terça-feira, 10 de julho de 2012

A síndrome do aeroporto

O aeroporto passou a ter um novo valor. Um valor simbólico. Mas não menos importante do aquele para que sempre serviu: local de partida e chegada de aviões. Agora permite atestar quem dá valor aos feitos desportivos nacionais. O governante que lá se desloque para receber os nossos heróis passa no exame. Quem o não faz, reprova. Eis ao que chegámos!
Um feito desportivo internacional deve ser objeto de reconhecimento. Como qualquer outro feito: artístico, literário, musical, empresarial, cinematográfico. É normal que a comunicação social o refira. É normal que as entidades públicas e governamentais o valorizem. E qua as pessoas exultem com o facto. A literatura, a arquitetura, o cinema, as artes plásticas e o desporto têm alcançado feitos de reconhecido mérito internacional. Mas ninguém está à espera que um membro do governo aguarde no aeroporto a chegada de Siza Vieira, Souto Moura, Joana de Vasconcelos, Manuel de Oliveira ou Gonçalo M. Tavares. Por que o deve fazer em relação ao desporto? A resposta é simples: pela visibilidade mediática que essa presença permite alcançar. Não é pelo desporto. Não é pelas pessoas em concreto. É pensando naquelas que não estando lá ficam a saber que o governante lá esteve. Uma presença para ser lida como a de um dos nossos, alguém que dá atenção, que se interessa, que cultiva uma relação de proximidade com o desporto e os seus problemas. Mas é puro engano. O que se procura não é quem chega. É quem cá está. E chama-se comunicação social. Com um objetivo claro: propaganda. Um forma de fazer política por outros meios!
O normal seria que os familiares e os amigos mais chegados, dirigentes e um ou outro adepto, esperassem os atletas e as delegações à chegada ao aeroporto e aí os cumprimentassem e saudassem. Até há relativamente pouco tempo os governantes enviavam saudações aos atletas e respetivas federações. E, em alguns casos, recebiam formalmente nas respetivas instituições os competidores, elementos técnicos e dirigentes. E, em ambiente formal, valorizavam e agradeciam, em nome das entidades públicas, os resultados alcançados.Com a dignidade e frugalidade que o Estado deve colocar nos seus atos públicos. Não havia ainda o hábito de os próprios governantes se deslocarem ao local da chegada, normalmente o aeroporto e, aí, exprimirem o que lhes vai na alma e em outros sítios da geografia do corpo. O que mudou radicalmente as coisas: passou a ser exceção a não comparência. E todos passam a requerer a presença de um qualquer governante sempre que desembarcam no aeroporto. Incluindo uma equipa de arbitragem. Do futebol claro, porque ninguém está à espera que um juiz nacional de um torneio de ténis, ou de um campeonato do mundo de ginástica ou de atletismo caia no ridículo de criticar tal ausência. Já sei que o futebol é o futebol, mas quem governa o desporto, governa todas as modalidades. E o patético de tudo isto é que um membro do governo, que fala em nome do Estado, se sente na necessidade de justificar perante os jornalistas o facto de não ter ido ao aeroporto esperar Pedro Proença.
O espetáculo desportivo contaminou todos. E não prescinde da sua rave. E o aeroporto da sua sunset party desportiva. Muita festa e muito glamour. Exaltação da pátria. Emoção e sentido de dever cumprido. E com isto o espetáculo tomou o lugar da moral. E em que tudo, incluindo o reconhecimento ao mérito desportivo, tem de obedecer a uma lógica de teatralização como epopeia dos feitos desportivos. A situação atingiu tal patamar que já houve casos, recentes, em que mesmo na ausência de qualquer feito desportivo especial, apenas uma banal participação desportiva igual a tantas outras, justifica a presença do titular de cargo público.
O que aqui está em causa não é obviamente o reconhecimento ao mérito por parte de entidades governamentais. É a sua subordinação a uma lógica populista e de pirosice em que se sacrifica a dignidade das funções públicas do Estado a uma arte de representação para consumo público.Com a governação transformada numa paródia,que até justifica a presença num sorteio do futebol,equivalente a uma peça da indústria do divertimento e da banalização.

2 comentários:

Luís Leite disse...

Concordo.
Pode mesmo dizer-se que os governantes que discriminam positivamente o Futebol em detrimento das outras modalidades, estão a proceder de modo ilegal, já que atentam claramente contra o princípio da igualdade explícito na Constituição.
Não é só no aeroporto de Lisboa.
É, por exemplo, nos sucessivos Despachos que regulam as transmissões televisivas em direto como de interesse nacional.
No caso do Futebol, todos os escalões etários são de interesse nacional e obrigam a RTP à transmissão direta, ao contrário do que acontece com as outras modalidades, em que os critérios são diferenciados.

Posso ainda dar outro exemplo significativo:
Sendo a minha pessoa Chefe de Equipa nos Jogos Olímpicos de Pequim na modalidade Atletismo, aconteceu duas vezes serem raptados pelo Governo, em conluio com o Presidente do COP, sem o meu conhecimento e do Chefe de Missão, Nelson Évora e o seu treinador.
Em Pequim, logo a seguir à prova e, dias depois, no Aeroporto de Lisboa, ainda dentro do avião, antes da saída do mesmo.
Uma apropriação do Poder político do ouro olímpico em proveito próprio e exclusivo.

joão boaventura disse...

Caro Zé

O aeroporto tem um valor simbólico porque se configura como um local de cosmopolitismo, e o que se passa com o desporto passa-se com múltiplas actividades.

É a sede de um filme que se repete com todos os actores, os mais diversificados.

Um abraço