quinta-feira, 19 de abril de 2012

PT e Constantino guardador de vacas e de sonhos



Tenho períodos em que a necessidade de estar sentada a escrever durante muitos dias me faz pensar que a vida do hamster é muito mais excitante que a minha. É também nestas alturas que, tal como este bichinho, me apanho nas máquinas do ginásio a correr sem sair do lugar, produzindo e gastando energia, dando conta do desperdício que caracteriza o lado absurdo do modelo tecnológico. Olho à volta e imagino a energia de todos aqueles corpos, que ali passeiam e dão ao pedal, a ser aproveitada de modo a alimentar as próprias máquinas que, tontamente e ainda por cima, gastam electricidade. E é no ginásio que, alheados do mundo e de nós próprios, mandamos manguitos uns aos outros e, com um peso apertado na mão mais a acústica a envolver os ouvidos, nos fechamos publicamente no cuidar do nosso corpo.

Mas, no ginásio, a figura que mais me impressiona é o PT -  Personal Trainer - que, dito em inglês, tem aquela credibilidade ancestral já expressa na admiração da minha avó pelo político que na televisão falava tão bem que não se percebia nada. O importante é nunca traduzir nenhuma dessas expressões para não vivermos o ridículo de cantar "todos nós vivemos num submarino amarelo, num submarino amarelo" e, dos escolhos deste ímpeto, sobrar a vontade de tornar património imaterial o "indo eu, indo eu, a caminho de Viseu".

No dito PT o que nos prende é o olhar com que fixa, suponho, o tónus muscular da pessoa que está ao seu cuidado. Em pé, parado, de olhar fixo focado nas repetições do outro lembra-me, mutatis mutandis, o olhar com que o pastor atentamente segue o movimento do rebanho pelo prado. Na atitude só o cajado os distingue mas, seguramente, ao PT também este pau daria jeito até para, de vez em quando, dar umas bordoadas à perna ou ao braço que teima desviar-se do rumo pré-definido pela máquina que os estica, estira e encolhe.

O PT lembrou-me, nem sei explicar porquê, o Constantino guardador de vacas e de sonhos, um livro de Alves Redol cuja leitura era obrigatória no meu tempo de liceu. Olhando as vacas, Constantino sonha os moldes do mundo. Já o PT molda corpos que sonham, através de ganhos de perfeição e suavidade Barbieana, resistir à morte e afirmarem a diferença pelo querer muito ser igual a todos que, como as maças calibradas, têm o IMC ideal. É ao PT que cabe entender e decifrar o significado deste tipo de acrónimos que, pela capacidade de interpretar os números do IMC, estabelece com todos nós uma distinção vertical, com ele no topo do saber de ponta, e com as velhinhas da minha aldeia que de cor sabem os valores dos triglicéridos e do colesterol uma distinção horizontal, com ele e elas no topo do saber de monta. 

No prado, ao Constantino falta-lhe o espelho, ou talvez não, porque, dada a natureza tão real e natural, o rio que de certo o atravessa possibilita esse mirar de si e também do mundo de pobreza e de trabalho que o rodeia, mormemente das lavadeiras e de todas as canseiras que, nos textos de Alves Redol, sobrevivem pueris e romanceadas. Já no ginásio isto não é bem assim, a canseira é propositada, não se confunde com pobreza e, obviamente, o espelho é fundamental até para dar conta do espectro de si e do sonho que o outro, um qualquer bem delineado e opíparo de si, representa. O PT resguarda os corpos de quem cuida, de quem sonha tornar-se um Adónis e o seu olhar fixo, leiam sapiente e científico, perante esse outro ao seu cuidado é, por si só, uma garantia de sucesso a esse desafio estóico.

O Constantino é, ingenuamente, um ser único que nos faz pensar um estilo literário e também os tempos de pobreza e da estreiteza do sonho vivido em Portugal. Sobre o PT sobram-me incertezas para a frase de impacto e de síntese final porque neste solipsismo o grande umbigo dá conta do corpo por inteiro e, com a mente formatada pela boa forma, falha o sonho de boa vida social bem como o sentido a dar a Portugal.

4 comentários:

josé manuel constantino disse...

Ao ler o titulo assustei-me...mas depois acalmei-me e.....fiquei bem porque afinal o Constantino -o personagem de Alves Redol- é, ingenuamente, um ser único que nos faz pensar um estilo literário e também os tempos de pobreza e da estreiteza do sonho vivido em Portugal.

Ana Santos disse...

Do livro que li já lembro pouco mas, para sempre na memória, ficou o título que, com 14 anos, achava uma falta de espírito juntar assim sem mais nem quê, na mesma frase, vacas com sonhos. E, como se não bastasse, um menino de doze anos que imaginava magricela e franzino com um nome que trazia à ideia a Constantinopla dada na aula de História. Tem razão em se assustar porque até eu fico basbaque com as associações que faço sobre tudo aquilo que observo e/ou lembro

José Pereira disse...

A Ana tem um estilo de escrita muito peculiar,mas que nos prende,desde a primeira linha,e que nos leva até ao fim, sempre com muito interesse.
As suas crónicas fazem-nos um retrato perfeito da realidade e do quotidiano do nosso viver português.
Com enorme energia interior, não é mulher para se calar e de não fazer ondas,e,com o seu feitio beirão, escreve, com frontalidade, o que a maioria teima em não dizer "para não se comprometer".
Deliciem-se, pois, com a escrita da Ana, porque vale a pena !

Kaiser Soze disse...

Devia aparecer mais vezes, Ana. Quanto aos PT´s, sendo certo que compreendo que nada tem que ver com a profunda reflexão a este respeito, sempre me fez confusão marmanjos com roupa toda coladinha ao corpo eheheh