quarta-feira, 5 de novembro de 2008

A serendipidade de uma boa digestão

"Anuncios sao as unicas coisas verdadeiras que os jornais publicam."
Thomas Jefferson, em carta de 1819 a Nathaniel Macon
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Neste momento histórico da vida americana evoco esta frase de um dos primeiros políticos a terem a noção do papel da comunicação social, não só na informação prestada aos cidadãos, mas também na vigilância sobre os poderes que governam a sociedade - perdõem-me os puristas da língua materna – o que se designa de watchdog role.

A dimensão de vigilância constitui um mecanismo cada vez mais preponderante na afirmação do 4.º poder. Neste contexto o jornalismo de investigação, que ficou célebre em diversos momentos da política americana, assume particular destaque.

Também no actual momento desportivo deste país ocorrem diversas situações, nomeadamente no desporto profissional - ou seja, no sector desportivo comercialmente mais apelativo à comunicação social – que requerem pela sua gravidade uma maior atenção e vigilância jornalística.

Trata-se de informar os cidadãos com rigor, isenção e imparcialidade sobre casos que configuram atropelos aos mais elementares direitos cívicos, normas reguladoras da actividades desportiva e respeito pela dignidade de atletas profissionais, em modalidades como o basquetebol e o futebol, que vão bem além dos problemas salariais que emergem na espuma dos dias. E estas são situações sobre as quais não é necessário ter um grande envolvimento ou proximidade com os actores envolvidos para se ter um quadro de informação mais completo do que aquele que é publicado.

Quem trabalha com o desporto profissional sabe que a relação entre os jornalistas e os clubes se baseia na intermediação da figura do director desportivo, ou no caso de alguns clubes do director de comunicação. Este elemento facilita informações às redacções da vida do clube e proporciona o contacto dos jornalistas com os atletas. Gere assim a agenda noticiosa.

O jornalismo de investigação no desporto é, deste modo, cada vez mais reactivo e menos proactivo. Os jornalistas, por motivos diversos de gestão das redacções, têm fortes limitações para realizarem um trabalho amplo de cobertura jornalística, o qual lhes permita ter uma visão distanciada e plural dos problemas a abordar, recolhendo informações de fontes diversas e assegurando o contraditório. Este tipo de jornalismo não se coaduna com as pressões para concluírem as suas peças. Está fora da voragem noticiosa que dá forma aos nossos dias.
É evidente que a superficialidade como são expostas as noticias condicionam a formação da opinião pública desportiva. E aqui apenas me refiro ao desporto profissional, que, como sabemos, é o mais acolhido – e venal - nos nossos media.

Por outro lado, os agentes desportivos instrumentalizam os media como arma de arremesso para marcarem a sua posição. No desporto, como em qualquer outro domínio social, amiúde se assiste às ameaças de “chamar a televisão” para expor casos menos dignos, ou a convocar uma conferência de imprensa para anunciar mais um “escândalo”, ou ainda a convidar a comunicação social a assistir a um importante “happening” desportivo.

Recolhe-se um punhado de declarações de circunstância, monta-se a peça jornalística e está feito. Passados alguns dias tudo se desvanece e os eventuais casos perdem “interesse jornalístico”. Como diria António Guterres: “É da vida!”. Não há tempo para mais.

Não é por haver cada vez mais informação desportiva, que há uma melhor informação desportiva, e muito menos uma opinião pública desportiva mais informada e vigilante sobre a forma como se (des)governa o desporto profissional neste país.

Não é apenas uma questão de estilo, como recentemente invocou o sindicato dos jornalistas, ou uma perda das grandes referências que criaram muitos dos nossos heróis desportivos como notou António Lobo Antunes numa recente entrevista ao jornal “A Bola”. É um problema de saber o que informar, como informar e a quem informar.

Com a aceleração do tempo e a deslocalização do espaço que dão hoje forma à vida em sociedade, a informação desportiva também se ajustou a estes desígnios e assim chega ao leitor, ao espectador e ao ouvinte um produto noticioso pronto-a-comer. De preferência bem condimentado de emoção e polemica.

Cabe a este assimilar acriticamente o conteúdo que lhe é oferecido ou gastar algum tempo a confrontar, comparar, digerir e reflectir. E, com a devida atenção, verá que, por vezes, e talvez não por mero acaso, se descobrem factos e contradições bem interessantes que merecem ser questionados.

Porque o jornalismo desportivo se pronuncia sobre fenómenos sociais, o jornalista será sempre observador e sujeito no seu próprio trabalho, uma vez que não consegue ter uma perspectiva de completa exterioridade em relação aos factos que reporta, como T. Jefferson salientou. O problema ocorre quando nem se procuram os caminhos e os métodos para o necessário distanciamento e neutralidade, e se toma por adquirido e verdadeiro muito do que se diz sem cuidar de atestar a sua validade.

4 comentários:

João Almeida disse...

Devido a problemas técnicos na validação dos comentários peço desculpa aos dois anónimos cujos comentários foram apagados indevidamente

João Almeida

Anónimo disse...

Achei muito interessante este post. Faz uma boa radiogradia da impresa das bancas e mesas de café. Não sou leitor assiduo de jornais desportivos. Até quando leio começo nas últimas páginas e termino na primeira página das modalidades amadoras. Portanto 5/6 páginas.
Dei-me no outro dia a contar as páginas que dois jornais deram a um jogo da taça de portugal (União de leiria-Sporting) 10 páginas num e noutro 10!
Também não faz muitos dias que vi (não li) que determinado jogador de um grande clube fez uma jogada fantástica e fez um grande golo no treino matinal. Uma página para este fantástco golo.
Se olharmos para a impresa desportiva durante os meses de junho e julho nota-se a quantidade do contraditório nas capas de um dia para o outro com as aquisições de jogadores. NEste caso João existe contraditório!
Faz todo o sentido o que escreveu mas os culpados somos nós que não temos cultura deportiva para falarmos de outras coisas que não o futebol ou de dar importância a outros temas (gestão dos clubes, metodologia de treino, efeitos positivos da actividade física.
O importante é o resultado e fazer capas para vender.

Anónimo disse...

Já há muito que não o visitava, caro João Almeida, e volto porque é sempre um prazer lê-lo e dizer da minha justiça.

No jornalismo, como em qualquer outra actividade humana (sociologia, economia...) os intérpretes dos diversos campos estão inscritos não só no amo profissional como também no todo societário.

A nenhum é possível o asseptismo profissional, na medida em que teria de despojar-se da sua integração, ausentar-se emocionalmente, psicologicamente, ou ideologicamente, e visionar panopticamente todos os factores envolventes, para que o produto seja apresentado puro, isento, imparcial.

Não podemos exigir do jornalista o que não conseguimos exigir de um sociólogo, de um economista ou de um psicólogo.

Cada um dos campos procura permanentemente a sua identidade, a sua característica, o seu auto-conhecimento, os seus instrumentos mais adequados, a forma mais correcta de actuar, coligindo os seus próprios erros para os aperfeiçoar.

O que é perfeitamente inteligível se nos lembrarmos que a tecnologia, a ciência, a sociedade, estão em permanente evolução, com mudanças bruscas, novas formas abruptas de estar consigo e com os outros.

O comportamento do jornalista está, como os de outras profissões, sujeito a essas mudanças-agressões, e reagem perante elas.

Como dizia alguém, os jornalistas fazem, muitas vezes, sociologia, sem o saberem. Porque fazem auto-indagação. Como esclarece Raymond Aron "à medida que exploram o objecto, os sociólogos interrogam-se sobre o que fazem".

Os jornalistas, economistas, psicólogos, médicos, advogados... também.

Para terminar, não sou jornalista.
Como estou de boa fé, espero que acredite.

João Almeida disse...

Caro anónimo

Obrigado pelas suas palavras.
Elas vão de encontro ao que eu escrevi no post.
O que a mim me faz alguma urticária é a forma superficial como muito do nosso jornalismo trata alguns temas. Nomedamente aqueles que exigem um aprofundamento junto das fontes e um trabalho de campo exaustivo e investigação.

Podemos alinhar diversos factores para que isso não aconteça.

Muitas vezes os jornalistas parecem tomar como adquirida muita informação que lhes é transmitida, e o tratamento e análise critica que fazem é ténue ou inexistente. não procuram mais fontes e contentam-se com os interlocutores habituais.

Como escrevi, sabemos que um jornalista é um actor social, pelo que ao analisar a realidade está a reconfigurá-la e a reinterpretá-la. Não pode ser exterior face a ela, ao contrário de um fisico, ou de um quimico em relação a um fenómeno natural.

Mas o jornalista não é um porta-voz e no seu exercicio o deve procurar distanciar-se para saber questionar a informação que dispõe, aplicando mecanismos que lhe confiram alguma neutralidade axiológica no sentido clássico de Max Weber.
Sendo certo que isso é um ideal inalcansavel na sua plenitude, mas indispensável a quem pretende reportar dinâmicas sociais.

Quando isso não acontece a informação é cada vez mais parcial e comprometida, uma vez que reflecte apenas o que já é evidente. Dos jornalistas que conheço - e são alguns - são poucos aqueles que fazem a auto-indagação que refere.

E aí cabe ao leitor interpretar e tentar perceber as contradições que surgem nos reportes noticiosos.

E por acaso, tal como na ciência social, muito se descobre assim. Por serendipidade.

Os ultimos dias desportivos têm sido pródigos nisso. espero que também acredite, pois tal como você, estou de boa fé e infelizmente não posso ser mais preciso.

Mas admito que isto seja apenas conversa de um sociólogo que não percebe nada de jornalismo.