em relação a uma  outra, que, aliás, está na sua génese etimológica, concretamente a procura de equilíbrio nas trocas, a interdependência e correcção de assimetrias.

A cultura, codificada em apenas mais um bem transacionável entre muitos outros, nos mais variados meios de difusão e comunicação, nas práticas e discursos sociais, nos eventos ou espectáculos, como uma experiência sensorial intensa, mas efémera e de desgaste rápido à semelhança dos seus protagonistas hodiernos, abdica de ser um espaço de liberdade, criatividade, afirmação da autonomia e valorização do individuo, enquanto instrumento essencial para se definir como cidadão.

Ora, o deporto é hoje um produto acabado desta realidade intensa, onde a deriva asséptica do activismo físico bem embrulhado pelo marketing de uma vida activa e salutar o tornam num produto apetecível a um vasto mercado em que o praticante de ontem se transforma no cliente de hoje.

Um produto, que quando apresentado em versão de espectáculo desportivo fideliza espectadores e  representa, segundo dizem, um mercado economicamente relevante para Portugal e para a afirmação do sucesso luso fora de portas, por mais lamentáveis que sejam os episódios em torno dos seus responsáveis e inexplicáveis as suas decisões.

Cliente ou mero espectador, de ambos o desporto se tende a afastar enquanto fenómeno cultural modelador da sua identidade e carácter...

Não espanta pois que quem lidera, nas várias esferas territoriais, se sinta tentado a polvilhar a sua agenda em torno destes produtos, partilhando os seus momentos de maior e melhor esplendor, com a mesma velocidade que se apressa em anunciar a sua preocupação, as medidas políticas de fundo ou o valor da autonomia das instituições quando tal não acontece. Tudo isto, parafraseando a citação do inicio deste texto, com uma linguagem própria de um quadro de referência assaz limitado em pensamento critico.

Quanto mais se confunde o gesto com a gesta, e quem lidera passa pela vida desportiva e associativa sem que esta passe por si, surgindo, aqui e ali, ideias soltas, sem ideais ou ideologia, mais o desporto se assemelha a um bem franqueado em desconto de ocasião num espaço comercial perto de si. 

Vender e promover a importância da comunicação, da gestão de equipas, da dinâmica de grupos e demais estratégias de liderança por aí em voga, só anuncia a campanha e os seus protagonistas. A música de fundo, se o leitor me permite, escolho-a eu.


Até quando ?

1 comentário:

Luís Leite disse...

Um diagnóstico acertado de uma realidade em que a cultura do ter (e não do ser), que predomina largamente, se apropria do sucesso alheio e o mitifica, numa lógica de inveja (estática para o impossível, dinâmica para o possível).
O mercado valoriza e estimula a procura do óbvio, numa lógica de curto-prazo.
O horizonte é o "já".
Tudo é efémero, passageiro.
Para usar e esquecer logo a seguir.
A valorização pessoal passa por copiar o que os famosos têm e usam.
A formação de uma identidade pessoal construída e baseada no conhecimento não interessa à cultura de massas.