quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Fazendo de conta

Quem chega ao desporto por via da educação física, como é o meu caso, há uma impureza que sempre contamina: o ter do desporto uma visão militante, pedindo-lhe o resgate sobre as suas permanentes adulterações. Esperando dele, porventura, o que ele não está em condições de dar. Porque, provavelmente, de adulterações se não trata mas apenas da sua realidade nua e crua. A ser assim, o mal é meu que resisto a não querer ver o que está à vista.
O desporto como forma de musculação moral do homem era um desígnio coubertiniano. Gosto da formulação. E não me incomoda o poder ser um registo idealista e retórico. Se o confronto e a competição não obedecerem a regras livremente aceites e cumpridas o duelo desportivo (a escolha da palavra duelo é intencional…) deixa de ter sentido formativo. E, ao deixar de o ter, não perde a sua dimensão e importância social. Mas não pode invocar a referida responsabilidade formativa.
O adestramento corporal e a performance desportiva têm valores próprios no que significam do desenvolvimento e domínio de capacidades motoras e fisiológicas. Mas para se avaliarem carecem de confronto. Ninguém treina sem um objectivo. Por norma, o de se medir, comparando com outros. É óbvio que há quem treine com outro tipo de objectivos mais centrados em si próprio. Mas na sua génese treina-se com o objectivo de competir. O que dá sentido a tudo o que fazem é precisamente a competição. Sem a competição, para quê treinar?
Aqui chegados importa interrogarmo-nos se a competição tem sentido educativo? E se o tem para vencedores e vencidos ou apenas para um deles. A resposta é ambígua: depende das condições e dos valores que contextualizam a competição. E a resposta é tanto mais difícil quanto nos tempos presentes o resultado de uma competição não tem apenas um valor desportivo. Encerra também um valor financeiro e em algumas casos um assumido valor político. Quando o titular de um cargo público se fotografa de cheque na mão a entrega-lo a um atleta (como recentemente ocorreu com o titular da secretaria de estado do desporto), não se elogia o mérito desportivo de alguém, mas procura-se autoelogiar o poder político. O mérito desportivo do atleta é instrumentalizado para um exercício de propaganda. Neste ambiente procurar uma dimensão educativa para o desporto e a competição é como procurar o norte viajando para o sul.
Uma boa parte dos desvios do desporto a uma matriz comportamental socialmente aceitável estão para além do desporto e da competição. São jogos para além do jogo. O que explica, muitas vezes, a dificuldade do desporto, por si só, lhes poder fazer frente. Associado a este facto está o de nem sempre se entender essas externalidades. E se carregar o desporto de responsabilidades cujo fardo ele não consegue suportar. Neste sentido parece mais razoável o realismo crítico que o optimismo ingénuo e assumir que não é possível ao desporto carregar a responsabilidade de uma dimensão educativa e social enquanto os valores sociais dominantes que o contextualizam, forem os que são.
O que dizer de quem autoriza a colocação de imagens de clara glorificação de símbolos racistas e violentos num dos túneis de acesso aos balneários em Alvalade? Pouco. Porque afinal é apenas o prolongamento para os balneários daquilo que se autoriza e estimula nas bancadas.Com que todos semanalmente convivem na grande festa do futebol. Os factos são graves, pois são, mas não são novos. O que pensar do silêncio das autoridades governamentais e da federação respetiva? E do sindicato dos jogadores e do provedor dos adeptos da Liga? E de todos aqueles que um dia destes se juntarão para celebrarem mais um qualquer plano a favor da ética no desporto? O mesmo que se pensa em anteriores situações: optam pelo silêncio enquanto for mediaticamente aceitável e até que o assunto morra por si. E quando for necessário apelam à ética no desporto do mesmo modo que se benzem quando para isso são chamados.E participarão, sem qualquer rebate de consciência, em qualquer seminario ou conferência que sobre o tema se realiza.
O país discutiu nos últimos tempos a deriva de algumas lojas maçónicas. Trouxe-se para a praça pública o que todos sabiam e sabem mas ninguém ousa assumir publicamente: a captura de uma instituição que relevantes serviços prestou à democracia, uma casa que devia albergar homens bons e íntegros, exemplos de cidadania, por pessoas que a utilizam para tráfico de influências, acesso ao poder e gestão de negócios.Portugal prefere viver assim. Ignorando o que de facto se passa e fazendo de conta que faz alguma coisa para mudar este estado de coisas. O desporto não escapa a esta atitude demissionária.

6 comentários:

Luís Leite disse...

O desporto deveria ser sempre formativo.
Mesmo o desporto profissional.
Mas a realidade subverte o idealismo.

É exigida uma ética desportiva aos praticantes profissionais?
É exigida uma ética desportiva aos dirigentes profissionais?
É exigida uma ética desportiva aos praticantes não profissionais?
É exigida uma ética desportiva aos dirigentes não profissionais?

O que se exige, e apenas no desporto federado é o cumprimento das regras próprias de cada modalidade.

Supostamente, na escola, aprende-se uma ética desportiva.
Essa ética, com dimensões e componentes muito variáveis e relativizadas pelo Mercado no desporto de alto rendimento, tende a não ser cumprida, mesmo quando as regras comportamentais são conhecidas por todos.

Há uma cultura pós-moderna igualitária que tudo relativiza.
O grande ídolo desportivo destes tempos não tem que ser um modelo de virtudes nem de educação.
Vive de uma imagem construída para agradar ao consumidor-tipo.
Para o público consumidor do espetáculo e da informação, basta-lhe que o ídolo seja muito famoso.

Afastámo-nos dos tempos em que prevalecia um referencial moral.
Na era do pseudo-socialismo igualitário, nivelado por baixo e maioritariamente inculto mas diplomado, Bem e Mal são conceitos relativizados e submetidos aos interesses de cada indivíduo, de cada grupo organizado.
Também na política.
É este o tempo em que vivemos.

Anónimo disse...

Bingo!

Pensar Sporting: "Violência associada ao fenómeno desportivo"

http://is.gd/aoHvsK

Anónimo disse...

José M. Constantino
Da leitura deste seu texto pressinto em si um desalento e um pessimismo dos quais não comungo. Talvez para si seja mais adequado falar de realismo crítico. O que eu senti foi descrença relativamente a ideais que muitos investiram e investem no desporto.
Em meu entender não podemos exigir do desporto que seja "ele" a moldar, ou a contribuir para moldar, a sociedade. Será sempre, muito mais, a sociedade, no seu todo, a influenciar o desporto. O desporto emana da sociedade e não o contrário. O desporto transporta consigo todas as maleitas sociais, não sendo melhor nem pior do que os outros fenómenos sociais. Também não contribui para que a política e os políticos sejam melhores do que são, apesar de amiúde,se utilizarem da metáfora desportiva para ilustrar as suas boas intenções ou até para realçar alguns traços do seu carácter político. Muitos, por exemplo, se consideram maratonistas na política.
Como ponto de partida é, em meu entender, fundamental separa o desporto profissional de tudo o resto. No desporto profissional não coloco apenas as modalidades, como o futebol, onde o estatuto profissional é mais evidente. Falo de todo o tipo de prática desportiva que mobiliza motivações extrínsecas financeiras, seja quais forem os quantitativos em jogo. Apesar de também no desporto profissional esperar que os comportamentos sejam eticamente intocáveis, entendo que a finalidade desta prática não se enquadra na educação pelo desporto. Formam-se atletas para ganhar, dar espectáculo, criar audiências e lucros financeiros. Os adeptos estão lá mas já pouco têm a ver com os jogos de bastidores e respectivos interesses. Trata-se de uma relação laboral pura. O empregador contrata força laboral. O empregado fornece o seu trabalho justificando um ordenado mensal.
Quando passamos para o "outro" desporto o quadro é diferente ou, melhor, deve ser diferente. O prazer da prática por si só é suficiente para o praticante se manter na actividade. "Neste desporto" é fundamental não desistir dos objectivos e da intenção educativa e formativa. Deve acreditar-se e fazer por isso. Mas, também aqui, deve partir-se do princípio de que o desporto por si só nada tem de educativo. É fundamental que essa intenção e esse significado esteja presente em todos aqueles que lideram este tipo de práticas.É um trabalho de todos os minutos. Exige uma supervisão atenta e intensa da prática. Exige que os adultos com responsabilidade nestes contextos desportivos educativos sejam, eles próprios, exemplos de conduta. O desporto não tem assumido este papel. Dá muito mais trabalho oferecer um desporto com conteúdo educativo do que enviar jovens para a competição sem o mínimo de preparação para tal tarefa. Quando digo preparação não me refiro à preparação técnica, física ou tática. Refiro-me à preparação específica para competir.

Anónimo disse...

(Continuação)
Quantos dirigentes,treinadores, professores preparam, rigorosamente, os seus atletas para competir? Que critérios são seguidos para atestar o estado de prontidão, não só física ou técnica, para a competição? Que significados são passados para os praticantes sobre a competição? O que significa competir, ganhar, perder, lutar, persistir, desistir? O que significa ter um adversário para competir connosco? Que grau de consciência, sobre estas questões, têm dirigentes, treinadores, ou professores?
Quem conhece um pouco dos curricula da formação de professores ou de treinadores sabe bem que esta preocupação não existe.
As ligações que o autor do post faz com os aproveitamentos políticos são para mim secundárias. Os políticos aproveitam-se porque as gentes do desporto se colocam a jeito. Também gostam de ficar na fotografia. Obviamente, também não estão preparados para essa função.
Educar dá muito trabalho e o desporto parece coisa fácil.
Em suma, continuo a pensar que o desporto tem potencial educativo e formativo. Continuo a pensar que o desporto pode contribuir para a felicidade daqueles que o praticam. Para tal tem que ser orientado, gerido e ministrado com total consciência dos seus diferentes significados. E, já agora, é fundamental acreditar que o ser humano, em todas as suas formas de expressão, é moldável através das práticas e dos exemplos a que é exposto.

Armando Inocentes disse...

"Que grau de consciência, sobre estas questões, têm dirigentes, treinadores, ou professores?
Quem conhece um pouco dos curricula da formação de professores ou de treinadores sabe bem que esta preocupação não existe."

Bingo! (é a minha vez!).

O anónimo do dia 21 (19.57 e 19.59) coloca o dedo na ferida... mas generalizar é um defeito!

Cumprimentos!

Anónimo disse...

Generalizar não há dúvida que é um defeito. Alturas há em que a generalização ofende muitos. Neste caso a generalização exclui poucos. Infelizmente. A preparação para a competição - para além de fontes de energia e de técnica - é praticamente descurada. Os praticantes vão aprendendo por si, pelo exemplo e pelos choques que vão tendo com a realidade. Vão desenvolvendo aquilo que se chamam as técnicas "naif". Se não as encontrarem por si próprios são apelidados de fracos.
É por tudo isto e mais algumas coisas que o actual corriculum da formação de treinadores vai ser mais um "flop" na preparação de próximas gerações de treinadores. Em vez de sair um curriculum adaptado à função de treinador saiu uma mini-amostra de um curriculum universitário com todos os seus defeitos e muito poucas das suas virtudes.
Para onde vais Educação pelo Desporto?...