quarta-feira, 1 de setembro de 2010

O legalês

A necessidade de solicitar uma licença a um serviço público obrigou-me a deslocar à sede em Lisboa. O ofício que me convocava, para um acto de mera rotina administrativa, referia 8 diplomas legais entre leis e portarias. Centenas de ofícios semelhantes serão escritas anualmente para o mesmo fim. E há anos que assim ocorre. Imagino que ninguém com responsabilidades públicas sobre a matéria se interrogou sobre se que aquilo é a forma de se comunicar com os cidadãos. Sobre se é possível saber o que estão a dizer quando, em vez de dizer o que precisa de ser dito, remetem para o número, do artigo, da lei, publicada numa determinada data. Para o caso em que não foi alterada. Porque se o foi a lenga-lenga repete-se. Não é apenas o universo burocrático em que tudo está envolvido. É o próprio registo narrativo que é inacessível ao comum dos mortais.
Na administração pública de muitos países há, actualmente, uma luta contra o legalês e o jargão jurídico. E a favor de uma linguagem clara, simples e compreensível quer nos documentos oficiais, quer no modo como a administração comunica com os utentes. Naturalmente que se não trata de fazer baixar a norma jurídica à linguagem comum. Mas de perceber que quando se comunica se tem de levar em consideração que os destinatários não são juristas.
Construir uma cultura organizacional na administração pública que privilegie aqueles a quem se dirige, que valorize a linguagem simples e clara é uma tarefa difícil e demorada. Difícil porque poucos compreendem que é necessário deixar de olhar parar os textos oficiais como escrituras sagradas, só compreensíveis aos entendidos. Demorada porque são anos e anos de uma cultura que ignora os destinatários da acção pública.
No nosso país, infelizmente, os exemplos abundam. O código dos contratos públicos (CCP), um instrumento basilar da acção dos serviços do Estado, é um documento que serve para ganhar dinheiro ao escritório de advogados que o preparou. E aos colegas que têm de litigar as dezenas de providências cautelares que correm nos tribunais. Algumas das suas normas só são estendíveis, se é que o são, a quem as escreveu. A consulta custa uma nota. A complexidade é tanta que os próprios juristas não se entendem. Imagine-se o que é o técnico de serviço público que não é jurista - o que se passa com a maioria - a trabalhar com o referido código. No fim-de-semana correu a notícia da obrigatoriedade de utilizar os serviços da net para fazer prova de condições para a obtenção do rendimento mínimo. Espera-se, naturalmente, que quem assim dispôs corra a corrigir a asneira. A generalidade dos clubes desportivos não têm condições operacionais para poderem entender e responder às obrigações decorrentes do regime de comparticipações públicas. O ónus administrativo sobre os serviços públicos é brutal. Aguarda-se que o bom senso regresse e o diploma seja revisto.
Curiosamente tudo isto ocorre num país que tem adoptado medidas correctas de simplificação administrativa e tem soluções de boas práticas de serviço público de que as mais emblemáticas serão, porventura, as Lojas do Cidadão.
O actual governo manifestou a intenção de “limpar” uma série de diplomas legais que mantendo-se em vigores estão desactualizados, desajustados, não são aplicados ou todas elas em simultâneo. Uma espécie de arrumação no edifício legislativo nacional tão propenso à jurisdicização de tudo e mais alguma coisa. Ignoro se essa diligência cobre alguma da prolixa legislação desportiva. Mas esse problema não resolve o que inicialmente referimos.
Recentemente recebemos um documento onde se referia que a Suécia adoptou uma política de linguagem oficial para o sector público. No ministério da Justiça sueco trabalham cinco linguistas e cinco advogados na revisão de toda a legislação de modo a garantir uma elevada qualidade jurídica a par de uma linguagem tão clara e acessível quanto possível.
Cada um de nós, cidadão comum ou trabalhando com os serviços públicos, já sentiu os efeitos de uma cultura legislativa convencida, soberba e que paira acima das pessoas. O que está mal. Porque ao fim ao resto toda a produção legislativa se destina a regular a vida em sociedade. Que é a vida de cada um de nós.

10 comentários:

Gaspar disse...

A Inglaterra adoptou, igualmente, um sistema simplificado de comunicação com o consumidor (cidadão comum) nomeadamente para facturas de serviços, comunicações bancárias e também para comunicações fiscais.

Outro bom exemplo das preocupações com a comunicação e com a interpretação da mesma.

josé manuel constantino disse...

Obrigado.Uma prova de que o assunto merece ponderação.

Luís Leite disse...

Praticamente todas as Leis e Decretos-Lei que são aprovados na Assembleia da República e promulgados pelo Presidente da República remetem, de uma maneira ou de outra, para um número variável de outros diplomas anteriores, raramente menos de 3 ou 4 mas que pode chegar ou ultrapassar a dezena.
Não haverá possibilidade de produzir menos diplomas, mas que cada um tenha lá tudo o que interessa sobre o assunto, erradicando ou suprimindo os antigos?
É que o desconhecimento da Lei não pode ser invocado. Mas, pergunto eu, com este edifício legislativo, quem é que pode perceber com alguma certeza seja lá o que for?

mdsol disse...

Caríssimo JM Constantino

Desculpa voltar depois de tanto tempo e nem sequer me ater ao conteúdo do teu post! (Olha Maputo está com problemas, já viste? Há gente retida no aeroporto)

Diz-me meu caro: o grande problema do combate ao doping em Portugal é o C. Queiroz? A ADoP não precisará de ir ao oftalmologista? Ou será ao endireita?
Será que a formação médica agora produz florzinhas de estufa que tremelicam no exercício das funções à audição de vernáculo, intempestivo é certo, escusado, mais do que certo, mas não mais do que isso?
Estaremos perante ajustes de contas históricos de quem, nem que seja inconscientemente, não perdoa aos gajos da "ginástica" terem-se libertado da tutela médica?
Estaremos perante ajustes de contas históricos dos que conscientemente não perdoam aos gajos da "Ginástica" terem-se imiscuído no domínio dos homens do "terreno", para quem a racionalização possível do discurso do desporto até parace que os queima?
Estaremos perante ajustes de contas da história recente em que os "ós e extensivamente" doutores exibem o olhar sobranceiro dos "puros" que já não precisam de se misturar seja com a "ginástica", seja com o "terreno"?
Estaremos perante ajustes de contas da história que não perdoa o exercício livre da cidadania política, se não for da nossa corzinha?
E os direitos normalzinhos de um cidadão não deviam ser acautelados em todas as circunstâncias? Assim coisinhas básicas do tipo: antes de condenar ouve-se a pessoa em causa?
Que me dizes? [Se já te referiste ao assunto peço desculpa. Realmente não tenho lido o blog]
:)))

josé manuel constantino disse...

Olá Mdsol, bem vinda às lides bloguistas!
Sinto-me obrigado a um dever de reserva pública face a uma matéria que conheço pelos jornais e que envolve um organismo a que já presidi. Tenho amizade e estima profissional pelo Luís Horta. E mantenho com o Carlos Queiroz relações de trabalho no âmbito das funções profissionais que exerço. Limitei-me a apreciar a polémica no plano politico e na semana anterior escrevi uma coisa –A escala de richter do homem do leme-que podes ler. Acrescento apenas uma nota sobre uma matéria que ninguém fala,que pode ser marginal, mas que também pode ajudar a explicar o modo severo como o poder politico governamental abordou o tema. Refiro-me à visita que o primeiro-ministro fez à selecção,ainda na Covilhã, ao que disse,às alusões a Scolari e o modo como se apreciou e comentou essas palavras. Que seguramente não agradaram ao homem do leme.

joão boaventura disse...

Caro/a mdsol

O que se passa no caso Queiroz é um processo kafkiano que consiste em substituir a presunção de inocência pela de culpa, ou seja, procurar a todo o transe a culpa com a finalidade de fechar todas as vias de reintegração e permitir a exclusão.

Se quiser saber, quais os passos que Queiroz está a dar, leia as páginas 227, 228 e 229 d’ “O Processo” de Kafka (a minha edição é da Colecção Mil Folhas, Público, 2004, Lisboa):

“Diante da Lei há um porteiro. Um homem do campo chega junto deste porteiro e pede para entrar. Mas o porteiro declara que por agora não pode permitir-lhe a entrada. O homem reflecte, depois pergunta se então poderá entrar mais tarde. «É possível», diz o porteiro,«Mas não agora». Como a porta da Lei estava como sempre aberta, o porteiro afasta-se e o homem debruça-se para olhar para o interior, através da porta. Ao ver isto, o porteiro começa a rir e diz: «Se te atrai assim tanto, experimenta entrar apesar da minha proibição. Mas cuidado: eu sou poderoso. E não passo do último de todos os porteiros. Porque de sala para sala, há porteiros, cada um mais poderoso que o anterior.”

Para não alongar a transcrição, apresento a parte final:

“O porteiro é obrigado a inclinar-se para ele, porque as diferenças de altura modificaram-se muito em detrimento do velho: «Que queres tu saber ainda?», pergunta o porteiro, «tu és insaciável». «Toda a gente se esforça por alcançar a lei», diz o homem, «como é que ninguém, excepto eu, solicitou a entrada todos estes anos?». O porteiro apercebe-se que o fim do homem está próximo, e como é quase surdo, berra-lhe ao ouvido para se fazer ouvir: «Ninguém mais podia obter a autorização de entrar, porque esta entrada se destinava só a ti. Agora, vou-me embora e fecho-a».” (fim da transcrição)

Kafka limita-se a retratar, n' “O Processo” o absurdo, pelo qual o cidadão é obrigado a submeter-se a uma regra viciada do jogo cuja dinâmica pende para o lado do mais forte.

Luís Leite disse...

Independentemente do que se possa ter passado ou não na Covilhã (julgo que quanto a factos não haverá muitas dúvidas no processo), o pior de tudo é o papel do Governo e da Assembleia da República, que respectivamente inventaram e aprovaram um Decreto-Lei em que uma "Autoridade" independente mas dependente do Governo pode ser juiz em causa própria.
E um membro do Governo que se mete no assunto fazendo julgamentos prévios em público.
Tudo isto acaba por dar-me razão no que escrevi no meu último post "O que está mal no Desporto português".

joão boaventura disse...

No meu comentário ao anterior post de Rui Lança, opinei:

"No Estado Novo os castigos aplicados pelas Federações podiam ser alterados pelo Ministro da tutela. Hoje, não é pela tutela é por uma comissão sui generis et sui iuris, para concluirmos com Cícero que summum ius, summa iniura."


Afinal, enganei-me. A alteração do castigo pelo Conselho de Disciplina da FPF, não saiu da tal comissão sui generis et sui iuris, mas do IDP, donde a necessidade de actualizar a minha anterior observação, a que me prontifico.

No Estado Novo os castigos aplicados pelas Federações podiam ser alterados pelo Ministro da tutela. Hoje, não é pela tutela é pelo IDP, que é uma sub-extensão da tutela, ponderação que aproxima o sistema normativo actual do sistema normativo do Estado Novo.

O que se passa com o Processo Queiroz passou-se com os Processos do actual Primeiro Ministro, ao qual foi sempre negada a Lei, perdão, o ser ouvido, o que levou o actual Bastonário do Direito a declarar, para quem o quisesse ler e ouvir:

- Estamos a assistir a uma vergonhosa actuação da justiça que parece mais preocupada em culpabilizar o Primeiro Ministro, em vez de partir da presunção de inocência.

Isto era o que se passava no Estado Novo, daí a chamada de atenção do Bastonário Marinho e Pinto.

Este é o retrato do Processo Queiroz, em boa companhia do Primeiro Ministro, porque ao primeiro foi negada qualquer audição, e ao segundo, ou deixaram prescrever o prazo, ou deixaram esgotar o tempo e a paciência para o ouvir.

Para Cândida Almeida não valia a pena ouvir o Primeiro Ministro porque não vinha aduzir matéria nova; e para o IDP, não valia a pena ouvir Queiroz porque a audição feita pelo Conselho Disciplinar lhe bastava e porque, ouvi-lo, Também não vinha aduzir matéria nova.

No Estado Novo a Administração dos Portos era considerado um Estado à parte. Hoje é o AdP, porque fez de um pingo de água uma tempestade tropical.

Convém acrescentar que Franz Kafka (1883-1924) não fez mais do que tentar em tom crítico, pelo absurdo, melhorar a compreensão das organizações, face às etiquetas que apreendeu do sociólogo Max Weber (1864-1920): burocracia, poder, autoridade, racionalidade e alienação.

mdsol disse...

É de ler

http://herdeirodeaecio.blogspot.com/2010/09/seleccoes-seleccionadores-e.html

Anónimo disse...

Em resposta ao João Boaventura, digo eu:

Kafka, ao menos, costumava ler os processos antes de se pronunciar sobre eles...

O Queiroz não tinha que ser ouvido antes da decisão resultante da avocação, porque esta decisão assentava EXCLUSIVAMENTE sobre o processo já instruído pela FPF (e onde ele foi largamente ouvido) e do qual o Conselho de Disciplina retirara conclusões abusivas, com o fito único de favorecer o arguido e branquear os seus comportamentos.

A avocação nada vem trazer de novo ao processo; limitou-se a reapreciar as conclusões do Conselho de Disciplina, denunciar as aldrabices e maroteiras que aquele Conselho de Disciplina fez no processo, corrigir essas conclusões e proferir nova decisão.

Como não há - nem pode haver - factos novos, nem novo processo, o Queiroz não tinha que ser (mais uma vez...) ouvido. Já tivera todas as oportunidades para sustentar a sua versão dos factos, ou seja, para alegar as mentiras que repetidamente proferiu.

E, para terminar: já se terá reparado que quer o Queiroz, quer o Conselho de Disciplina, quer a Direcção da FPF, NUNCA questionaram qualquer das conclusões constantes da decisão da ADOP? Porque será?????