sábado, 16 de fevereiro de 2008

Os verdadeiros trabalhos de Laurentino Dias


A actual investida do Estado contra a autonomia do associativismo desportivo, em moldes que não tem paralelo no nosso regime democrático, consubstanciada no proposto regime jurídico das federações desportivas e do estatuto de utilidade pública desportiva, apresentado pelo Secretário de Estado da Juventude e do Desporto, é um exercício político-legislativo que, uma vez mais, como sucedeu com tantos governos anteriores, convive com a ausência de intervenção pública naquilo que é verdadeiramente essencial para a vivência do desporto federado: a defesa dos direitos e interesses legítimos dos agentes e organizações desportivos que se inserem nesse sector e que vivem sujeitos ao seu poder regulamentar e disciplinar, ambos qualificados, por lei e há muito tempo, como públicos.

Também há muito tempo, vimos denunciando essa benevolência do Estado, que se recusa a “ler” – a fiscalizar – as normas regulamentares e disciplinares das federações desportivas.
Aí, sim, e com pouco esforço, é que o Estado deveria intervir.

O Público de hoje oferece-nos a história de uma criança de 14 anos, pentacampeã nacional de ginástica rítmica que entendeu renunciar à participação nas selecções nacionais.
A Federação de Ginástica de Portugal – ainda não se conhecem todos os contornos do caso – sancionou essa criança com dez meses de suspensão da actividade desportiva.

Faz algum sentido a aplicação de tão pesada sanção disciplinar, mesmo partindo do pressuposto de que a mesma foi determinada de acordo com as normas federativas – o que neste momento, não é de todo seguro?

Que tem a dizer o Estado, Laurentino Dias, o IDP, quanto a uma disposição regulamentar da mencionada federação desportiva que qualifica como “acção de indisciplina” de um ginasta – que pode conduzir a um “convite para a abandonar a selecção” - «não corresponder ao que lhes é solicitado pelas treinadoras da equipa técnica»?

Brevemente, nesta colectividade, ficaremos a saber como uma federação desportiva ainda obriga ao pagamento de um montante por transferência de uma criança de 10 anos para outro clube, não obstante se afirmar – e a própria federação o fazer – que tais “pagamentos por mudança de clube” forma banidos do desporto federado, quando estão em causa crianças até aos 14 anos de idade.

Era aqui, neste domínio, que eu gostava (e os pais das crianças que praticam desporto federado) – e a lei deste país exige – que o Estado tivesse capacidade (diria antes vontade) de intervenção.

10 comentários:

Anónimo disse...

Falta um thesaurus das coisas em que o Estado deve e não deve intervir, segundo o próprio Estado.

Falta um thesaurus das coisas em que as Federações, e Ligas limítrofes, consideram não ser atribuição do Estado imiscuir-se, e as que consideram necessárias.

Falta, nesta questão, o encontro dos dois thesauri, para encontrar o equilíbrio de um Estado de Direito.

As notas soltas de Meirim não configuram um thesaurus dos direitos e deveres do Pai-Estado e dos Filhos-Federações.

Anónimo disse...

O "associativismo de base", feito por quem realmente faz o Desporto, isto é, por quem se esforça nas pistas, nos estádios,nos pavilhões ou ao ar livre, é o beneficiado com "os trabalhos de Laurentino". Na Lei de Bases e no Regime Jurídico das Federações que agora se irá aprovar quem vai estar representado nas assembleias-gerais, e não estava, são exactamente os atletas, os treinadores, os árbitros e os clubes de base e de proximidade. Porque razão o "associativismo de cúpula" não permitia que quem faz o desporto esteja representado por si próprio na organização e nas decisões sobre o desporto? Há aqui algo que não cheira lá muito bem. Será porque esse "associativismo de base" não tem dinheiro para pagar "pareceres e opiniões" aos juristas? Ou será porque seria mais díficil às multinacionais utilizarem o desporto para fazerem lucros que não distribuem para o desporto de base? Quem lucra, e a quem efectivamente interessa que os atletas, treinadores, árbitros e clubes de base não tenham palavra nas assembleias-gerais das Federações? Quem está do lado da defesa do associativismo desportivo? Já não bastará a vergonha que se está a passar com a utilização mercantil do desporto por parte do Comité Olímpico e da FIFA? Sem pudor em utilizar crianças; e perfeitamente conluiado com os interesses políticos de afirmação das "grandes potências" e os interesses do lucro das "grandes marcas". Quem defende que associativismo? Sr. Meirim seja sério.

Anónimo disse...
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Anónimo disse...

Dado que a redacção anterior está confusa, peço-lhe que a substitua pela que lhe apresento de seguida:

Olá José Manuel Meirim,

Distinguia na sua intervenção a obrigação dos regulamentos federativos deverem ser cumpridos.

O facto da jovem ter 14 anos, creio que é equivalente nos diferentes países Europeus, onde os de 14 anos têm obrigações equivalentes aos outros ginastas. Creio também que a federação internacional vai aumentar a idade mínima e isso resolve a sua preocupação da idade das atletas da ginástica.

Portanto, o caso da atleta castigada parece-me que é um caso de cumprimento de regulamentos desportivos.

A sua sugestão da função reguladora do Estado português sobre os regulamentos desportivos nacionais deveria ser esclarecida: se se refere apenas às questões relacionadas com a idade, ou se tem sugestões específicas sobre a intervenção do Estado nestes regulamentos para todas as federações.

Fernando Tenreiro

José Manuel Meirim disse...

Muito obrigado ao Fernando Tenreiro – uma vez mais a enriquecer este espaço – e aos dois anónimos por participarem na nossa colectividade desportiva.
Tentarei responder às questões que suscitaram.
A ideia de um “thesaurus” traduz o marcar do terreno de jogo entre os participantes dessa especial competição que é o “sistema desportivo nacional”.
Ora, é minha opinião que o desenhar normativo público – que existe em quantidade – delimita o “espaço competitivo”.
O que sucede – concorde-se ou não com as suas concretas soluções – é que quer o Estado, quer as federações desportivas, “competem fora do recinto de jogo”.
A lei – boa ou má – não é aplicada, nem fiscalizada.
Quanto às minhas notas soltas, compreenderá – assim o espero -, que este não é o local nem o espaço, para se constituírem num manual de procedimentos a adoptar nas relações entre os poderes públicos e os poderes privados no desporto.
Caso o entenda, terei todo o prazer em lhe dar conta de um já vasto conjunto de outras “notas soltas” e “menos soltas”, que ao longo dos últimos anos tenho tornado públicas.
Depois, não sendo felizmente detentor da verdade, é só ler.

Ao segundo anónimo – este é um exercício engraçado, o de numerar anónimos -, só lhe posso adiantar que ignora a legislação vigente há catorze anos.
No domínio da representação nas assembleias gerais das federações desportivas, nem a Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto, nem o projecto de novo regime jurídico das federações desportivas e do estatuto de utilidade pública desportiva, vêem introduzir alterações ao sistema da representação por via de associações que denomina de “cúpula”. Pode o projecto trazer novas representações, mas sempre de “cúpula”.
Por outro lado, se tiver o trabalho de ler o mencionado projecto do Governo, constatará que a “urgência de resolver o futebol (?)” foi de tal ordem, que nas modalidades individuais somente se prevê a representação dos atletas de alto rendimento. Ou seja, nestas modalidades desportivas, pode até vir a dar-se o caso, assim o entendam as assembleias gerais actuais aquando da reformulação estatutária, que os treinadores e árbitros, juízes e comissários, venham a perder representação.
A finalizar a sua comunicação, insinua (?) que não sou uma pessoa séria, sem antes deixar de afirmar que não há juristas para apoiar o desporto de base (atletas, clubes, etc.).
A este respeito poderia ir bem longe. Não estou, no entanto, à prova de um anónimo.
Estarei disponível, contudo, como sempre estive no passado, a não só dar-lhe conta do que foi e é a minha vida no desporto (e fora dele), mas a apoiá-lo, assim eu saiba com quem devo falar.

Por fim, as questões do não anónimo Fernando Tenreiro.
É certo que os regulamentos federativos devem ser cumpridos por todos aqueles que aos memos se encontrem sujeitos.
Os regulamentos desportivos, no entanto, não valem nem se legitimam por si. Têm parâmetros de validade a respeitar como qualquer norma que seja hierarquicamente inferior à lei e à Constituição.
Quanto à minha “sugestão de fiscalização” dos regulamentos federativos por parte do Estado, devo começar por dizer que não se trata de uma sugestão, muito menos minha.
É a lei que o exige em muitos e variados domínios.
O que tenho sustentado até à exaustão, Governo após Governo, IDP após IDP, é que esse trabalho de confronto dos regulamentos federativos, em particular os disciplinares, com a lei e a Constituição, seja efectivado.
Não era difícil, mesmo em termos de afectação de recursos humanos e financeiros e teria a enorme vantagem de depurar tais regulamentos (públicos, diga-se de passagem) de inúmeras disposições violadoras da lei e do texto fundamental do país.
No permanente laxismo público, neste domínio, abre-se portas ao arbítrio, colocando em crise os direitos, liberdades e garantias de agentes e organizações desportivos federados.
Mais, retomando ideia que há muitos anos subscrevi.
Essa inércia estatal é mesmo perigosa para as federações desportivas.
À falta de fiscalização, as federações desportivas acumulam, não poucas vezes, irregularidades e ilegalidades, ficando, deste modo, à mercê de um súbito, direccionado e bem efectivo “ataque” dos poderes públicos, motivado vá lá saber-se porque razão.
E, desta forma, lá se vai a igualdade perante a lei.

Anónimo disse...

"ainda não se conhecem todos os contornos do caso" bem sei que o Professor faz menção a isso! e que o interesse de fundo deste comentário não é o que levou ao castigo!
Mas gostaria de deixar o comentário que se calhar o castigo não foi por renunciar à Selecção. É apenas uma correcção, visto que podia ter investigado um pouco mais e não se basear apenas na informação de uma das partes!
Concordo com o Professor que devia haver mais e melhor fiscalização da parte do estado/IDP. Até como prevenção de futuros erros como mencionado por si!

José Manuel Meirim disse...

Agradeço ao anónimo de hoje o seu contributo.
Devo aditar que não me vejo como um jornalista com um dever deontológico de ouvir as partes, sobre a versão que têm dos factos.
Por outro lado, neste caso, bem como em muitos outros, não cheguei a comunicar com nenhuma das partes envolvidas.
Vou fazendo fé, com as devidas cautelas, nas informações públicas que vão sendo conhecidas. E corro riscos, evidentemente.
Por último, devo expressar a minha vontade em saber mais sobre esta situação.
Veremos se será possível, uma vez que não estou mandatado por nenhuma das partes, nem tenho acesso ao processo.

Deixo-he uma questão (bem como para todos os que participam na colectivdade desportiva): concorda com a disposição, prevista no projecto de diploma sobre o regime jurídico das federações desportivas, que estabelece o dever destas organizações desportivas publicitarem, designadamente na Internet, as decisões disciplinares integrais, bem como a respectiva fundamentação [artigo 8º, alínea b)]?

Anónimo disse...

Eu concordo com publicação! E o Professor?
Em minha opinião quanto mais públicas e claras as decisões, mais cuidado existe na elaboração das mesmas!
E como diz na mensagem original, penso que facilitava o controlo superior (IDP/Estado) em relação ao cumprimento da Constituição!
Concorda?

José Manuel Meirim disse...

Caro anónimo,

Claro que concordo.
Contudo, devo informá-lo do seguinte e, por via disso, outros anónimos anteriores.

A norma proposta - salvo o apelo à Internet - já existe na nossa ordem jurídica desde 1993, ou seja, há quase quinze anos [Decreto-Lei nº 144/93, de 26 de Abril, artigo 47º, nº 1, alíneac)].

Ora bem, e volto ao "meu" mesmo de sempre,ou o Estado fiscaliza o cumprimento destas normas - o que não fez durante 15 anos - ou não vale a pena criar ( recriar ou manter)a norma.

O desrespeito total e contínuo por parte dos seus destinatários e a ommissão das funções de fiscalização das normas que edita, por parte do Estado, só gera um ambiente bem pouco saudável no relacionamento entre o Estado e os cidadãos, sejam eles desportistas, consumidores ou assumam outra tonalidade.


Repito-me.
Esta situação de "sonolência" ou "hibernação normativa" é ainda bem perigosa para a spróprias federações desportivas, dado que é extremamente fácil a qualquer governante ou responsável público jogar mão de um verdadeiro 2arsenal de normas" se e quando pretenda ter, como alvo, uma dada federação desportivas.

Ou seja, nada de bom se ganha para os agentes desportivos, sujeitos ao poder federativo, para o cumprimento da legalidade e da constitucionalidade e nem mesmo ganham aqueles que infringem as normas, que ficaam sujeitos a uma eventual investida arbitrária por parte da Administração Pública.

João Almeida disse...

A responsabilidade e a prestação de contas dos organismos dotados de poderes públicos é, antes de mais, feita junto dos cidadãos.

Se a responsabilidade é pública, os actos de gestão devem ser tornados públicos e escrutinados pelos cidadãos.

Isto é tão velho como a Grécia antiga.
As normas, como qualquer outro instrumento de políticas públicas, serão sempre isso mesmo - instrumentais.

A publicitação de medidas disciplinares bem pode estar no CPA, no RJFD, ou em demais normas públicas há 10, 20 ou mais anos.

O débito legislativo em contextos de deficit de cidadania só contribuirá para reproduzir arbitrariedades. Habermas passou uma vida a "malhar" nisto.

Como já aqui escrevi, enquanto a "Etica da República for a ética da Lei" o debate não poderá sair desta quadratura do circulo.

O Estado tem as costas muito largas. Mas o Estado de direito democrático funda-se no valor da sua cidadania. Um Estado fraco é o reflexo de uma sociedade fraca.