quarta-feira, 15 de agosto de 2012

A Lázaro o que é de Lázaro (*)

Texto da autoria de Gustavo Pires, cuja autorização de publicação se agradece.

A implantação da República em Portugal havia ocorrido há pouco mais de um ano quando o Comité Organizador dos Jogos Olímpicos (JO) de Estocolmo (1912), à semelhança daquilo que fez com os demais países, convidou os portugueses a participarem endereçando um convite ao Ministério dos Estrangeiros. Este enviou uma cópia para o Ministério da Instrução Pública que, sobre o assunto, nada fez. Depois, perante a insistência de Estocolmo tudo se passou da mesma maneira. Não fossem alguns jornais, como relata “Os Sports Ilustrados” (edição de 13/1/1912), o convite para que Portugal, pela primeira vez, participasse nos JO teria ficado esquecido no meio da burocracia da administração pública e nas confusões da República.
Aos olhos do mundo, os JO eram o maior acontecimento dos tempos modernos onde as nações, de uma forma pacífica, iam medir forças através da competição desportiva. Segundo Duarte Rodrigues diretor técnico da revista “Tiro e Sport” (edição de 31/7/1912) os JO não eram um mero certame desportivo mas “um pretexto poderoso para cada povo, cada raça, poder mostrar o quilate physico e moral de que se deve exortar perante a civilisação e o progresso”. Eram um processo de rejuvenescimento das raças pelo qual todo o homem moderno se devia interessar.
Em Portugal, em finais do século XIX princípios do século XX, os jovens de uma certa burguesia citadina praticavam diversas atividades desportivas segundo o modelo inglês. Eram, “os janotinhas do passeio público” como lhes chamou José Pontes, ou os “janotas diletantes” na expressão de José Maria da Silveira. Eles “estacionavam” à frente dos café-clube, como o Sete Portas no Arco do Bandeira ou o Marrare no Chiado, pegavam touros, corriam lebres, remavam e velejavam em canoas no Tejo, eram bombeiros destemidos, dedicavam-se ao jogo do pau, à ginástica dos aparelhos, das acrobacias e dos trapézios dos voos à Léotard. Foram estes “sportsmen”, diletantes e bem aperaltados, que se moviam tão bem entre a fina flor da sociedade mas, também, no meio dos artistas dos circos Price, Diaz, e Aragon e dos saraus de ginástica no Coliseu dos Recreios que, em moldes relativamente democráticos, protagonizaram o arranque do desporto em Portugal onde competiam atletas como Francisco Lázaro provenientes de meios sociais completamente diferentes.
E, perante o desinteresse da República bem como da Sociedade Promotora da Educação Física Nacional mais interessada nas questões corporativas da ginástica sueca do que nas competições interpaíses dos JO, foi com um sentido de urgência que um grupo de dirigentes desportivos de seu nome Penha Garcia, Jayme Mauperrin Santos, António Lancastre, Carlos Bleck, Manuel Egreja, José Pontes, Armando Machado, Duarte Rodrigues, Aníbal Pinheiro, António Osório, Álvaro de Lacerda, Fernando Correia, Sá e Oliveira, Guilherme Pinto Bastos, Pinto de Miranda, Daniel Queiroz dos Santos, José Manuel da Cunha e Meneses, Pedro Del Negro, a 30 de abril de 1912, fundaram o Comité Olímpico Português. Este acontecimento que teve uma intervenção indireta do próprio Pierre de Coubertin, permitiu que um grupo de seis atletas de seu nome António Pereira, António Stromp, Armando Cortesão, Fernando Correia, Francisco Lázaro e Joaquim Vital pudesse representar Portugal nos JO que se iam realizar em Estocolmo.
Muito embora a representação nacional, como referem os jornais da época, tivesse tido uma participação meritória, ao trigésimo quilómetro da corrida da Maratona, Francisco Lázaro colapsou. Num sofrimento atroz, acabou por morrer no dia seguinte, a 15 de julho de 1912, no Hospital Serafina em Estocolmo. Esta morte foi considerada com tendo sido igual à de um qualquer soldado caído no campo de batalha.
Cem anos depois, o Comité Olímpico de Portugal (COP) insiste em comemorar o seu aniversário numa data apócrifa. Faz mal. O dia 30 de abril de 1912 é uma data sagrada. A história é aquilo que, na verdade, aconteceu e não aquilo que alguns dirigentes do COP pretendem que tivesse acontecido. A Lázaro o que é de Lázaro.

(*) A partir do livro: “Francisco Lázaro o Homem da Maratona”, Lisboa: Prime Books.

Publicado na edição do Diário de Notícias de 14/08/2012.




1 comentário:

Anónimo disse...

Quer dizer… Um Comité Olímpico que tivesse em conta a especificidade cultural e social da realidade portuguesa. Que continuasse a ser Internacional sem esquecer a memória Nacional. Isso, seria de facto, um Comité Olímpico de Portugal.

Para tal seria necessária uma outra visão do Olimpismo, e outras Pessoas a comandá-lo. Mas ninguém, desses que eram capazes, se chega à frente.

E, depois deste pedaço de Gustavo Pires, apetecia perguntar: Para quando um Museu a sério, numa parceria limpa (isto é, feita e liderada não pelos que o tentaram fazer até agora, mas feita pela nova geração, sobretudo aqueles que revelassem mérito, conhecimento e qualificação, proibindo quaisquer interferências de boys e girls da política-partidária). Uma parceria entre o Estado, o COP, e uma Autarquia; e sedeado tecnicamente na Cultura (Ministério ou Secretaria) juntando a DGP e o ICOM? Para quando?

Quando Adam Kuper escreveu em 1995 na Brunel University “Le cricket, le nationalisme et le cambrioleur” revelou igualmente essa recorrente união/tensão entre as ditas «classes sociais» (i.e, se realmente existirem), nesse caso entre as equipas dos “Ingleses, Afrikaners, e Judeus” no Transvaal Sul Africano no mesmo período de passagem do séc. XIX para o XX. Uma relação que passa, como um brisa leve e diáfana, também pelo texto de Gustavo Pires, e que, ao compararmos vários contextos históricos, se revela «uma quase-estrutura» transversal ao modo de praticar Desporto pelas sociedades humanas.
Interessante.

Talvez