quinta-feira, 26 de abril de 2012

Sardinha de bicicleta nas Festas de Lisboa


É esta a sardinha que ganhou o concurso das Festas de Lisboa, parabéns à Matilha que a criou e que, com todas estas cores, a retirou da estrita relação com o omega-3.  Já basta de tanta preocupação com os ácidos gordos quando a saúde pública e o exercício dependem, muito mais, do comportamento social do que dos poli-insaturados baptizados com nomes estranhos. Sobre estes pode escrever-se tudo e mais uma teoria porque não é por isso que eles alteram um milímetro da sua actuação, daí o conforto deste tipo de investigação pois nunca os estudados questionam a subjectividade da interpretação dada aos números pelos respectivos estudiosos. Ora as pessoas são mais difíceis de estudar porque o seu comportamento não funciona como um mero organismo, porque é na interacção com o outro  que se gera a emoção promotora de iniciativa e entusiasmo, mesmo que estruturalmente constrangidas, ou então não.

Esta sardinha é fruto dessa tal iniciativa e entusiasmo  porque é pela acção vivida que a matilha reclama políticas públicas que contemplem a sua opção de vida, que neste país protejam a bicicleta na mobilidade urbana. A que se deverá, a este nível, a nossa diferença face aos nórdicos,  tendo nós tão bom tempo e tantos dias de solinho? Será que, fruto da insolação, queimámos o neurónio responsável pela decisão da qualidade de vida citadina que os nórdicos têm e nós não? Passemos agora à variável da nutrição para aventar novas hipóteses, partindo da constatação que nós até comemos mais sardinha (os mais cientistas leiam ómega-3), das duas uma, porque é por demais paradoxal, se a sardinha é responsável pela esperteza como explicar que sejam os holandeses a ter um código que dá primazia ao peão, depois ao ciclista e, por último e sempre sem razão no caso de acidente, ao automobilista. E, numa outra perspectiva, se é grande a esperteza dada pela sardinha vingará em Portugal a do tipo saloia, daquela que acredita que se o problema não é proteico-molecular então não necessita de ser estudado e, vai daí, investe em estruturas, leiam ciclovias e ciclo-faixas e outras segregações do género sem rede lógica pensada a partir dos percursos das pessoas e, a montante, sem a criação de normas, regras e multas sérias para acabar com a velocidade nas cidades. Agora que temos hipóteses de causa-efeito para alimentar vários PhD deixo-vos, a título exploratório, o link para uns slides que vos mostram que na Holanda, contrariando crenças infundadas, no interior das vilas e cidades são poucas as ciclovias; estas existem, sim, para ligar bairros mais afastados aos centros de vitalidade comercial e universitária ou para ligar vilas entre si. É caso para dizer que os holandeses não se perdem, bailarico sim mas não uma vez por ano, festa sim e todos os dias mas a "horas de gente" que no dia seguinte trabalha porque, por suposto, é no convívio regular e quotidiano que reside o segredo da boa vida e da coesão social.

A matilha fez o inédito, pega na sardinha e traz à baila das festividades uma reflexão sobre a mobilidade e o modo de vida da cidade, sobre a falta de opções a que todos estamos sujeitos. Reparem nesta loucura, na escolha forçada a que todos somos submetidos quando nos concentram o comércio em Shoppings como o de Cascais no cimo de um planalto cuja acessibilidade de nível existe mas é uma auto-estrada, quando nos colocam o Hospital Amadora-Sintra num ermo a que só se chega de carro, quando as pessoas que moram em casas mais em conta da margem Sul têm de trabalhar no Tagus Park e, do outro lado, quando moram no Estoril têm trabalhar ou estudar na FCT do Monte da Caparica, quando moram em Queluz e no Cacém têm de estudar na Cruz Quebrada ou, pior, no pólo do Alto da Ajuda. Pergunto, há transportes públicos pensados para todas estas situações? É claro que não, os transportes existem mas não foram pensados para dar resposta a esta complexidade e doidice urbanística, na qual as mudanças estruturais acontecem de modo pontual mais ligadas ao poder do político do que ao poder das políticas e, claramente, isto lixa qualquer suposto sistema ou suposta organicidade.

Até o nosso organismo, que é de si muito complexo, jamais suportaria tal leviandade porque, motivo simples, não contempla clientelismos, cada orgão tem a sua especificidade e seu modo de funcionamento mas, qual hierarquia cerebral qual quê, todos têm de contribuir para o mesmo fim, sem cunhas nem queijos pelo meio. Qualquer greve intestinal nos deixa amarelinhos e se teimar em prolongar-se não tenham dúvidas que o destino final, do corpo por inteiro, é o jardim das tabuletas. Ora, ao nível social também os camionistas testaram a teimosia de Sócrates e provaram que facilmente nos colocavam a todos a andar de bicicleta e a semear batatas mas nunca no cemitério. Topam a diferença, as pessoas adaptam-se, reagem à greve, mudam de comportamento perante as dificuldades até porque, mesmo sem petróleo, temos para trás uma história com séculos de existência. Claro que a consciência colectiva dos camionistas apareceu muito por obra e graça dos respectivos patrões, ou seja, para além da subjectividade inerente à (inter)acção humana ainda temos estes "piquenos nadas" que explicam o sucesso desta greve sobre a dos professores por exemplo, uma coisa é estar em greve abraçado ao patrão contra o Estado cuja face é um tipo que em geral poucos suportam, outra é ser funcionário desse Estado que não lhe paga os dias de greve. E toda esta confusão entre deveres e direitos da cidadania acontece porque nem nas escolas a Educação Cívica é bem servida e a sardinhada é de tal ordem que nem  o primordial vem à baila: que o ESTADO não era o Sócrates nem agora é o Passos mas SOMOS TODOS NÓS.

E, nesta senda da valorização cívica, Sócrates depois da experiência vivida concluiu que só mesmo um investimento na educação, e não é à toa a Filosofia e não a Biologia, lhe faria perceber tudo o que não entendeu.  E, político que só é político, sem Paris nem Filosofia, não anda na matilha porque é raposa velha. E, dominando a sua lenda, esta raposa perante as uvas apetitosas, leiam estas belas sardinhas com biclas e sem carros, incapaz de agilidade para dar cabo da latada sorri com lata e diz: estão verdes! E, contente de si, sai veloz pela via-verde decidido a construir mais estradas e túneis que acabem com a visão destas malditas uvas e eis que, aos poucos, enlouquece e só lhe apetece dar cabo daquelas latas que, nas filas por todo o lado, a impedem de chegar na bisga a qualquer saída. E nesta bisga transformadora de ruas em estradas de fórmula 1, a sardinha enlatada vive em desassossego e com medo: sente que a lata a protege  e por isso paga as estradas,as portagens e as respectivas manutenções; fechadas em si nas grossas filas de espera inventam programas de rádio que as animam; investem mais de metade do mês de trabalho no pagamento das prestações da lata; refugiam-se na crença e na procissão que aos santos pede chuva para arrefecer o efeito estufa criado pelas suas latas; põem as suas petingas frente ao ecrã que as acalma com jogos enervantes e consultam psicólogos para resolver uma hiperactividade que no interior da lata não se aguenta; investem em mestrados e acabam em motoristas das suas petingas que, dados os perigos, necessitam da lata para ir de casa à escola ou ao pão e também à natação; os logistas da tradição governam-se a enlatados porque o produto fresco pertence agora ao hipermercado que dispõe de lugar para cliente com lata. E, todos, investimos na formação de sardinhas cientistas e nutricionistas para, sem nos tirar da gordura da lata, nos fazer mexer e reduzir o peso ou, quietos, nos emagrecer com depuralina. E, perante esta espiral determinista que, com grandes festas, nos embriaga nesta valente sardinhada, ainda nos fazem pensar que não estamos nada entalados, que isto é o ciclo natural da vida, que somos como o ovo e a galinha dos quais ninguém sonha quem nasceu primeiro. Desculpem a franqueza mas este argumento em que andamos todos metidos não lembra nem ao Bruno Bettelheim (autor da psicanálise do conto de fadas).

Com esta sardinha social a matilha mostra que tanto a vida como o turismo na cidade estão a mudar, que o significado patrimonial se alterou, que o ícone da cidade já não é o embasbacado frente ao palácio mas, sim, a estética ligada com o movimento e a interacção social, o turismo activo. Ora, se a matilha já sobrevive  com este modo de vida alternativo ao modo enlatado então significa que é possível fazer vingar esta sardinha menos proteica mas mais social. Este DIY (do it yourself) da matilha mostra que a alternativa se constrói não pela segregação de uns face aos outros mas pelo juntar do saber de todos. Necessitamos assim do efeito circular sabiamente gerado pela raposa, ie, juntar todos os aventureiros para, em cardume, dar segurança a todos aqueles que já desejam sair da lata e só o medo os impede. Cabe às sardinhas interessadas na mudança investir no DIY e, no interior dos seus municípios, universidades, ateliers, oficinas e afins, não recear as infra-estruturas onde as raposas se movem e nas quais estamos todos metidos, instigar as super-estruturas  para dar visibilidade à solução porque é assim que se ganha consciência do problema colectivo e, ainda cheios de lata, construir e/ou exigir estruturas que nos coloquem a saúde pública bem lá no alto de modo a olhar de cima raposas mota-engilosas que contrariadas pela nossa maturidade  diriam "estão verdes"!
Seguindo a Matilha Cycle Crew, cuja maturidade admiro, também eu irei de bicicleta à Festa porque, na sardinhada de Lisboa, é o meio mais rápido para chegar lá primeiro!  

1 comentário:

sendo, é! disse...

Gosto de uma sardinha a ser percorrida por uma matilha, claro de por um grupo muito especial - os ciclistas - que se têm esforçado para a manutenção e criação de ciclovias (em Lisboa);para a educação dos automobilistas que percorrem Lisboa muito aceleradamente; e ainda na difusão de um estilo de transporte saudável. Parabéns aos criadores da sardinha e à matilha!