quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

As salsichas e as leis


Aproveitando uma das frases de pedra seleccionada um dia destes, pelo Público («Os cidadãos não conseguiriam dormir tranquilos se soubessem como são feitas as salsichas e as leis», de Bismark), glosemos, uma vez mais, o tema – que é também nosso por deformação – da legislação desportiva, voltando aos projectos de diploma colocados à discussão pública pelo Governo, em Dezembro passado.
A atenção e discussão têm recaído, em grande medida, sobre o diploma respeitante ao novo regime jurídico das federações desportivas e do estatuto de utilidade pública desportiva, deixando mais na sombra os outros três projectos. Contudo, nesta colectividade desportiva, o texto relativo à construção, instalação e funcionamento dos ginásios já foi comentado por mais de uma vez.

Mirando a globalidade dos quatro textos, reafirma-se o que já tivemos oportunidade de adiantar noutro local: os projectos surgem tarde (há muito que se encontra esgotado o prazo injuntivo da Assembleia da República para a concretização da regulação da Lei de Bases) e apressadamente – passe o aparente paradoxo.
Na verdade, denota-se que não foi conferida a necessária atenção ao que se adiantou como iniciativa legislativa. E tempo não terá faltado.

Vejamos três exemplos do que afirmamos.

No texto relativo à “Luta contra a dopagem no desporto“, a proposta refere-se sempre a «alta competição». Fá-lo por cinco vezes.
Ora, não se entende como tendo sido esta denominação substituída pela de «alto rendimento» na Lei nº 5/2007, de 16 de Janeiro, quase um ano após se apresente um projecto de diploma que não recolhe a terminologia já em vigor.
Dirão alguns que se trata de meras gralhas, nada de realmente importante.
Enganados estão, contudo. A utilização indevida de um conceito já inexistente num projecto de diploma que pretende regular a Lei que o fez nascer, não só corre o risco de lá permanecer como, acima de tudo, revela uma falta de cuidado do Governo ao apresentar as suas próprias iniciativas legislativas. É, sem dúvida, um sintoma da pressa.

Um segundo exemplo é, se assim no podemos exprimir, mais grave do que o anterior. Localiza-se no mesmo projecto e toca num aspecto essencial do sistema de sanções disciplinares no âmbito da dopagem.
Temos, assim nos parece, duas normas contraditórias.

No artigo 34º, nº 7, estabelece-se:
Quando requerida a análise da Amostra B as consequências desportivas e disciplinares só serão desencadeadas se o seu resultado for positivo, confirmando o teor da análise da Amostra A, devendo todos os intervenientes no processo manter a mais estrita confidencialidade até que tal confirmação seja obtida.

No entanto, mais adiante, vem-nos dizer o artigo 36º, nº 1:

O praticante desportivo em relação ao qual o resultado do controlo for positivo, logo com a primeira análise ou depois da análise da Amostra B, quando requerida, será suspenso preventivamente até decisão final do processo pela respectiva Federação, […]

No domínio em causa, o da aplicação de sanções disciplinares, os erros legislativos pagam-se caro, desde logo pelas exigências do Estado de Direito. É bom, pois, que se saiba exprimir adequadamente o que se pretende.

Grave, muito grave mesmo, olhando os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, é a previsão do artigo 18º (controlo antidopagem), do projecto sobre construção, instalação e funcionamento dos ginásios.
Com efeito, e sem sequer nos debruçarmos sobre o disposto no nº1 – em boa verdade já presente na legislação vigente –, dispõem os nºs 2 e 3 deste impressionante preceito:

2. As brigadas de controlo antidopagem podem, ainda que sem pré-aviso, inspeccionar as instalações dos ginásios com vista a detectar a eventual existência de substâncias dopantes, devendo ser-lhes facultado o respectivo acesso sem qualquer restrição, incluindo aos cacifos dos utentes.
3. As inspecções serão acompanhadas, querendo, por um responsável do ginásio e delas será lavrado o competente auto.

O sublinhado que operámos, fala por si. Aquela que será a entidade responsável por esses controlos não é uma autoridade judiciária, nem mesmo, sequer, uma autoridade de polícia judiciária. É, tão só, um serviço administrativo.

4 comentários:

Anónimo disse...

Sou uma leitora atenta (e antiga)dos textos do José Manuel Meirim.

Mas outro dia li uma coisa estranha: que, na lei francesa, as federações desportivas seriam, quase que por natureza (palavras de Meirim), federações de "associações".

A afirmação surpreendeu-me. Fui ver a lei francesa e encontrei lá a afirmação de que os ´membros de uma federação seriam "associations".

Mas "associations" traduz-se por "associações", na acepção que delas nos dá o nosso Código Civil, ou seja, pessoas colectivas de fim não lucrativo (por oposição a sociedades).

Por isso, a afirmação de José Manuel Meirim parece induzir o leitor em erro, fazendo-o pensar que, em França, as federações são - e só poderiam ser - compostas ppr organizações semelhantes às nossas associações regionais.

Mas isto não é verdade, pois não, José Manuel Meirim?

José Manuel Meirim disse...

Tem toda a razão a atenta (e por via disso), também generosa anónima.

A passagem do texto que refere induz o seu leitor em erro.

Sendo certo que a organização federativa francesa assenta em associações de clubes (Ligues régionales e districts), não é menos verdadeiro que o texto a que se refere, peca na informação prestada.

Para mim, é um erro de alguma gravidade, que assumo por inteiro.

Agradeço vivamente a sua pertinente observação e, se me permite,também a sua antiga atenção pelos meus textos.

Gostaria de contar sempre com anonimatos deste tipo.

José Mnauel Meirim

Anónimo disse...

é importante acompanhar e discutir o que se passa no cnd

apesar de tudo existe um debate onde se luta por não perder a face e por princípios que se consideram correctos

5 ou 6 horas de trabalho é muito tempo

mesmo que fosse por ouvir dizer a divulgação do que se passa e a opinião diferenciadora da comunicação social seria interessante

é improvável que os autores do blogue ignorem o que se passa no cnd

não têm de opiniar
o ouvir dizer também seria útil

José Manuel Meirim disse...

Caro anónimo,

Permita-me que lhe diga que labora, a meu ver, em alguns erros factuais.

Em primeiro lugar, sempre exclusivamente no que a mim diz respeito, pode crer que, ao contrário do afirma, é "bem provável que ignore o que se passa no CND".

Em segundo lugar, não navego, nos meus textos, numa visão jornalística. Isto é, não tenho fontes de informação. Dentro ou fora do CND.

Por último, se tivesse essa "perspectiva jornalística", também nunca funcionaria com base na regra " por ouvir dizer".

Tem razão em afirmar que se deve conhecer o máximo possível sobre os trabalhos do CND e, eventualmente, adiantar a nossa opinião.

A tarefa de publicitação cabe ao próprio CND, o qual, aliás, deve ter o seu espaço recatado de discussão.

Aqui estarei, contudo, na medida das minhas disponibilidade e competência, a dar conta do que é público e mereça - a meu ver- ser comentado.

Tal sucederá, ainda hoje, a propósito da violência no desporto.

José Manuel Meirim