domingo, 19 de setembro de 2010

A tribo dos milagres


Era expectável e natural que o peregrino se voltasse para Fátima, por estar à mão de semear e por usufruir da justa fama de altar do mundo e porto seguro dos agoniados e sedentos do amparo e sustento dos céus. É certo que ali os milagres não são dados gratuitamente. De resto basta andar alguns metros de joelhos na aspereza da esplanada para que a pele se rasgue e o sangue escorra abundante, a ponto de tingir de vermelho as calças e o chão. Mas, à falta de meios mais modernos, a sangradura foi sempre um bom remédio para curar males de origem difusa, instalados nos recônditos da consciência e da alma.
Todavia o romeiro seguiu noutra direcção. Por mais paradoxal que seja, São Jorge, padroeiro da bola de Portugal, segredou-lhe mentalmente que não ligasse à tradição, esquecesse o ditado (De Espanha nem bom vento, nem bom casamento!) e ignorasse a sensata imploração das boas e experimentadas gentes de Idanha-a-Nova à Senhora do Almortão: Senhora do Almortão / ó minha linda raiana / virai costas a Castela / não queirais ser castelhana.
Os seus ouvidos, duros à harmonia e melodia dos sons, fecharam-se à sabedoria e excelsitude da canção e ei-lo, que se faz tarde, a caminho de Madrid - a salvífica centralidade - como um Egas Moniz de corda ao pescoço, à procura de comover São José e conseguir levá-lo a servir de intermediário na difícil obtenção dos favores e graças divinas.

Sabe-se quão influente, mágico e milagreiro é São José; por isso mesmo a peregrinação prometia ser coroada de pleno êxito. Ademais o viajante não metia pés ao caminho para salvar a pele; ia a “bem do po(l)vo”. Partia confiante de que a fé arrasa montanhas e movido pela ânsia de se encontrar com o novo e cativante Moisés da nossa áurea, iluminada, edificante e transcendente contemporaneidade. Este, por certo, não se furtaria a subtrair do naufrágio eminente as diversas tribos da nação boleira e a conduzi-las à terra prometida. O raciocínio era lógico, rigoroso e sábio e o plano perfeito, elaborado a condizer.
Mas a arte está nos detalhes; se um pormenor for descurado, lá vai tudo por água abaixo. E assim foi também desta vez.
Madrid tornara-se, no entretanto, numa labiríntica Meca, infestada de agentes de notação e ‘rating’, peritos em especular e ‘blefar’ por conta da Wall Street do futebol. E o taumaturgo há muito que oscila entre o profeta, o ‘mentalista’ e o duende. Obviamente o seu carisma mantém-se em alta. Nele, como em todo o líder e ditador carismático, a realidade cede o lugar à retórica balofa e esta transforma-se na varinha mágica de realização da tão ansiada revolução. É dele que emana o sentido de tudo; aos demais somente resta renunciar à razão. Reflectir sobre o real e as suas contingências e contradições não é tarefa para os cidadãos comuns; é competência exclusiva de um guia, travestido de aiatola ou profeta. Apenas ele pode salvar-nos da dúvida, incerteza e insegurança. Nada nele é esquinudo, confuso, dúbio ou incerto; pelo contrário, tudo brota dele confortavelmente claro, lógico, óbvio, redondo e cristalino. O céu e o inferno estão ao alcance de um estalo dos seus dedos.
Se a boca do oráculo determina que algo é verdade, então as suas palavras são como os toques de Midas a operar uma admirável e inacreditável metamorfose: materializam a verdade, mesmo que esta o não seja e se incline mais para a camuflagem e mistificação, a representação e teatralização da inverdade e até da mentira. O profeta, para conservar e fazer jus ao seu estatuto, não apresenta a ‘sua’ verdade; ele é detentor absoluto e único da verdade e esta prescinde de qualquer fundamentação. É um crisóstomo em permanente trabalho de parto de dogmas sagrados.
Este dom aumenta a crença e adulação da multidão dos carentes e desvalidos fieis: as ‘verdades’ proclamadas pelo líder devem ser aceites, comungadas, bebidas, difundidas e defendidas a todo custo. Não se pode admitir, permitir ou sequer imaginar que elas sejam confrontadas, abaladas e negadas. Consentir semelhante sacrilégio significaria abrir as portas à desmontagem de todo o sistema de pensamento sobre o qual assentam as mentiras, usadas justamente para destruir a lucidez, a pluralidade e a racionalidade das diferentes visões.
E agora? A jogada era de mestre e com uma parada muito alta. Se fosse bem sucedida, o êxito seria estrondoso e arrasador dos provocadores da catástrofe e dos arautos da desgraça. Porém o bom, esforçado e sacrificado samaritano regressou de Madrid com as mãos a abanar.
Afinal no presente não há mais quem faça milagres como antigamente. Importa, contudo, não adulterar o legado da história: no passado nunca se fizeram milagres e impossíveis a partir do nada. Jesus precisou de água para a converter em vinho; e só na presença de um exigente peixe transformou o vinho tinto em branco.

Nenhum dos protagonistas da tragicomédia sai bem do papel que, de um ou outro modo, assumiu na peça. Todos saem enfarruscados das cenas em que participaram. Não passaram de arremedos ou duplos muito mal conseguidos dos originais.
São Jorge, ledo e quedo, cuidou de não dar muito nas vistas; não se afoitou a atravessar publicamente a penumbra do subterrâneo em que ganhou entronização e notoriedade. São José, se continuar neste andar e desempenho, se não encontrar a justa medida dos seus passos e não impuser limites e freios ao egotismo e egolatria, arrisca-se a descambar paulatinamente para um ídolo com pés de barro e a ver esmorecer o culto tribal erguido em torno do seu nome e figura.
Quanto ao romeiro, parece um quixote solitário, perdido e abandonado. Traído pela cegueira do desespero, o último dos abencerragens caiu no próprio laço, colhendo o fruto amargo e o ensinamento requentado de que o mediatismo manhoso e calculado dos gestos e palavras não traz de volta o desejado, por mais enevoadas que estejam as manhãs. Lá ao longe, do outro lado do mar, São Luís Felipe apressa-se a acenar-lhe efusivamente. Mas não passa de uma miragem.

1 comentário:

Anónimo disse...

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