domingo, 17 de junho de 2012

O meu pai, Portugal e o EURO 2012


Texto publicado no Público de 17 de Junho de 2012.


 
1. O meu pai tem 86 anos, anda com dificuldade, três vezes por semana vai à hemodiálise e casou pela segunda vez, agora com a Sport TV. Ao pequeno-almoço alimenta-se de treinos da Fórmula 1 ou de snooker — no Eurosport. Almoça ténis, masculino ou feminino, lancha golfe, basquetebol ou futsal e ao jantar vem todo o futebol do mundo. À ceia não perdoa a NBA. Toda esta ementa é renovada com bons espectáculos de basquetebol, voleibol, provas de atletismo e tudo o que o desporto pode fornecer como alimento diário.
2. Miguel Relvas, quando enviou uma mensagem à selecção nacional de futebol, antes do jogo com a Alemanha, entre outras fórmulas de autoelogio nacional, escreveu que mais do que uma simples modalidade desportiva, o futebol é uma escola de socialização [?], de partilha e de esforços, de companheirismo e entreajuda, de superação de obstáculos, de dedicação a um objectivo. Sabendo todos, de antemão, que os troféus só se conseguem quando existe mobilização colectiva e genuína vontade de vencer.

3. Alexandre, Mestre Picanço, não poderia ficar atrás das palavras e do sentir do seu mentor. Por vezes, procura mesmo ultrapassá-lo, como prova da sua dedicação e veneração ilimitadas. Disse, junto ao mar: “Através dos mares fomos conquistadores, espero que através de Paulo Bento sejamos também conquistadores.” E na Madeira: “Estou ansioso que o Europeu comece e que mostremos que somos muito bons. Se temos o melhor treinador do mundo, o melhor jogador do mundo e o melhor empresário do mundo, as expectativas são condizentes com essa realidade”.

E para rematar: “Estamos em condições e tenho a certeza de que os atletas vão atingir o nível brioso que qualquer português em qualquer área de atividade está sempre em condições de desempenhar.” O responsável [?] governamental exemplificou o “espírito de equipa e caráter” que disse ter testemunhado junto da seleção na visita à Fundação Champalimaud, “espaço em que se combate o cancro, em que se investiga, em que se superam dificuldades, em que se convive em grupo para uma superação e uma conquista”.

4. E, depois, veio o Guilherme da botija da Galp escrever uma carta a Portugal. Em breve, o seu futuro, bem como o deste infeliz país, sustenta-se nos pés de alguns profissionais de futebol, num arco-íris de chuteiras. Já não se afirma, como no passado, que o futuro está nas nossas mãos. O seu futuro, caro leitor, está nos pés deles. É uma espécie de vida aos pontapés. Tenha fé ou, quiçá, mesmo certeza. (A não perder o texto de Tiago Mesquita — O anúncio mais idiota de sempre — no seu blogue 100 reféns, no Expresso).
5. Devo confessar que perante este manancial de multivalências da selecção nacional de futebol, admiti que o meu pai, caso Portugal “passe” aos quartos-de-final, recomece a andar sem bengala e os seus médicos assistentes achem a hemodiálise sem sentido, face ao miraculoso rejuvenescimento dos seus rins. Veio-me mesmo à cabeça a eventualidade de as empresas que prestam esse serviço terem de encerrar.
Sucede, contudo, que o meu pai é um convicto admirador de Messi e um antinacionalista primário. Na próxima terça-feira, é certo e sabido que lá vai para as suas quatro horas de tratamento

3 comentários:

Luís Leite disse...

Só uma nota, resultado de observação continuada:

Há muitos miúdos que confundem os conceitos de "Portugal" e "Seleção Nacional" (de Futebol, claro); e que julgam que o hino nacional só serve para ouvir e cantar antes dos jogos da dita.
Tudo isto porque de há uns anos para cá já não se ensina nada de História de Portugal e de Geografia de Portugal no 1º ciclo.
E porque os órgãos de comunicação social tratam o Futebol como se fosse a "coisa" mais importante da vida.

joão boaventura disse...

Caro Luís Leite

Precisamente por isso se ensina a cantar o hino, porque na letra está contida, em resumo, toda a História de Portugal.

Poupa-se tempo e trabalho, segundo o implantado sistema de Novas Oportunidades, mais conhecido por simplex.

Cordialmente

Anónimo disse...

Há pais e Pais.

Cá por mim, prefiro Pai, com maiúscula.

É uma opção, permitida pelo novo Acordo Ortográfico em relação à palavras usadas reverencialmente, aulicamente ou hierárquicamente.

E é uma opção que se impõe, quando nos referimos ao Pai ou à Mãe.

Pelo menos, aos meus...