sábado, 1 de setembro de 2012

Espírito olímpico – Entre a inteligência táctica e a manipulação de resultados


De há muito a esta parte que o lema coubertiniano "o mais importante não é vencer, mas participar!" se tornou, como tantos outros, numa proclamação de circunstância na competição olímpica, convertido num slogan de marketing.

Competir, e dar o máximo, por vezes até no limite da lei, para alcançar a vitória traduz hoje o ethos projectado no discurso e na prática dos agentes desportivos através dos órgãos de comunicação de massas que cobrem os Jogos Olímpicos. Por outras palavras, estas atribuídas a Martina Navratilova, “Quem disse que ganhar ou perder não importa provavelmente perdeu”.

Não se pretende aqui tecer considerações sociológicas sobre a génese e a maturação deste quadro de valores, ou sobre a sua eventual antinomia, mas tão só situar e sublinhar na plasticidade dos valores olímpicos - ou se quisermos, dos “Princípios Fundamentais do Olimpismo”, como titula a Carta Olímpica -, um conjunto de episódios ocorridos durante e após os Jogos .

Em Londres, conforme foi tornado público, a Federação Internacional de Badminton, com o apoio do COI, decidiu expulsar do torneio feminino de pares oito atletas por tentarem perder propositadamente os seus jogos, no sentido de obterem maiores vantagens competitivas em fase posterior do torneio, para a qual já estavam apuradas. Tais atitudes, como o falhanço deliberado de pancadas, perante os apupos do público, e a admoestação dos árbitros, foram consideradas como atentatórias ao espirito olímpico, enquanto as jogadoras, e outros agentes da modalidade sustentavam que nada nos regulamentos existentes proibia o recurso a este expediente.

Na medida em que o recurso à derrota, ou a um menor desempenho, como instrumento de estratégia táctica para proveito competitivo, não está expressamente proibido pela Carta Olímpica ou, neste caso particular, pelos regulamentos da Federação Internacional de Badminton, abre-se um foco de debate em duas vertentes.

Primeiro, no domínio dos valores acima enunciados, da sua relação com a lógica de organização das competições e a exploração económica do espectáculo, quando a derrota pode ser um recurso válido, de atletas e treinadores, para evitar um adversário mais forte numa fase inicial da prova, ou quando o desempenho mais contido possa constituir uma manobra táctica relevante para dosear esforço e iludir adversários. Com tudo o que isso implica numa certa frustração do público que paga um ingresso para assistir a um espectáculo onde os protagonistas reduzem a intensidade de esforço, no caso de modalidades individuais, ou passam a maior parte do tempo sentados no banco de suplentes, como não raras vezes ocorreu com as principais vedetas da selecção de basquetebol norte-americana.

Segundo, no que respeita à regulação desportiva na salvaguarda da integridade das competições em relação à manipulação de resultados, tema na ordem do dia da agenda politica desportiva internacional. 

Não havendo manipulação de resultados neste caso, pelo menos na sua concepção convencional e vertida em diversos ordenamentos jurídicos, uma vez que a derrota deliberada das atletas não envolveu uma contrapartida financeira ou patrimonial para fazerem algo que de outra forma não o fariam, mas apenas a tentativa de obterem uma vantagem táctica no decurso da sua competição, a distância que separa estas duas realidades não será assim tão grande.


Ora, como em tantas outras circunstâncias, a regulação é apenas um instrumento de política. A sua aplicação continua a ser, pelo menos para um sociólogo, um dos melhores barómetros para atestar o quadro de valores que orientam aqueles que a produzem, implementam e sobre ela decidem, tanto ou mais do que os atletas e treinadores que se limitam a gerir o quadro regulador em função do seu principal propósito que é ganhar a competição!


12 comentários:

Luís Leite disse...

Um texto extremamente interessante e plenamente atual de JP Almeida.
Em Portugal, há muita gente que toma decisões relativas ao desporto de agora, nunca tendo estado ligada de perto ao mundo do alto rendimento, ou tendo sido praticante há 50 anos.
É necessário conhecer de perto este mundo real naquilo que representam os seus bastidores.
Como diz o autor, a regulação tem que ser conhecedora da realidade em todas as suas dimensões e não apenas a politicamente correta.
A verdade é que temos um défice enorme de pragmatismo nas áreas legislativa e reguladora do Desporto.
Por outro lado, a Universidade parece estar desinteressada destes assuntos, que são nucleares.

Anónimo disse...

O “lema coubertiniano” citado por João Almeida, “o mais importante não é vencer, mas participar!»”, encerra uma contradição.
Pois se retirarmos o objetivo «vencer» ao conceito «competir» é a própria «competição» enquanto objetivo que desaparece. Desse modo, o «participar coubertiniano» deixaria de ser um «participar desportivo»; podendo provocar a consequência de os Jogos Olímpicos e o próprio Objetivo Olímpico deixarem de ser «Desporto» ou «Desportivo». Visto que, seguindo o intervalo de possibilidades que o lema permite, seria permitido «competir para não vencer».

A proposta de interpretação que propus em 1987 para sair dessa contradição foi a seguinte:
“No competir desportivo, diferentemente dos outros tipos de competição, estabelece-se a priori um compromisso. O de que a força de quaisquer das partes envolvidas no confronto não destruirá as outras, seja qual for o resultado da contenda. E que no próximo confronto haverá igualdade e paridade entre os competidores, sejam quais forem os resultados anteriores. Ou seja, o que é louvado e celebrado é sempre um nível lógico de comportamento acima do próprio confronto e dos seus motivos. A metáfora que o Desporto dá a ler à Sociedade no competir desportivo (tanto aos cidadãos-atletas, como aos cidadãos-assistentes), é a da compatibilização entre o vencedor e o vencido. A possibilidade da vitória e da derrota não serem mutuamente exclusivas. De ser possível, na relação humana, um comportamento de rivalidade e de confronto sem colocar em perigo a continuidade da relação entre os indivíduos e as comunidades. É nessa promessa subentendida, de se poder anunciar um “jogo futuro”, que está a garantia de continuidade da vida social. É assim que o Desporto cumpre a sua função social, e se torna numa instituição capaz de regular os impulsos humanos de agressividade, e não o contrário, como o senso-comum e os mais desatentos afirmam.» (Talvez, 1987)
Ou seja, esta interpretação não retira ao conceito «competição» o objetivo «vencer», antes considera que, no citado lema de Coubertin, «objetivo» e «conceito» pertencem a dois tipos lógicos diferentes de raciocínio.
Razão pela qual talvez tenha que haver uma certa precaução. Se a opção tática que João Almeida refere teve por objetivo «vencer», e se «vencer» é para os organizadores dos Jogos, para os atletas, para os treinadores, para os patrocinadores, e para os espectadores, etc., apenas «vencer a última competição e o resto são fases intermédias», então esses atletas não infringiram o conceito «vencer» nem o «objetivo desportivo» dessa Competição Desportiva designada “J.O”. Foram portanto mal punidos. Porque se se estivessem a cansar e isso aumentasse a probabilidade de «perderem», então poderia estar a «competir para perder». E também deviam ser punidos por isso.
Ou não?

Talvez

Anónimo disse...

Como de costume o Sr. Luís Leite quando abre a boca...

Luís Leite disse...

Talvez é complicativo.
Não dá para perceber se é dos que integro no meu comentário.
Com o devido respeito.
Vou ler mais 5 vezes.
Depois desisto.

Anónimo disse...

Só apenas mais um aspeto.
Os Jogos Antigos foram terminados pelo Édito de Teodósio I. Repare-se nos motivos que contribuíram para a degradação e decadência dos Jogos Olímpicos na perspetiva desse Édito há mil seiscentos e dezanove anos:
i) A busca desenfreada de “resultados” e o profissionalismo exacerbado, em que a motivação do competidor passou a ser a recompensa monetária.
ii) A introdução de vantagens ilícitas por meios fraudulentos para algumas das partes envolvidas. Por exemplo, a interferência política na competição quando o imperador Nero se impõe, no ano 67 da nossa Era, como competidor nos 211.º (ducentésimos décimos primeiros) Jogos Olímpicos, e se faz proclamar imerecidamente vencedor (C. Ampolo e alli, 1985:102).
iii) “A exaltação da perfeição física em detrimento dos valores da alma”, para citar a justificação que Teodósio I deu, no seu famoso Édito de 393 d.C, para lhes pôr fim. Hoje diríamos, noutra linguagem, quando o Desporto se transforma num conjunto de actividades biomecânicas de alto rendimento despojadas de qualquer utilidade social, incumprindo a sua função pedagógica e cultural, por estarem dominadas pelos detentores do poder económico.

Na perspectiva desse Édito não foi a Competição, como tantas vezes é afirmado e escrito, que ameaçou e degenerou o Desporto. Mas, exactamente o contrário, os factores que a destruíram. Foi a sua destruição que impediu que o Desporto continuasse a ser a metáfora que a sociedade lia, sobre a ética que devia prevalecer nas relações de confronto e de rivalidade. Foi isso que impediu que as identidades mútuas se continuassem a rever nesse “confronto olímpico”. Foi isso que impossibilitou a homoestase social.

Compare-se esse tempo que ocorreu há 1619 anos com o de hoje. E com o que João Almeida pôs no texto.
O desequilíbrio que matou os Jogos Antigos, e descreditou o Desporto enquanto instituição humana, foi um desequilíbrio que ocorreu no lado de fora: na Sociedade e no interior do cérebro de cada individuo (a que vulgarmente se chamam “valores”). Ora, neste domínio dos comportamentos e relações agonísticas não há antídoto nem solução, como o demonstram a etologia e a antropologia. Portanto não há nenhuma «força Natural» nem qualquer «regulação automática» que nos valham.
Só a ação Política pode alterar essa decadência. Só com uma Folha A4 poderá haver possibilidade de Mudança. O resto são cantigas.
Ou não?

Talvez

Anónimo disse...

Parafraseando Teodósio I Talvez disse:
“Hoje diríamos, noutra linguagem, quando o Desporto se transforma num conjunto de actividades biomecânicas de alto rendimento despojadas de qualquer utilidade social, incumprindo a sua função pedagógica e cultural, por estarem dominadas pelos detentores do poder económico."

Talvez devessemos olhar para a questão por outros ângulos.
O homem é, por natureza, um animal de excessos. Mas, mesmo assim, depois do que se passou em Londres e do que se está a passar atualmente dizer que o desporto não está a cumprir a sua função pedagógica e social, parece-me um excesso. E dizer que não está a cumprir a sua função económica quando represente muito possivelmente cerca de 5% da economia mundial parece-me um excesso ainda maior.
Magister Dixit

Luís Leite disse...

Talvez vai dieitinho para o céu.
Nem passa por S.Pedro.
É um anjo.
Ele e o anónimo da "abertura da boca" integram-se perfeitamente no meu comentário.

Anónimo disse...

Não fujamos ao texto de João Almeida.
Para se avançar é necessário não ficar preso apenas à competição agonística, porque isso condena para sempre a possibilidade de se ir além, ficando-se eternamente crispado em insultos, zangas e amuos. E para superar esse [limite], tal como um «Anónimo» aqui dizia há uns dias, é necessário salvaguardar um espaço huizinguiano que permita o “lúdico”.
A ser assim, e sem ofensa, apetecia dizer ao ler os comentários anteriores aquilo que alguém famoso disse há cerca de 400 anos: "Cuius rei demonstrationem mirabilem sane detexi. Hanc marginis exiguitas non caperet.".
Para não fugir à questão do Desporto, e da conceção de alguns de que «desporto é vencer a todo o custo (económico)» (isto é, que ficar em 2.º lugar é o mesmo que ficar em último lugar), então, teríamos que aceitar que todos os problemas (sejam quais forem, e em que domínio forem) que não se situem nesse «vencer o 1.º lugar» são «derrotas», ou contributos «menores» ou «inferiores».
Assim, tudo o que não fosse a resolução do teorema desse senhor famoso de há 400 anos, ou a resolução do problema dos “raciocínios diferenciais” não conseguirem resolver as “realidades analógicas” (i.e, para simplificar, encontrar uma dízima periódica finita para PI) tudo o que não estivesse a esse nível humano seriam afirmações e comentários «menores» ou «desportivamente inferiores».
O Mundo está em «competição»; os recursos básicos da sobrevivência são cada vez mais escassos; [logo], como dizia N. Elias, o Desporto dá logo sinal dessa realidade social que lhe é exterior.
Ou não?

Talvez

Anónimo disse...

Na perspectiva do Sr. Arq. Luís Leite qualquer trolha, só porque trabalhou nas obras, pode ser arquiteto.

Luís Leite disse...

O Sr. Anónimo das 16.51h ignora que até ao final da Idade Média, existindo arquitetura, não existiam arquitetos, mas sim pedreiros.
As grandes catedrais românicas e góticas não foram projetadas nem construídas por arquitetos, porque não existiam esses profissionais nem existiam escolas de Arquitetura.
O próprio Vitrúvio, que estudou e definiu regras para a arquitetura e a redefiniu, durante o Império Romano, tinha consciência de que aos arquitetos, num número extremamente reduzido, competia fazer as grandes sínteses formais, que estão na génese dos estilos, que posteriormente eram copiados e adaptados.
Porque os arquitetos, até ao século XX, eram indivíduos extraordinariamente cultos numa vasta série de Ciências e Artes e, portanto, raridades.
Durante o século XX, com a Bauhaus e o Movimento Moderno, a Arquitetura começa a democratizar-se lentamente, deixando de ser uma prática quase exclusivamente aristocrática.
Os arquitetos sempre constituíram e constituem uma classe de elite, dada a vasta formação histórica, artística, estrutural/construtiva, matemática, sociológica, geográfica, económica, urbanística e paisagista dos respetivos profissionais.
A afirmação deste anónimo, que estabelecendo comparação entre trolhas (pedreiros) e arquitetos pretende desprestigiar profissões complementares tão dignas como quaisquer outras, é insultuosa e inadmissível.
O seu objetivo é obviamente atacar o signatário deste comentário, por ter opiniões sobre Desporto.
Esquecendo que o importante é a validade das opiniões e não a formação universitária de quem as expõe.
E esquecendo que grandes médicos foram grandes escritores.
Que grandes pintores foram pedintes ou alquimistas.
Que grandes treinadores são e foram mestres em muitas outras profissões que não a Educação Física.
Que a política não é exclusiva dos políticos.
E que as licenciaturas ou os títulos académicos são apenas pontos de partida para a vida.
E que o hábito não faz o monge.

Anónimo disse...

O Colectividade Desportiva devia contratar o Leite e o anónimo talvez para obter listagens menos volumosas de comentários

Luís Leite disse...

Pela parte que me toca, não estou contratável.