terça-feira, 8 de março de 2011

Dia da Mulher, uma história de relações

Hoje é Dia da Mulher e a história das mulheres é uma história de relações, de relações de género, de relações de produção, de relações familiares, de relações institucionais, de relações de poder entre todas estas relações. Acabei de ler um livro de David Lodge, um homem que escreve um romance no qual trata este emaranhado de relações através de um argumento, que tem tanto de hilariante e cómico como de cínico e gozão, no qual explora o encontro forçado de uma feminista com um gestor de uma fábrica numa pequena cidade inglesa, nos idos anos 90.

Só David Lodge para ver nas chaminés das fábricas os símbolos fálicos do capitalismo industrial que, nos anos de pujança, proliferaram e entraram céu adentro. Só Lodge para colocar uma feminista, professora universitária de literatura, a viver um dia por semana numa dessas fábricas que nem sabe bem onde ficam e que, desorientada na rede viária urbana e não querendo chegar atrasada no 1º dia, olha em volta em busca da tal chaminé esquecendo que a fonte de energia se alterou e, com ela, o símbolo também se quedou. Lodge coloca-a perante o hiato insanável entre os muitos homens que dia a dia lidam com máquinas sujas e barulhentas e uns poucos que, nos escritórios de ar condicionado, norteiam estratégias com vista à redução de custos de modo a ganhar a competição face a outros sectores de idêntica produção para, deste modo, manter o emprego de todos, ou então não. Sim porque a aquisição de novas máquinas, como ela ingenuamente dará conta, procura reduzir o número de homens necessário ao seu manuseamento e, com isso, as despesas.

Só Lodge para colocar a fábrica face à universidade, a produção de objectos face à produção de ideias, a objectividade de uns face à subjectividade de outros. E quando chega a vez do gestor da fábrica viver um dia por semana na Universidade então sim a questão da utilidade do saber académico toma acuidade e, aos seus olhos, tudo é estranho, para não dizer improdutivo, desde a colegialidade na tomada de decisões até ao tempo gasto em conversa na sala dos professores, para não falar nas discussões de gabinete nas quais professora e alunos debatem, durante horas, produções de significado de textos escritos no início do século passado. O sistema baralha-o e o director, meio surdo, também não o elucida do paradoxo que ali se vive: ela é a professora que mais alunos tem e mais livros escreve e que, no fim do ano lectivo, vai para a rua porque há excedente e ela não tem "vínculo". Afinal o que é que a universidade produz e como é que se avalia essa produção? É este pragmatismo fabril que chega à universidade inglesa nos anos 90, trazido pelas reformas da Srª Tactcher, que hoje aplicamos na academia sem grandes alardes.

Lodge diverte-se e diverte-nos a explorar nas relações de género as relações de produção, com as hierarquias perante a natureza do trabalho, as relações familiares, com a diferença entre as gerações, as relações orgânicas institucionais, com a academia a ensinar literatura a alunos enfastiados e a fábrica a carburar graças à força do trabalho de emigrantes asiáticos.

E agora perguntam todos, que tem Lodge a ver com o desporto? Nada e tudo. Nada porque a obra se chama "Um almoço nunca é de graça", i.e., alguém tem sempre que o pagar, uma alusão ao custo benefício, à dávida que nunca é gratuita e requer retribuição! Tudo porque estamos no território das relações de troca e também da competição.

Concretamente, na obra a prática desportiva entra no quotidiano dos personagens muito discretamente. O facto do desporto não ser o palco da luta indica já um outro tipo de relação que, no presente, com o corpo establece. A professora tem a prática desportiva entranhada na rotina e, não obstante a sua posição precária na universidade e a sua baixa remuneração, não deixa de ir ao health club jogar com a sua parceira de squash, com quem também faz sauna para relaxar da intensidade do exercício e com quem desabafa as agruras vividas. Para a professora feminista o corpo é central na sua preocupação porque é um terreno ideológico de lutas pela indepêndencia, nomeadamente sexual, podendo até tornar-se um problema semiótico quando se trata de vesti-lo e, por isso, se demora na selecção da roupa para a sua primeira visita à fábrica.

Para a mulher do gestor, doméstica que cuida da casa a rigor e dos filhos com primor, um trabalho demorado que levará a obra inteira para finalmente ser por todos valorizado, a idade do corpo mede-se na consistência do redondo das ancas e o exercício físico entra na sua vida por reacção ao alheamento sexual do marido. É ela quem compra a bicicleta de interior e se fecha num quarto iludida, segundo o marido, pelas receitas das revistas e magazines que, digo eu, mostram corpos ideais e felizes, supostamente, depois de sujeitos a umas horas de exercício, a umas dietas de toranja e, ainda, uns depurativos feitos de flores decorativas (este último ingrediente escutei num anúncio da rádio e adorei). É nesta mulher que recai toda a obsessão moderna da estética do corpo, quer a da gordura que com o tempo se acumula, quer a da cor leitosa dada pela genética e pela a invernia. É também esta mulher, que compra a máquina solar, a mãe de uma filha para quem o corpo é um panfleto no qual se inscreve a sua identidade por inteiro. Sobre esta filha pouco sabemos e, para além das suas dúvidas sobre o que fazer à vida ou aos estudos, o texto sobra na descrição sobre o seu vestuário negro e imagino também que trata o cabelo como uma onda paralisada por um flash fotográfico.

É com estes personagens de ficção que David Lodge ajuíza sobre o grande emaranhado de relações de poder que caracterizam a nossa vida quotidiana. É neste dia de Carnaval - um dia de inversão do poder por excelência - que, por ironia, também se celebra, e celebro, o Dia da Mulher.

14 comentários:

Joana Capucho disse...

ó(p)timo texto que dá vontade de ler o livro! O dia da Mulher é que me recuso a celebrar... manias.

josé manuel constantino disse...

Bem vinda a este espaço.E não poderia começar melhor.Excelente texto!

Blog Spin disse...

"Um almoço nunca é de Graça" é um livro excelente, já o li à uns anos e não o esqueci...recomendo também "A Terapia" e "A Troca" do mesmo autor...memoráveis! David Lodge ensina-nos mais sobre as relações humanas do que o que está à vista...
obrigado por me recordar o livro!

joão boaventura disse...

A este propósito oportuna a leitura de As avestruzes,sobre o quadro, com o mesmo nome, de Paula Rego.

Ana Santos disse...

Uma jovem amiga escreveu-me dizendo o seguinte "A existência do Dia da Mulher faz-nos parecer menos emancipadas e mais próximas do raio de um animal, ou de uma árvore. -.- "
Já estou como o Sherlock Holmes "the significance lies in the dog that does not bark"

(A todos os comentadores,obrigada pelas sugestões)

Anónimo disse...

Pois eu sou homem e discordo da visão de quem não quer celebrar o dia da Mulher... não é por celebrarem a vossa existência que são menos, nem coitadinhas... as mulheres já foram mto mal tratadas no passado, mas lutaram, ganharam o seu lugar e como tal conquistaram o seu direito a terem 1 dia dedicado a elas...é mérito não é paternalismo!... quem o celebra com paternalismo é pobre de espírito... quem nunca sentiu na pele a discriminação sexual, pelo menos que respeite as que um dia o sentiram e que agora educam os filhos, filhas e patrões a não fazerem o mesmo... talvez um dia o homem ganhe tb esse dia, espero eu, pois actualmente já me parece merecido!... e eu como vou celebrar sem problemas a minha existência masculina, porque não é nada de mais...é só 1 simples festejo e não desrespeita ninguém!

Armando Inocentes disse...

Óptimo texto...

e penso que não é demais recordar o que diz o anónimo anterior!

Um exemplo: Catherine Moyon de Baecque, abusada sexualmente pelos seus colegas masculinos da equipa de França durante um estágio organizado pela federação de atletismo em 1991, o que é descrito pela própria em “La Medaille et son Revers”, Paris, Albin Michel, 1997.


Já que estamos numa de livros...

joão boaventura disse...

Ainda a este propósito ler esta síntese neste blog, e, de caminho esta singela Homenagem à Mulher, embora já fora de tempo, mas a todo o tempo o tempo chega.

joão boaventura disse...

Para finalizar excertos de música da Renascença (1551) considerando que todos os anos assistimos ao Renascimenbto do Dia da Mulher para que a memória não se apague e o reconhecimento que lhe é devido, por mérito, não se dilua no esquecimento.

Maria José Carvalho disse...

Para a Ana Santos e para o homens com nome e até para o anónimo:

Bonito texto! Fico contente pela nossa "equipa" estar mais "forte".

Como é lindo ler os escritos dos homens que pensam, (na minha perspetiva de mulher que já sentiu inúmeras vezes, "na pele e no coração", discriminações absurdas e obscenas) melhor do que muitas mulheres e interpretam de forma tão clarividente a realidade.

Vivam as mulheres que gostam de viver na procura constante pela felicidade junto de outras mulheres (lembro-me sempre das sufragistas e de muitas outras que lhes seguiram) e de homens esclarecidas/os!
Mas vivam também os homens!

Vejam, se puderem:

http://www.leechalmers.com/2011/03/08/are-we-equals/


http://www.youtube.com/watch?v=fRi4AD3TT2E&feature=related


Por fim,desculpem este comentário no mês de Março, mas não passará disso mesmo e foi inevitável. Continuarei a ler atentamente o que se passa na coletividade desportiva.

Até ao meu regresso, saudações portuenses!

Ana Santos disse...

Conheço estas mulheres que manifestaram "resistência" em festejar o Dia da Mulher, entendo os motivos e, mais, sou fã de ambas porque no dia a dia contribuem com o seu trabalho, atitudes e sentido de humor para acabar com a desigualdade baseada na diferença (seja ela de género, de classe ou de outra natureza ainda mais "esquiso")!

MIGUEL BETTENCOURT NEVES disse...

O anónimo sou eu...para clarificar!

custódia disse...

Não sabia que a menina filipa se dedicava à escrita. Soube tarde mas ainda a tempo de a convidar para umas parcerias. Gostei do que li: há fluência o que dá vontade de "cuscar" o que escreve o sr Lodge e isso é muito bom para quem escreve e para quem lê. Benditam sejam as mulheres no seu dia e em todos os outros!

custódia disse...

Gostei de saber que escrevias. Será veia de família??... Seja o que for que esteja por aí ainda bem que a uma Mulher chamada Ana ( a minha Filipa) me atiçou a vontade de "cuscar" o que escreve um tal de Sr. Lodge. Talvez não tenha sido apenas a mim, o que é bom para quem escreve e vê(mesmo que por este meio) o seu universo de leitores potencialmente alargado.