quinta-feira, 25 de março de 2010

"Experiência não é o que acontece com um homem; é o que um homem faz com o que lhe acontece"

As primeiras duas leis promulgadas por Luiz Inácio Lula da Silva quando chegou ao poder referiam-se ao desporto. Com este gesto simbólico a "Lei da Moralização do Futebol” e o “Estatuto do Torcedor” serviram ao presidente brasileiro para clarificar a visão do seu governo sobre o impacto do desporto na sociedade. O desporto é um elemento - ainda que limitado - de mudança e transformação social, cujo potencial reside nas oportunidades que confere à melhoria das condições de vida e redução das desigualdades entre grupos sociais, em aspectos concretos como a esperança de vida, a pobreza ou as tensões entre comunidades locais através da capacitação dos cidadãos. A rotura com o discurso politicamente correcto sobre os valores promovidos pelo desporto assumia lugar a uma visão lúcida e pragmática sobre o seu contributo para o desenvolvimento do país.

Foi com esta visão que a candidatura do Rio se apresentou nos mais diversos documentos oficiais ciente que o desporto, e em particular os seus grandes eventos, não se pode medir apenas pelo valor de mercado, existindo todo um conjunto de benefícios intangíveis a explorar. Mas também sem ignorar desvantagens usualmente atenuadas como as derrapagens orçamentais, mau uso do solo, planeamento inadequado e instalações subaproveitadas, conforme, aliás, o FMI alerta no seu recente boletim num artigo que desmistifica várias das quimeras lançadas por muitos dos que pretendem promover estas realizações. Existem relativamente poucas evidencias objectivas sobre o impacto económico de grandes eventos desportivos quando analisados em investigações académicas, revistas por pares, à margem dos interesses das candidaturas. “Os ganhos económicos são modestos, ou talvez inexistentes”.

Os valores, princípios e direitos universais que as autoridades desportivas professam ao serviço do desenvolvimento humano nos seus códigos de ética, a começar na Carta Olímpica, aos quais se ancora o poder político e as organizações intergovernamentais, traduzem-se num percurso que os contradiz em diversos momentos ao longo da história. O legado de um grande evento tanto pode ser um catalisador como um depressor do desenvolvimento local.

O recente relatório da brasileira Raquel Rolnik para o Conselho de Direitos Humanos da ONU - que não se furta a apontar falhas à organização do seu país -, ilustra a deterioração das condições de vida e o aumento da discriminação em relação a franjas sociais desfavorecidas na realização de Jogos Olímpicos e Campeonatos do Mundo de Futebol. A redistribuição das eventuais mais-valias e benefícios é fracturante e contribui em inúmeras ocasiões para agravar as desigualdades existentes.

O desporto, o recreio e a actividade física que sempre se assumiram como elementos fundamentais no direito à cidade e à valorização do espaço público em várias escolas de planeamento urbano, no entanto, é também o precursor, através destas competições, de processos de gentrificação e deslocalização, com as profundas consequências de desfragmentação social da malha urbana que isso acarreta, comprometendo desde logo um direito essencial como é o direito à habitação. Acresce que o discurso em torno do potencial económico do desenvolvimento de infra-estruturas, de redes de transportes e comunicações e de outros investimentos – públicos claro está –, pressurosamente rotulados de enormes benefícios, ajuda a esbater estes fenómenos, bem actuais.

Esta é uma realidade, e objecto de estudo, que preocupa o COI no âmbito da vertente social do desenvolvimento sustentável, tal como os aspectos ambientais abordados no post anterior. As oportunidades oferecidas ao acolher os Jogos Olímpicos devem ser optimizadas não apenas para responder aos requisitos necessários a receber o evento, mas também às necessidades e expectativas das futuras gerações. Esse é um elemento vital nos procedimentos e questionário lançado em 2008 paras as candidaturas às olimpíadas de 2016 e seguintes. Qual o contributo e de que forma se insere o desporto no planeamento estratégico da cidade e da região a longo prazo?

Responder a semelhante desafio passa por assumir o diagnóstico, o planeamento e a avaliação do impacto de grandes eventos desportivos para além de meros requisitos e procedimentos funcionais de monitorização, controlo e ajuste que normalmente se esgotam após as competições. São processos incrementais - disseminados pela comunidade e negociados com os seus representantes - envolvendo múltiplas dimensões e equacionando o contributo do desporto em outras políticas públicas, focalizados na criação de valor para a cidade/região/país em torno de uma visão clara sobre o seu futuro e resumida em breves palavras e padrões objectivos.

Não são as barreiras que nos separam de interiorizar esta lógica nos mais diversos sectores da sociedade portuguesa, a começar pelo desporto, nem tão pouco a ausência de um vínculo claro nesse sentido pelas elites que preocupam. Algo que se manifesta na aversão de responsáveis políticos e desportivos em situações tão pacíficas em contextos desportivos mais evoluídos, como seja a definição de objectivos desportivos para os Jogos , bem como a avaliação do impacto do desporto e o seu valor (não o seu custo) para a sociedade.

Inúmeros países há que mantendo estas mesmas debilidades, e com recursos equiparados aos nossos, conseguiram incrementar a sua situação desportiva em diversos indicadores, quer ao nível da procura desportiva de base, como em níveis de competição, rendimento e excelência. O inverso – países com mais recursos sociais e económicos, mas com indicadores desportivos mais débeis – é um exercício semelhante a encontrar uma agulha no palheiro e coloca-nos em níveis de iliteracia desportiva no panorama europeu.

Aquilo que hoje se apelida de planeamento estratégico mais não foi nos seus primórdios do que sistematizar processos em algo tão simples como recolher e reflectir sobre os ensinamentos da experiência a partir da tentativa/erro. Ainda que longe dos instrumentos, potencialidades e competências de outros para desenvolver este mecanismo, existe um capital acumulado de experiências no país desportivo - com sucessos e insucessos - suficiente para os seus responsáveis perceberem, no mínimo, e sem necessidade de suporte científico, que tentar igual é persistir no erro e que a política de pequenos passos traz resultados mais duradouros do que efémeras ambições desmedidas desligadas da realidade.

Quantas mais repetições são necessárias até se corrigir o erro? Preocupa não vislumbrar resposta a esta questão.

1 comentário:

Luís Leite disse...

Excelente texto, com particular destaque para os últimos 4 parágrafos.
Sem uma política governamental de definição clara de objectivos desportivos a médio e longo prazo, continuaremos na cauda da Europa em todos os indicadores desportivos.
Que importância relativa estratégica e orçamental têm dado os Governos ao Desporto?
Para que servem o Comité Olímpico de Portugal e a Confederação do Desporto de Portugal? Que ideias e objectivos têm para o futuro do desporto português?
Procura-se tapar o sol com uma peneira, festejando efusivamente em galas de dimensão desproporcionada casos isolados de sucesso em desportos individuais e no desporto para deficientes.
A verdade é que a realidade do desporto português é globalmente modestíssima no contexto mundial e europeu.