quarta-feira, 11 de abril de 2012

Desporto e competitividade territorial

"Sendo verdade que o poder só é verdadeiramente democrático se for local, não é menos verdade que só é verdadeiramente local se for democrático. (...) E, ao afastar-se da sociedade local, por mais forte que seja o Poder Local, será forte enquanto poder, mas será fraco enquanto local"

Boaventura Sousa Santos


Tem vindo recentemente a lume na comunicação social e na blogosfera uma acesa troca de artigos de opinião sobre o papel das Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional - CCDR’s na gestão dos fundos comunitários e no processo de desenvolvimento regional.

Não se ignora a agenda política que sustem as posições dos protagonistas neste debate, o qual, invariavelmente, termina reduzindo a política regional à regionalização, com grave prejuízo para o aprofundamento dos problemas em torno do desenvolvimento regional do país.

Fernando Ruivo, continuando um trabalho de décadas sobre esta matéria, volta a apresentar resultados de um vasto inquérito aos municípios portugueses, sobre as debilidades do Poder Local na gestão de fundos comunitários e imbricação nos processos de desenvolvimento regional, os quais colocam em crise fundamentos para um eventual esvaziamento do papel das CCDR’s, traduzindo numa análise histórica e sociológica da nossa cultura político-administrativa, bem como na gestão dos fundos de coesão, os obstáculos que se impõem e impuseram na rentabilização de financiamentos externos potenciadores da transição de uma cultura de plano para uma cultura de planeamento promotora de efectivo desenvolvimento e correcção de assimetrias. Dito de outro modo, de um plano-produto para um plano processo.

Exemplo desta incapacidade de transição do plano técnico-racional para o planeamento estratégico e colaborativo tem sido a conceptualização da Carta das Instalações Desportivas Artificiais e a programação do parque desportivo nacional ou local. Desde a sua planificação, ao financiamento, passando pela gestão e manutenção, as ineficiências reproduzem-se, independentemente do nível da administração em que o promotor se situa, conforme já se deu conta em vários escritos e comentários neste e noutros fóruns.

Ora, no contexto actual paga-se cara a factura de investimentos improdutivos em infraestruturas desportivas, em particular à medida que estas envelhecem e se reconfiguram os tipos de procura e consumos de actividades de desporto e exercício.

Tanto mais assim é quanto se persistir em políticas - corrijo, decisões (porque é disso que se trata) casuísticas e profundamente arbitrárias - à margem de uma concepção planificadora do território – entendido não apenas como uma realidade física estática, mas fundamentalmente como uma construção social dinâmica -, sem envolver a participação da sociedade local que usufrui e assimila estes espaços, nomeadamente quando os poderes públicos canibalizam a oferta de serviços desportivos prestada em condições de menor eficiência para a comunidade do que quando esta se organiza através da iniciativa privada empresarial ou associativa.

Resta, deste modo, na ausência de políticas públicas sustentadas e de separação entre a esfera politica e a esfera administrativa, os efémeros fogachos de happenings mediáticos e de projectos escolhidos “à la carte” à medida que alguém bate à porta de um gabinete a vender uma ideia ao sabor de oportunidades políticas, as quais orientam o labor da máquina administrativa e dos seus dirigentes, sem se conseguir carrear acções numa cadeia de valor acrescentado para o munícipe e para o desenvolvimento desportivo local.

Perante tal conjuntura, e num quadro em que o Estado orienta prioridades para níveis desportivos de topo, pouco ou nada se lega, para além da “obra feita” que outros tomarão em mãos quando o ciclo político findar, encarando, surpresos, uma “pesada herança”, no sempiterno oportuno alibi para justificar atrasos na implementação de projectos anunciados quando novos inquilinos ocupam o poder.

Não deverá, pois, constituir surpresa para ninguém os indicadores de prática desportiva deste país à escala europeia, em particular quando é o Poder Local, ainda assim, quem suporta as enormes dificuldades de subsistência nos níveis desportivos mais elementares e a oferta não competitiva para os segmentos que crescem fora do domínio federado.

Independentemente de todas as críticas que lhe possam apontar - e aqui volto aos dados de Ruivo – não existe, para já, potencial para dinamização de uma economia municipal sem a mediação do expertise das CCDR’s, como alvitra, em entrevista, o coordenador do grupo de trabalho responsável pela definição da metodologia de elaboração da Carta Desportiva Nacional. Não só porque não existe um arranjo de escala para a distribuição das competências e correspondente afectação de meios pelos vários níveis de administração do território mais eficientes para a sua gestão numa optica de subsidiariedade, mas também porque as debilidades da sociedade civil, acentuadas por uma cultura politica centralista, não permitem romper com o sistema clientelar instalado, invariavelmente mediado pelo Estado, em particular quando se almejam linhas de financiamento europeu.

Reverter tal tropismo anquilosado por gerações passa, incontornavelmente, por co-responsabilizar os agentes da comunidade na consolidação de políticas públicas, desde logo a partir da sua fase de planeamento, tornando os instrumentos disponíveis, como devem ser as Cartas Desportivas, muito mais do que um mero cadastro ou inventário do edificado desportivo que se apresenta como um produto acabado numa qualquer cerimónia oficial.

Cruzando outras dimensões de diagnóstico económico, social e desportivo, constitui a pedra angular para a progressiva edificação de um programa coerente e ajustado ao território, ao vincular os seus actores, mas também os seus eleitos, neste trajecto de aprendizagem politica e cidadã que confira garantias para uma boa gestão dos recursos públicos em prol do interesse geral, em especial nos períodos de maior exigência e rigor neste exercício como aquele que hoje se atravessa.

No fundo, trata-se de passar além da retórica e capacitar os actores territoriais no efectivo papel de parceiros, sem os reduzir ao de simples executante, alargando progressivamente também a escala do localismo para corrigir as debilidades que careçam de abordagem intermunicipal 1.

Almejar semelhante desiderato - começando por pequenos projectos, step by step - no espectro sub-regional, onde se opera em rotina administrativa e a acudir necessidades imediatas (por vezes nem urgentes, nem prioritárias) criadas precisamente por ausência de tempo e recursos disponíveis para tarefas de planeamento e por total desarticulação entre municípios contíguos, parece um ensejo mais exequível para construir territórios competitivos no espaço europeu com efectiva autonomia e capacidade de mobilização directa junto das instituições da UE e organismos supranacionais, do que construir a casa pelo topo transferindo atribuições de instâncias da administração desconcentrada do Estado, por mais problemas ou bloqueios que estas possam criar.

Aliás, o conceito de governança em rede e multi-nível da União possibilita e incentiva, desde as suas origens, uma participação não-hierarquizada dos intervenientes na política regional. Com excepção das regiões ultraperiféricas, o Poder Local, sem a interlocução do Estado, tem o mesmo papel fora do território municipal, em particular na UE, que os actores locais têm tido na esfera municipal. Ou seja, mero executante de determinações externas, quando muito. Dúvidas houvesse basta estar atento às candidaturas autónomas a programas comunitários que não carecem de especial mediação das CCDR's. Por exemplo, relacionado com o desporto e exercício, o envolvimento nacional de entidades públicas locais em projectos no âmbito do presente Ano Europeu do Envelhecimento Activo

Neste quadro alguém acredita que a simples descentralização de competências rompe com a auto-reprodução do posicionamento marginal e clientelar das instâncias infra-nacionais? Contribui para o reforço da sua autonomia face ao Estado? Reforço do poder de iniciativa, inovação e mobilização das forças endógenas para potenciar territórios globalmente competitivos e passarem de executores a criadores de políticas?

Por vezes convém descer à terra…



1

A propósito de instalações desportivas, procurou-se, em tempos, com os dados então disponíveis na Administração Pública Desportiva desmistificar preconceitos adquiridos sobre a suficiência de espaços desportivos nas diversas NUT’s do país através da aplicação de instrumentos de análise regional, cujo relatório e ficheiros de análise estão disponíveis no Forum Olímpico

1 comentário:

Luís Leite disse...

Texto de grande qualidade de João Almeida.
É um tema no qual me vi muito envolvido enquanto dirigente desportivo, entre 2002 e 2009, sobretudo através do contacto muito frequente com o poder autárquico, delegados regionais do IDP, poder central (IDP e SEJD) e QCA/QREN, através da análise e elaboração de pareceres técnicos sobre instalações desportivas e conhecimento das tomadas de decisão ou pareceres dos diversos actores referidos.
Concordo na generalidade com o diagnóstico apresentado.
Quanto a medidas de correção progressiva da definição de funções dos intervenientes nos processos de decisão quanto à planificação, construção e gestão das instalações desportivas, sua aceitação e implementação, não posso ser otimista.
O problema é cultural.
Uma vez que não haverá dinheiro para novas construções nem sequer para a manutenção das existentes nas próximas décadas, todo o exercício pensante, sendo obviamente útil, não terá consequências práticas na rede de infraestruturas desportivas entretanto construídas, as quais foram, vão e irão entrar em degradação definitiva, com particular incidência para as "outdoor".
Assim, quem ocupar os lugares de decisão, não podendo gastar dinheiro com novas obras, irá preocupar-se com outras questões que possam dar dividendos políticos eleitorais, que é o que no fundo sempre interessou.

Arquiteto
Pós-graduado em Planeamento Urbanístico
Ex-Vice-Presidente da Federação Portuguesa de Atletismo