O amor à camisola, ao Benfica, nem sempre foi fácil de aguentar dada a angústia sentida por nem o libertarem nem o aumentarem. Em 1969, no fim de um contrato de três anos, o desentendimento entre Eusébio e o Benfica é tornado público pela edição da revista Século Ilustrado que lhe chama O Ca$o Eu$ébio. O índice da mesma abre com o ponto “Eusébio – polémica e reivindicação”, num artigo intitulado Eusébio: “estou desiludido não voltarei a ser ingénuo”. Mas foi Silva Resende, seu advogado, quem deu o "corpo às balas" numa entrevista onde conta também as ameaças sofridas por ajudar Eusébio nesta querela:
“(...) _ Os regulamentos futebolísticos são sempre feitos sem se obter o acordo dos jogadores, aos quais não são dadas explicações. (...) Isto, porque se o jogador pretender ir para uma colectividade estrangeira só o conseguirá desde que o seu clube o permita. _ Isso quer dizer... _... que o Benfica pode pedir a quantia que muito bem entender pelo «passe» de Eusébio sem lhe dar satisfações. Dessa forma, se um clube italiano, por exemplo, oferecer 10 ou 15 mil contos (é do conhecimento geral que há quem lhe desse 20 mil) por Eusébio, este vê o seu possível contrato prejudicado, uma vez que o Benfica pode dizer simplesmente isto: «Eusébio é inegociável». Por outro lado só lhe oferecem 3 mil contos para ele continuar. Em que ficamos? Que género de moralidade é esta?
A célebre frase de Salazar nem nesta quezília é "lembrada" ou sequer alguma vez referida e, por incrível que pareça, um elogio tão bonito e tão estrondoso não teve eco em nenhuma notícia de jornal e nem sequer é digna de registo na legenda do cromo na colecção a que esta foto que se segue pertence.
Colecção de cromos Portugal no Mundial de Futebol de 1966. “121 - O Senhor Presidente do Conselho recebeu a selecção, após brilhante proeza conseguida em Inglaterra. Demorou-se a conversar com Eusébio, grande embaixador de Portugal no mais apaixonante dos Desportos”.
Mas, décadas mais tarde, Malheiro, bom leitor de lábios, sabiamente interpreta toda esta história e, no seu livro Obrigada Eusébio, escreve que Salazar o considerou património de Estado em 1962 e, dúvidas houvesse, ilustra a máxima com esta mesma foto de 1966. Malheiro, como bom gatekeeper que é, não necessita de fontes, é ele quem conta o conto, é ele quem acrescenta os pontos que quiser. Não é que Malheiro seja um criativo ou um artista mas, mutatis mutandis, pensem agora na Pietà, de Miguel Angelo, para verem como se captam aspectos intangíveis do património. Nesta obra, Cristo e Nossa Senhora são sujeitos a uma operação estética e, seguindo os preceitos da antiga Grécia, em vez de um corpo magro, fustigado e sacrificado pela tortura, temos um jovem atlético e musculado, de 33 anos, caído no colo da sua mãe que, tiradas as rugas dos seus quase 50 anos, com face muito jovem nos seus braços o carrega.
Voltando ao "tempo do Eusébio", sim, porque é neste termo que reside o modus operandi que por vezes escapa à estética biográfica, o importante é ser ele um marcador do tempo, quer seja da nossa vida pessoal quer seja da história de um povo por inteiro. E, nesse seu tempo, era Américo Tomás quem seguia os seus desafios e, também, quem apreciava por todo o lado viajar. Contrariamente, Salazar nunca se terá afastado muito do eixo Lisboa - Santa Comba Dão e, presumo, só veria no futebol o caos, a incerteza e a desordem que ele tanto se esforçava por negar quando não conseguia, por inteiro, anular. A ginástica, sim, teria a sua admiração, com uma estética simétrica, exigente na disciplina do corpo, escultora do carácter e da feição e, quando feita por grandes massas de atletas, um espectáculo digno que serve a inauguração do estádio nacional .
A ideia de património aceita-se quando tudo nele e por ele se discute. Eusébio é o caso, é o herói fundador que a televisão filmou, cujas vitórias tanto ilustram a ideia do sucesso da comunidade multi-racial e multi-continental que serve de suporte à manutenção do colonialismo como, muitos anos mais tarde, a fantasia conciliatória com esse mesmo passado obscuro. E, mal pára de jogar, Eusébio nem tem de falar porque dada a densidade da sua múltipla identidade - benfiquista, português e moçambicano - terá sempre nele e por ele muitas vozes a erguerem-se e a erguerem-no. A Eusébio basta ser e, Sendo, ele é património.
5 comentários:
Não se compreende no texto a relação entre "liberdade de interpretação" e "património".
A interpretação é função do conhecimento específico de cada um sobre a matéria (ou objecto) em causa.
Mas porquê "liberdade" e porquê "subjacente"?
Também não se compreende a alusão à "Pietà" de Michelangelo Buonarotti e às ideias conceptuais do artista.
E já agora, acrescento, a título de curiosidade, que a figura de Jesus está claramente desproporcionada face à de sua Mãe, claramente a figura principal da composição.
O comprimento do corpo de Jesus deveria ser muito maior para estar proporcionado.
Mas não vejo o que é que isto tem a ver com "património" e muito menos com "Eusébio da Silva Ferreira", sem qualquer dúvida património material e imaterial da nação portuguesa.
Os factos, contextualizados à época, são normais.
Nada de extraordinário...
A única religião que pratico (cada vez em menor escala) é o benfiquismo e a única igreja que frequento é o Estádio da Luz (também cada vez com menos frequência).Mas mesmo assim ainda fico com pele de galinha com a voz do Luís Piçarra e o Ser Benfiquista…e outras coisas que por pudor omito....tudo isto para lhe dizer que apreciei o seu artigo sobretudo porque quebra o unanimismo dos biógrafos oficiais,que têm feito uma nota a propósito da vida e da história do Eusébio, toda ela construída à volta da epopeia dos feitos desportivos e muito opaca relativamente a momentos da sua vida.
Quanto às ideias formadas ou construídas sobre os grandes desportistas, tal como sobre os grandes escritores, artistas, filósofos, cientistas, etc., que a sociedade acaba por mitificar, considero objectivos os feitos e as obras concretizadas.
A análise das personalidades é matéria complexa, sujeita a interpretações subjectivas de histórias ou factos, muitas vezes exageradas ou pouco acertadas.
Mitos são mitos.
Ora bolas! Isto para sair dos mitos e voltar à questão Eusébio património nacional. No texto faz-se a analogia entre a criação do património de estado - Eusébio - legado por Malheiro e o património legado à humanidade por Miguel Ângelo - Pietá.
De facto as imagens não são parecidas. Nem têm que ser. A questão está na forma e nos objectivos da sua criação. Da sua oportunidade e da sua aceitação colocando-as na esfera do simbólico.
Para a autora a importância de Eusébio é evidente de mais. A sua mestria e o seu percurso bastam!
Grande homenagem Professora, gostei!
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