segunda-feira, 13 de agosto de 2012

O outro lado da festa

A festa é um franchisado cujos direitos de propriedade pertencem ao Comité Olímpico Internacional. Que os vende após avaliar quem melhor os paga. E quadrienalmente a festa sobe ao palco. Um palco acerrimamente conquistado numa competição difícil, entre cidades, em que se gasta muito dinheiro. Os que ganham, mas também os que perdem. Tudo para a glorificação dos atletas. Mas também para que marcas e patrocinadores façam as contas ao que investiram. E os países contabilizem as medalhas. De pouco vale a carta olímpica afirmar que os Jogos são uma competição entre atletas que não entre países. Os Jogos Olímpicos são a melhor competição desportiva à escala mundial para conduzir a uma leitura política dos resultados desportivos. Sempre assim foi. Pelas modalidades que envolvem. Pela mediatização a que estão sujeitos. Pelo carater planetário que os envolve e contempla.
Pierre de Coubertin, o renovador dos Jogos Olímpicos da era moderna, incutiu ao seu empreendimento uma dimensão sagrada. Indo buscar muito do ritual e da liturgia aos jogos da Antiga Grécia, mas aproveitando para popularizar a própria ideia de desporto. Entre aquilo que ele dizia que queria e aquilo que realmente ocorreu, há uma grande diferença. Os tempos são outros e tudo mudou. Os tempos e a vida.
Bastará assistir ao desfile de abertura da cerimónia inaugural para perceber que a festa é outra. Começa muito tempo antes com as disputas entre as cidades candidatas a sede dos Jogos. As cidades e quem as apoia. E continua com a preparação e realização dos Jogos no cumprimento de um pesado caderno de encargos negociado com o Comité Olímpico Internacional.
Os resultados e as competições, as estrelas e os casos, os sucessos e as derrotas sobem à agenda mediática e percorrem mundo. Os bastidores do evento ficam no conhecimento restrito da nomenclatura: um desporto mercantilizado, numa igreja sem ideologias, e onde os apóstolos cumprem um pacto de silêncio. Que ninguém lhes pede, mas que todos sabem que devem manter. Porque há coisas que se aprendem, mesmo que ninguém as ensine!
Numa saudação dirigida em 1927 à juventude desportiva de todas as nações Pierre de Coubertin afirmava: ”nós não trabalhamos, os meus amigos e eu, para transformar os Jogos Olímpicos numa peça de museu ou de cinema, nem para que os interesses comerciais ou políticos o condicionem”. Somos hoje forçados a reconhecer que a festa só é o que é, porque sacrificou três dos seus mitos fundadores: a democracia, a política e o dinheiro.
A democracia patente na direção do movimento olímpico. Uma estrutura pesada de autorreprodução do poder e onde habitam práticas, usos e costumes próprios de organizações fechadas e elitistas. É certo que a atual liderança de Jacques Rogge introduziu regras e práticas mais abertas e transparentes. Mas não podia alterar rotinas e hábitos de muitos anos de poder autocrático.
A política traduzida na crescente instrumentalização quer dos Jogos, quer dos resultados desportivos. A utilização da participação olímpica como forma de afirmação e legitimação políticas. Sempre assim foi. Dificilmente seria possível ser de outro modo. Mas existe um custo que importa ter presente.
O dinheiro porque criou um pequeno grupo de instituições desportivas submetidas a lógicas comerciais tornando difícil perceber onde acaba a governação mundial do desporto e começa o da empresa mundial do espetáculo desportivo. A configuração de uma macro organização, o Comité Olímpico Internacional, muito forte economicamente e dotado de uma legislação e de um funcionamento jurídico independente dos Estados nacionais, mas muito influenciado e dependente das principais potências desportivas mundiais que também o são no plano económico, político e militar.
A festa é também, como elemento aglutinador de muitos interesses e gerador de fluxos financeiros significativos, um pretexto para os barões do desporto surgirem no espaço público em nome dos valores altruístas e culturais do desporto controlando e espetáculo desportivo e gerirem um complexa rede de negócios e de relações políticas.
A competição não decorre apenas nos espaço desportivo. Ela inicia-se antes na tribuna VIP.É um local tão disputado como o espaço desportivo. Por ela transitam antigas glórias do olimpismo e se passeia a nomenclatura olímpica e política. É um local para se ver e ser visto. É um território de ostentação e de poder. Um verdadeiro laboratório social.
A festa é isto tudo. Mas é sobretudo o resultado da cooperação silenciosa entre multinacionais desportivas, média e autoridades desportivas com o beneplácito das autoridades políticas. Dificilmente poderia ser de outro modo. Reconhecê-lo permite perceber o que é a festa. Lembrando o que um dia escreveu José Maria Cagigal: que a comercialização do espetáculo desportivo não é perigosa porque atenta contra valores do desporto mas porque se converteu num produto que necessariamente precisa de ser consumido para ser rentável.

Texto publicado no jornal Diário de Notícias em 1 Agosto 2012

3 comentários:

Luís Leite disse...

É mesmo assim.
Obviamente.
O maior evento mundial.
E aquele que movimenta mais dinheiro.
Uma montra onde se exibe poder e força.

Fernando Tenreiro disse...

O texto tendo surgido primeiro que o poste de Olímpico Bento parece ser um seu desenvolvimento dando uma estrutura económica aos princípios e ética de OB.

JMC termina o texto: 'Lembrando o que um dia escreveu José Maria Cagigal: que a comercialização do espetáculo desportivo não é perigosa porque atenta contra valores do desporto mas porque se converteu num produto que necessariamente precisa de ser consumido para ser rentável.'

Colocaria o texto de JM Caligal noutro sentido: toda a estrutura económica e social não sendo intrinsecamente desportiva no conceito dos seus defensores mais puros, é o instrumento que lhes permite atingir níveis que de nenhuma outra forma poderiam atingir.

Neste sentido de maximização do ideal desportivo e olímpico a economia bem equacionada e aplicada é tão 'desportiva' como o mais desportivo dos bens concebidos pelos ideólogos desportivos de sempre.

Parece um pouco tautológico mas foi isso que os britânicos fizeram demonstrando haver outras formas de conceber os Jogos Olímpicos para além do que fizeram gregos e chineses.

Anónimo disse...

Tudo isso está dito e redito. Não acrescenta mais nada ao que já se sabe.
São exercícios de palavras repetidas, ora da frente para trás ora de trás para a frente. Palavras que foram ditas por autores que nasceram muito antes dos que agora as repetem.
O que é interessante descobrir é a razão pela qual os comentadores continuam a representar o acto dessa repetição, sabendo que o estão a fazer.
Se a realidade é essa, e se não se inibem de fazer o papel da repetição, qual a razão por teimarem nesse papel?
Se já se sabe, então, porque não dão o passo que falta, de proporem uma alternativa e uma solução concreta?
Onde estão as folhas A4 dos repetidores?
Senão, fica-se outra vez no mesmo sítio.
Porque será?

Entretanto, quem tomou conta dos controlos de doping, conquistando finalmente a manipulação em causa própria, vai deitando para a opinião pública aquilo que minimiza a inevitabilidade que Victor Conte referia. Reparem na primeira, saída hoje: “A campeã mundial de lançamento do peso, a bielorussa Nadzeya Ostapchuk, foi desqualificada e foi-lhe retirada a medalha de ouro depois de apurado o teste positivo de doping”.

Qual a Política de Desporto que constituiria uma alternativa credível e este Fado contemporâneo do Desporto? Enunciem, como fiz, pelo menos o Modelo de Mudança Organizacional, e as cinco Medidas de Reforma principais que adoptariam.

Porque não são capazes de as escrutinar aqui, assim, publicamente, à vista de todos?
Porque será?
Palavras, palavras… palavras leva-as o vento.

Talvez