quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Metamorfoses do desporto e os novos delegados de propaganda médica

Explicar o que é o desporto é um dos objectivos a que projecto do Museu Nacional do Desporto, anunciado pelo governo, pretende responder.
O programa museológico que levanta a pergunta não se fica por ela. Introduz à partida um certo entendimento da resposta. Mistura o desporto, com questões que são do âmbito da saúde e outras da actividade física. O que, valha a verdade que se reconheça, vem na linha da alteração de paradigma que se iniciou com a chamada lei de bases e que acolheu o entendimento prevalecente em certa comunidade académica.
Este novo paradigma, que a eclética esquerda pos-moderna acolhe com entusiasmo e pouco sentido crítico, nada tem com a velha tradição francófona do conceito de “actividade física e desportiva ou “actividade fisico-desportiva”. Estas eram designações encontradas para incluir as actividades que não sendo formalmente desportivas com elas se aparentavam (ginástica de manutenção, jogging, ioga, escalada, espeleologia, mergulho, etc )algumas que ocorriam em espaços marcadamente desportivos, tinham modos de preparação similares às práticas desportivas mas que de acordo com critérios prevalecentes à época não podiam ser classificadas como “desporto” porque a “competição” estava ausente.
A situação é hoje radicalmente diferente. Assistimos ao revisionismo do conceito –o desporto passou a incluir práticas que não eram consideradas como tal com significados e objectivos bem distintos do “rendimento” e do “resultado” e com esta vaga uma tentativa relativamente recente de reciclar o desporto através da “higienização” do corpo.
Trata-se de um fenómeno importado, com origem em meios académicos americanos que constitui um verdadeiro “higienismo de terceira geração” traduzido numa lista de “proibições” e de “factores de risco” descontextualizados dos desenvolvimentos das sociedades industriais. Vende a ilusão que cada um pode viver no corpo que escolher e ter saúde que construir. Comercializa o “exercício” e o “treino” do corpo. Se necessário a sua cirurgia. Dissemina “health centers” e “spas”.Desformaliza o modelo tradicional de desporto e dá passagem à invasão “cool”.Tudo o que mexa é desporto como tudo o que emite som é música. O desporto passou a viver o seu momento “hip-hop”. E as politicas públicas de promoção da actividade física e da saúde alargaram-se, abrigaram--se à sombra das políticas desportivas e estas, em crise de identidade, encolheram.
O desporto para quem a “saúde” foi sempre um pré-requisito( e não um objectivo )viu-se contaminado por preocupações sanitárias. E os técnicos de desporto transformaram-se numa espécie de novos delegados de propaganda médica prescrevendo as várias formas de uma vida feliz e saudável com programas “prontos a servir” de acordo com a idade, o sexo, o peso ou a altura.
Este frenesim neo-higienista é curioso. No passado a “ginástica higiénica”,mais tarde a educação física, combateram o desporto. Agora aliaram—se. A actividade física serve-se do desporto mas pouco o utiliza. Se a comparação é permitida, vive junto mas faz vida separada. É importante que o divórcio se concretize e que de cada uma das partes, desporto por um lado e actividade física por outro, não apenas façam vidas separadas como cada um trate do que lhe é próprio. E não vivam à custa um do outro. É de resto a melhor forma de se entenderem e de cada um cumprir bem o que é a sua missão. O que não impede que de quando em vez saiam juntos. Um bom exemplo: um corrida aberta a todos e que convida também as pessoas, que não podem/conseguem/ou querem a fazer o percurso, caminhando!
Enquanto este problema permaneceu circunscrito e fechado ao debate académico, às instituições universitárias e às suas diferentes “escolas” tinha pouca relevância social. A questão alterou-se quando passou para o domínio da política e daí para a governação central e autárquica. Não há agenda politica europeia que não dê crescente atenção ao tema.
O conceito de desporto é de difícil definição e a mutabilidade que historicamente o caracteriza aconselha à maior das prudências em valorações de carácter definitivo. Mas no estado actual do conhecimento é abusar das fronteiras do conceito incluir uma actividade como o andar, caminhar ou passear de bicicleta, como prática do desporto. Ou colocar a população sénior a lançar uma bolas ao e a bater palminhas e incluí-las na população desportiva. Ou trabalhar com grupos de risco de obesos, prescrever programas de exercício e contabiliza-los como praticantes desportivos.
Caminhar ou subir escadas em vez de utilizar um elevador são contributos importantes para o dispêndio energético e para a redução dos factores de risco associados à hipodinamia mas não são desporto.
Não se pense, por isso, que aumentar o número dos que caminham como actividade regular, para além das exigências do quotidiano, é aumentar a prática desportiva.
O aumento do índice de actividade física de uma população é um objectivo distinto do aumento do índice de pratica desportiva. Não sendo contraditório não é também necessariamente coincidente. Uma pessoa fisicamente activa pode ser desportivamente “passiva”. A contrária já não. Porque o aumento dos indicadores de prática desportiva é um sinal seguro do aumento da actividade física. É nas sociedades com indicadores de prática desportiva mais elevados que os níveis de sedentarismo são também mais baixos. O que reconhece a importância e insubstituível papel que o desporto tem de ter na mobilização para um estilo de vida activo. Na mobilização contra o sedentarismo.
Os programas de promoção da actividade física são importantes; os programas de promoção do desporto igualmente. Não se espere que as politicas públicas de saúde promovam o desporto. Mas devem promover a actividade física. As políticas públicas de desporto servem para promover o desporto. O desporto ao fazê-lo cria condições que permitem aumentar os hábitos de actividade física dos portugueses.
Pensar de modo distinto é baralhar conceitos, confundir objectivos e errar nas políticas.

12 comentários:

Anónimo disse...

Professor José Manuel Constantino, parabéns pelo seu texto. Com a inteligência que o caracteriza, foi o primeiro a perceber o alcance e o impacto do "Projecto e Programa do Museu". Foi para cavar distinções, discernir os tipos lógicos, e clarificar níveis de diferença que o Programa foi feito. O cérebro alcança a "compreensão", codifica os "objectos", e faz o percurso das moléculas á memória, pela capacidade de descriminar, como pode ser recentemente demostrado cientificamente pelo contributo do Prémio Nobel de Medicina de 2000. Foi esta descrição aliás que lhe valeu o Prémuio. Fico imensamente satisfeito por o Museu já estar a cumprir o objectivo a que se propõe. Este seu texto é para mim "histórico" porque foi o primeiro a abrir o verdadeiro debate, sempre inconclusivo, de "o que é o Desporto?". Se olharmos o artigo do Prof. Jorge Olímpio Bento no Jornal "A Bola" há alguns meses atrás, e o compararmos com este, perceberemos o alcance da intermediação do Museu e do seu Programa nesta questão. Mais uma vez parabéns.

Pedro Manuel Cardoso

Tiago F. Pinho disse...

Se tiver tempo e disponibilidade, gostaria de saber se considera o xadrez um desporto.

Pareceu-me que, apesar de considerar complexo definir o que é o desporto, dá a competição e a actividade física como bons parâmetros.

Há vários modelos de competição no xadrez. A actividade física, se é que existe, não é muito muscular, mas, quando muito, respiratória e cardiovascular - as alterações destes ritmos são notórios durante uma competição de xadrez.

No plano da lei (e da política desportiva?), a Federação Portuguesa de Xadrez é titular de utilidade pública desportiva.

Será o xadrez um deporto porque a lei o diz? Ou mantém essa qualidade se praticado ao abrigo de uma federação sem aquele reconhecimento legal?

obrigado pela atenção.

Anónimo disse...

Como não conheço o "Projecto e Programa do Museu", fico sem saber em que é que o texto do José Constantino se compagina com aquele.

Deve haver uma distorção entre o vocabulário do José Constantino e o do "Projecto e Programa do Museu", já que Pedro Manuel Cardoso pretende descriminar (=tirar o crime a alguém) o cérebro, apesar do brilhante trabalho que desempenha. Qualquer pretensa analogia ficou mal na foto.

O único documento a que tive acesso é este "http://ml.ci.uc.pt/mhonarchive/museum/msg01387.html" ondre, em matéria de Museologia, o autor conclui que todos os Museus estão errados, sem o provar, de acordo com o livro de estilo nacional.

A abordagem centra-se no Museu Gestual, sem se entender, porque o texto está todo adjectivado, se se destina aos surdos, ou se se trata do interaccionismo simbólico.
Não constrói... destrói.

Ou se trata de discurso enigmático ou de dissonância cognitiva.

josé manuel constantino disse...

Ao Dr.Pedro Cardoso

Felicito-o pelo seu trabalho e desejo felicidades para o projecto museológico.

Ao Kamikazeking

A resposta é claramente positiva .O xadrez é um desporto,como o bridge ou as damas.A natureza do esforço(vamos falar assim)é distinta de outras modalidades desportivas mas esse facto aliado a categorias sociais ,históricas e até organizacionais colocam o xadrez claramente como uma modalidade desportiva .O problema da passgem do "jogo" ao desporto é uma matéria que tem de ser vista com prudência porque há sociedades que "desportivizam"práticas lúdicas onde a componente motora está aparentemente ausente.Mas também sei que muitos destes critérios deixam sempre alguma coisa de fora.O caso da columbofilia,históricamente uma modalidade desportiva ou das corridas de galgos,modaliade assumida como desportiva em alguns países levanta problemas metodológicos dificeis de fundamentar.Ou no caso português aceitar como desporto o coleccionismo como fez a Confederação do Desporto de Portugal ao aceitar a filiação de uma Federação Portuguesa de Filatelia.

Anónimo disse...

já tenho uma certa "agonia" de ser do IDP,I.P.


CI

Anónimo disse...

Tive acesso ao documento do Dr. Pedro Cardoso e as hipóteses de início do trabalho parecem boas.

Em determinada altura diz que "O custo anual da programação e do funcionamento está calculado para ser 10% menor do que as receitas próprias e não necessitar do apoio do Estado (central ou local)" não se percebe se isto quer dizer que foi feito um estudo de viabilidade técnico e económico.

Se o estudo económico existe é bom conhecer para equacionar a verosimilhança do programa proposto.

É útil afirmar que ninguém está contra o Museu do Desporto. A verdade é que se fala e torna a falar do Museu.

Objectivamente o Museu não existe até hoje, 10 de Janeiro de 2009.

O sustentáculo do Museu é a Memória do Desporto. O que existe de Memória do Desporto está desgarrado, perdido e sem políticas firmes para a preservar. Esta a conclusão do debate no Panathlon em 2007.

O projecto do museu apresentado não pretende ser a política de preservação da memória porque é apenas o museu.

Veicula a ideia, que sabe errada, que a preservação é guardar tudo no museu para sugerir a rede.

É preciso trabalhar com as pessoas que viveram o desporto. Trabalhar com os colecionadores que procuram uma retribuição que pode ser tangível ou imaterial. Trabalhar com as pessoas que têm as memórias e com os fiéis depositários.

Esta é a área da preservação da memória que o documento fala pouco porque se centra no Museu do Corpo diminuindo espaço para o Museu do desporto da realidade.

Não tenho dúvidas que é fácil por os dois mundos, o corpo e o desporto, a par para benefício do desporto e das populações.

Este documento é um trabalho inicial com uma proposta de filosofia de actuação do museu nacional.

Como política falta-lhe equacionar os poderes locais e os associativos com destaque para o COP que quer fazer um Museu do Desporto sozinho.

Eu não sou a pessoa indicada para tratar da matéria da preservação da memória. Transmito as preocupações que ouvi pessoas do desporto expressar.

Elas existem no Panathlon Clube de Lisboa e fora dele e certamente se for pretensão recolher esses contributos elas estarão disponíveis.

Há resmas de economistas capazes de fazer o estudo económico respondendo ao grau de exigência que certamente a CMLisboa exige aos seus projectos e principalmente neste momento de profunda crise.

Para que o projecto não morra depois das eleições era bom avançar o mais possível em dois domínios.
O primeiro é a definição de uma política de preservação da memória.
O segundo é o Museu do Desporto
reequacionando o do COP.

Estas são algumas ideias que espero ajudem a dar força ao projecto, como penso que todos querem sem facciosismos e de modo integrado com todos os parceiros.

Anónimo disse...

Na semana passada o Expresso trouxe a questão do património 30% classificado pela UNESCO estava em ruínas.

O Desporto não tem um número das suas ruínas porque não tem política que catalogue e classifique.

A privatização do museu através da antropologia é uma hipótese como me sugere um amigo.

A venda da medida do corpo será um achado na falta de desporto português para as pessoas consumirem.
Outra questão é a predisposição da população em comprar a medida do seu corpo numa altura em que a saúde já leva "barba e cabelo" para análises, médicos, medicamentos, hospitalizações, operações e preventivos.
É para estas coisas que são feitos estudos ao consumo e económicos à sua produção.

De qualquer forma deverá ser dito ao potencial investidor privado ou autárquico, do museu do desporto, proposto pelo estudo do Dr. Pedro Cardoso que o Museu do Oriente e o CCB dão entradas gratas aos visitantes.

Este cuidado é importante para o potencial investidor privado ou autárquico não ficar depois com a criança sem dinheiro para a sustentar porque a população afinal tem outras preocupações.

Será sempre possível encontrar soluções como em Espanha onde 2% das obras públicas são investidas na salvaguarda do património e encontrar uma percentagem para o desporto.

Mas isto estará dependente de opções da cultura nacional.

A questão é que ou estas matérias económicas já estarão estudadas tal como as antropológicas parecem estar, como assegura o seu autor, ou então o projecto com a crise é um novo bom projecto para o museu do desporto português sedeado no município de Lisboa.

Por último isto da memória do desporto tem que se lhe diga.
Ou pelo contrário, não tem nada que se lhe diga, porque a participação pública não entusiasma.

Sem "opinion makers" existirão consumidores?

É como o candidato da mais importante organização desportiva. Vai ser eleito democraticamente mas não existe uma alma a dar a cara pela sua eleição perante a sociedade e o país.

Estranha democracia e pobre do dinheiro público que lhe está entregue.

As matérias parecem distintas mas são próximas.

Volto-vos a recordar que eu só falo destas coisas porque tenho a certeza que se o mercado do desporto fosse o dobro passando de 2 mil milhões de euros para 4 mil milhões de euros europeus as hipóteses de criação de trabalho e de aumento do produto de todos os agentes desportivos cresceria.

É um mero desejo egoísta da minha parte bem sei. Mas é mais forte do que eu e ainda por cima teimo em ler matérias económicas que mo recordam constantemente.

Felizmente que vocês não têm estes pensamentos económico-desportivos que me apoquentam tanto!

Anónimo disse...

"O aumento do índice de actividade física de uma população é um objectivo distinto do aumento do índice de pratica desportiva"

Caro Professor Constantino,
esta sua frase resume quanto a mim a essência do problema. Atrevo-me a complementar com a diferença na avaliação de resultados e com a necessidade de focalização nas áreas de competência:

- a redução dos níveis de sedentarismo ou de obesidade dificilmente são resultados imputados às policas desportivas, o que não se opõe a uma visão global que compreende e integra o valioso contributo do desporto para este fim;

- as politicas, os profissionais, e as entidades da área da saúde e desporto têm de se centrar no seu papel perante o problema do sedentarismo e não sobrepor-se.

A saúde pública está centrada na redução de factores de risco e a sua meta central é que a população alcance os valores minimos de AF para a saúde. E não distingue: tanto é boa a AF que fazemos no trabalho, nas deslocações ou no lazer.

O Desporto centra-se no aumento e preservação dos praticantes desportivos ao longo da vida (federados e não federados!) e com o aumento/melhoria das oportunidades/condições de prática. (Comprometo-me a detalhar esta frase num "Post" futuro...) . E isto contribui muitissimo para reduzir a inactividade física.

Conclusão:
-subir escadas, andar a pé e passear o cão.... Saúde!
- correr, nadar, jogar, exercitar... Desporto!
- Promover eficazmente a redução do sedentarismo: Saúde + Desporto!

Carla Ribeiro

Anónimo disse...

Boa vírgula Carla ponto de exclamação

josé manuel constantino disse...

"As politicas, os profissionais, e as entidades da área da saúde e desporto têm de se centrar no seu papel perante o problema do sedentarismo e não sobrepor-se".A Carla resume bem a questão depois de ter acentuado o que cabe a cada uma das respectivas areas.O que o meu post chama a atenção é para a crescente promoção de programas de actividades físicas por parte das politicas desportivas e não de programas de promoção desportiva como é sua missão e vocação.

Anónimo disse...

Carla

Também gostei da diferença entre índice de actividade física e índice de prática desportiva.

Agora pergunto se é correcto eu dizer:

índice de prática física e índice de actividade desportiva

E ainda, se actividade ou prática desportiva não será uma actividade ou prática física.

Anónimo disse...

Constantino escreveu, no final do post:

"Pensar de modo distinto é baralhar conceitos, confundir objectivos e errar nas políticas."

A Carla pensa como o Constantino.

Eu adoro as pessoas que têm conceitos estruturados e indestrutíveis.

O Constantino e a Carla escrevem bem, mas estão errados porque os conceitos que não podem ser falseáveis (Karl Popper) não são verdadeiros.

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