A linguagem torna-nos públicos e baldios – desta forma o disse Miguel Torga, tal como o poderia dizer qualquer um de nós, se tivesse o olhar acurado do grande e luminoso pensador transmontano. Com efeito aquilo que dizemos ou escrevemos põe ao léu, desnuda e torna patente o que somos, temos e nos habita por dentro: os princípios e valores, os ideais e utopias, as noções, conceitos e preconceitos, as normas, direitos e deveres, as inclinações e tendências, as convicções e orientações, os conhecimentos, gostos e preferências etc. Ou seja, através da linguagem expomos à consideração, avaliação e apreço dos outros a nossa interioridade e identidade. E não seria exagero acrescentar que ela é reveladora e constituinte da nossa alma, tanto mais que, na ausência de melhor ou perfeita definição desta, podemos deitar mão à formulação de José Saramago, expressa mais ou menos assim: Eu não sei o que é o espírito ou alma, mas deve ser aquilo que está cá dentro, ocupa e preenche os espaços da nossa arquitectura interior, aquilo que nos examina, intima e agita, desencadeia, controla, atiça ou inibe os nossos comportamentos e actos.
Enfim, a linguagem, seja escrita ou oral, constitui a forma dos nossos pensamentos e sentimentos, das nossas ideias e perspectivas, das nossas causas e motivações. Há uma relação de causa e efeito entre os dois lados. A elevação ou a baixeza da linguagem condiz, pois, com o estado e o nível da nossa dimensão anímica e volitiva, espiritual e cognitiva, idealista e pensante. Julgo que isto é tão compreensível e manifesto que não carece de prolongarmos o arrazoado.
Mas – perguntará o leitor – qual o propósito que suscita estas deambulações? É pura e simplesmente a questão, já tratada neste espaço, da arrebatadora cruzada convocada em prol da putativa ‘verdade desportiva’. Há dias surgiu no jornal Record um texto assinado pelo arauto mais ínclito e proeminente do dito movimento. Trata-se de um naco de prosa aveludada, fina e macia, cuja leitura se recomenda vivamente, pela inflamação e esplendor do verbo, pela densidade e fulgor da erudição exibida, pelo estilo bem cerzido, apurado e, sobretudo, aprumado, cívico, culto e educado da escrita. É um deleite para os olhos e um regalo para os mais exigentes apreciadores do sabor ético e estético da linguagem. O casto, devoto e intocável autor, qual intrépido e indomável guerreiro, não se cansa de brandir um reluzente espadachim com o gume afiado pelo esmeril dos insultos, ameaças, imprecações e epítetos rasteiros com que mimoseia os críticos da ópera bufa levada à cena na Assembleia da República.
Ao ler um texto tão encantador, cativante e edificante, vieram-me instantaneamente à lembrança as palavras ‘proselitismo’ e ‘prosélito’. Ocorreu-me logo que estes termos não se coadunam ou casam com a ‘verdade’. Todavia, para evitar juízos apressados e infundados, para desfazer dúvidas e ficar melhor esclarecido, a cautela e a prudência aconselharam-me a consulta de um dicionário da língua portuguesa. E lá encontrei o que suspeitava: ‘prosélito’ é aquele que abraça uma nova religião, seita, doutrina ou partido, com tudo o que isso comporta de paixão, cegueira e desmedida, de visão messiânica e missão salvífica, de fanatismo, obscurantismo, sectarismo e piromania, de demência, irracionalidade e insanidade, de obsessão, insensatez e alienação, de ódio e raiva, de excesso, fervor e zelo persecutórios. Carregados de certezas e dogmas infalíveis os ‘prosélitos’ fixam as linhas de fronteira entre o bem e o mal, sendo eles obviamente uma elite de arcanjos e cavaleiros incumbidos de zelar pela prevalência e observância do primeiro e de denunciar, perseguir e exterminar as desprezíveis, encardidas e malditas criaturas possuídas pelo segundo.
Ora aí está a grande e decisiva diferença! A ‘verdade’ está casada em comunhão de bens com a compreensão, a serenidade, a tranquilidade, a tolerância, a temperança e as demais virtudes humanas. O ‘proselitismo’ tem outra matriz, é de outro jaez e tem vocação incendiária: para as dissensões e desvios dos mandamentos, dos padrões, preceitos, fins e interesses por ele estabelecidos advoga soluções de limpeza final, como as que arrasaram Sodoma e Gomorra. Os ‘prosélitos’ são filhos de Deus, depositários da fé, mensageiros da boa-nova, obra e expressão da pureza e inspiração divinas; os outros são heréticos ou ímpios, estão mancomunados com o diabo, a falsidade e a sujidade, devendo por isso ser sujeitos ao fogo purificador.
Deus nos livre e guarde de novos inquisidores-mores! Torquemada há só um, não precisamos de mais nenhum.
domingo, 17 de janeiro de 2010
Verdade ou proselitismo?
publicado por jorge bento às 14:30 Labels: 'Verdade desportiva', fanatismo, linguagem, proselitismo
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2 comentários:
Também eu tive a infelicidade de ler a dita crónica e, ontem, de passar pelo programa que lhe dá tempo de antena.
A crónica é uma fuga prá frente, nada mais.
Pior... ontem, à imagem do mentiroso título de "verdade desportiva" foi lançada a questão se "é necessário investigar o futebol".
Se não se asssinasse a petição, seria contra a verdade desportiva e se não ligasse seria contra a investigação.
Ridículo. É serôdio demais para ser verdade. É um caso em que a realidade ultrapassa a ficção.
Gosto desse nick...dos 'Suspeitos do Costume' :)
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