quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Estado, Governo e FPF: Ensaio de entendimento "in Profundis" Parte I

Mais um texto de José Pinto Correia que a Colectividade Desportiva agradece.

“A sociedade portuguesa projecta o que não é, para não ter de reconhecer o que é” (Joaquim Aguiar, “Fim das Ilusões, Ilusões do Fim: 1985-2005”)

Aquilo a que se tem vindo a assistir em Portugal nas relações entre o Governo e o Estado, de um lado, e a Federação Portuguesa de Futebol (FPF), do outro, ininterruptamente desde há dois anos, na sequência da publicação da nova legislação sobre as federações desportivas, tem de ser entendido à luz da substância que determina a organização da vida institucional, económica, social e cultural da sociedade portuguesa.

Vejamos então um pouco mais aprofundadamente o entendimento que pode estar subjacente em toda esta luta incessante e por vezes quase inexplicável, movendo actores dos mais poderosos e diversos em vários níveis e instâncias, que tem vindo a ser travada em torno da nova orgânica estatutária da FPF.

Max Weber distinguia três formas de dominação e de configuração do poder político: a forma burocrático-racional, a forma carismática e a forma patrimonialista.

O patrimonialismo tradicionalmente “significa, antes do mais, que os postos governamentais se originam na administração da casa do rei. (…) O rei concede privilégios na base das obrigações que impõe (…) Os funcionários, por sua vez, consideram o seu trabalho de administração para o rei como um serviço pessoal baseado nos seus deveres de obediência e de respeito” (citado, em adaptação do original de Reinhard Bendix “Max Weber – An Intellectual Biography”, por Joaquim Aguiar).

No patrimonialismo existe um centro de poder habitado por elites centrais e uma rede de dependências ou de relações clientelares, os denominados centros patrimoniais, que dão a correspondente estruturação à configuração económica, social e regional. No patrimonialismo impera uma “estruturação política de relações clientelares, de dependências recíprocas, de redes de interesses e de fidelidades obtidas em função de contrapartidas, de garantias de protecção e de satisfação de expectativas distributivas”.

A sociedade portuguesa é ainda hoje uma sociedade de tipo maioritariamente patrimonialista, mais exactamente neopatrimonialista, na qual o outrora papel determinante do suserano foi substituído pelo moderno do Estado. Neste tipo de dominância sociopolítica não imperam as relações burocrático-racionais, nem as exigências do tratamento indiferenciado, e as estruturas de poder são frágeis e baseadas em lógicas “ad hoc” de favorecimentos particulares e de gestão administrativa pouco independente e profissionalizada. Os respectivos centros de poder e patrimoniais estabelecem uma configuração piramidal com as elites centrais a acumularem os factores e sinais básicos do poder e a estabelecerem o predomínio das relações de tipo clientelar e a formação de grupos corporativos. “A estruturação do neopatrimonialismo estabelece uma hierarquização em pirâmide, mas em cada nível de estruturação reproduz-se a mesma articulação entre elites centrais e periferias sociais, unidas por uma relação de dependência recíproca”.

Os tipos de políticas que as sociedades patrimonialistas desenvolvem tendem a ser paternalistas, distributivas, acumulativas (concentração do poder no centro) e extractivas (de colheita de impostos), onde o poder central do Estado exerce uma absoluta predominância, acumula parte substancial dos recursos da sociedade e fica com o dever de satisfazer parcela substancial das respectivas necessidades.

O Estado é o soberano todo-poderoso, detentor de um poder centralizado, organizador das relações de dependência dos circuitos distributivos e que determina as legitimidades e os mecanismos de satisfação das necessidades sociais. Predominam as orientações particulares (opostas às de generalidade do tipo da dominação racional-burocráticas) e tendem a solucionar-se as pretensões dos grupos mais próximos do poder ou de quem os agentes do poder estejam mais dependentes.

O Estado assume como se referiu um predomínio essencial na formação das estruturas sociais, económicas e culturais, e constitui-se num pólo inquestionável de referência para todas as agregações periféricas de actores. Toda a sociedade olha para o Estado, reverencia o seu poder inigualável, e as respectivas clientelas e corporações de interesses transmitem-lhes as suas expectativas e necessidades. Por isso não é de estranhar que “Na forma de dominação patrimonialista, o excesso de centralização de poderes, de recursos e de funções no Estado conduz a uma sobrecarga de pressões e de solicitações por parte dos grupos sociais organizados, passando-se da regulação horizontal para uma relação vertical onde ficará a perder quem não expressar com mais insistência os seus interesses”.

E fora do Estado central, nas organizações e centros patrimoniais dependentes do poder central máximo, tudo se organiza e legitima com as mesmas lógicas e colusões de interesses e particularismos – com o mesmo clientelismo e favoritismos personalizados, portanto.

Neste tipo de dominação patrimonialista “Estabelece-se uma relação de circularidade entre duas estruturas frágeis, a do poder e a dos centros patrimoniais, onde nenhuma delas se pode autonomizar da outra”. Nem as periferias patrimoniais podem afastar-se do poder central, nem este último tem interesses em que aquelas dele se afastem; e isto tanto em matéria de recursos como de doutrina/ideologia. Se o centro for passivo do ponto de vista da produção de quadros de referência ideológicos, também os centros patrimoniais dependentes o serão, tanto objectivamente como por táctica de sobrevivência das suas bases de relações de dependência recíproca.

Por isso mesmo, o potencial modernizador das estruturas patrimonialistas é muito fraco e as narrativas que estruturam e orientam o poder e os centros patrimoniais são incipientes, evoluem dificilmente, tendem a reproduzir-se longamente, e são genericamente insusceptíveis de se recriarem. Vulgarmente acontecerá, por consequência, inexistirem quadros estratégicos de orientação política e eles provavelmente nunca vão transparecer e emergir nos respectivos meandros de poder central e nos centros patrimoniais que daquele são necessariamente dependentes.

Não podem esperar-se grandes exercícios de discussão e de elaboração doutrinários ou ideológicos de mudança e renovação do tecido sociopolítico, porque por via de regra o potencial de modernização e mudança é muito deficiente. Por isso mesmo, “Em geral, este sistema de políticas e de racionalidades produz nas sociedades neopatrimonialistas estratégias de fraco potencial modernizador”.

No sistema patrimonialista as “estruturas institucionais são fracas (acumulam poder, mas a necessidade de gerir equilíbrios limita o uso desses poderes) e frágeis (o estatuto de cooptados de muitos dos seus elementos e o seu envolvimento nas relações de conflitualidade das elites centrais limitam o espaço de manobra autónomo)”. Existem, assim, tendências de conservadorismo e de inacção que vão perpetuando as estruturas básicas patrimonialistas e os seus principais actores. Nem as lideranças se renovam facilmente, pelo contrário tendem a manter-se longamente no poder dos centros patrimoniais dependentes do poder central (vide Estado), nem se apoiam em quadros de referência estratégica que possibilitem desenvolvimentos prospectivos e sensíveis.

(A Continuar)

3 comentários:

Gaspar disse...

Antes de mais, agradecer o enquadramento que foi feito pelo prof. Meirim. Em meia dúzia de parágrafos, qualquer pessoa consegue perceber o funcionamento geral de um país de 10 milhões de habitantes.

Segundo e pegando mais no titulo do "post" do que no conteúdo (introdutório para outros), deixo duas considerações, que me parecem importantes para análises futuras:

1. A FPF é neste momento a principal instituição (e mais poderosa de todas) em incumprimento para com a nova lei, sabendo nós todos que a lei foi elaborada tal como está para corresponder às expectativas da FPF, tendo a grande maioria das outras federações manifestado o seu desacordo para tal alteração (pelo menos nestes moldes). Ou será que a lei foi alterada, não em função das necessidades da FPF, mas sim de alguns interesses camuflados de FPF?

2. Comparar o comportamento do estado para com problemas de federações desportivas nacionais. A sua postura, intervenção e respectivas consequências. Podemos pegar em três exemplos...
a)Federação Portuguesa de Futebol
b)Federação Portuguesa de Vela
c)Federação Portuguesa de Trampolins e Desportos Acrobáticos

Cumprimentos,

Anónimo disse...

O Gaspar poderia explicar o que aconteceu em cada uma das federações. Pela minha parte desconheço-o e gostaria de compreender o sentido das suas palavras.

Anónimo disse...

O Gaspar poderia também acrescentar outras federações, em relação às quais houve recentemente cancelamento do estatuto de utilidade pública desportiva:

a) Federação de Budo;
b) Federação de Hovercraft;
c) Federação de Ski Náutico.

A estas 3 federações e à de Trampolins, foi cancelado o estatuto da upd; às federações de vela e de futebol apenas foram suspensos os respectivos estatutos da upd.