O governo não procedeu a qualquer alteração dos valores que determinam os procedimentos na aquisição de bens e serviço públicos. Limitou-se a alterar os montantes de quem pode autorizar a despesa na celebração de contratos públicos. O que são coisas substancialmente diferentes. O secretário-geral do PSD levou o fim-de-semana a afirmar que a alteração efectuada era para subtrair a aquisição de bens e serviços às regras do concurso público a favor do ajuste directo. Pura ignorância e demagogia barata. Num registo, de resto, que lhe não é incomum. E que o leva a falar de tudo e mais alguma coisa incluindo o que não conhece. E quem assim procede não está em condições de receber confiança para o exercício de funções públicas. Menos ainda de ser porta-voz de um partido que aspira a sê-lo.
O Tribunal Arbitral do Desporto (TAS) sobre o “caso Carlos Queiroz” anulou a decisão de uma instância administrativa nacional. Neste caso, como em tantos outros, não é a primeira vez que uma instância de recurso aprecia os mesmos factos de modo distinto das decisões das instâncias primárias. Assim ocorreu com a Adop que avocou e alterou a decisão do Conselho de Justiça da FPF.E agora com o TAS que alterou a decisão da Adop. O caso só é diferente porque houve uma excepcionalidade: uma clara e indisfarçável politização e governamentalização da decisão nacional. Dispensável e a todos os títulos injustificável. Não vale a pena perder muito tempo com o assunto. Apenas dizer que a um responsável político cabe garantir que as instâncias administrativas cumpram as suas obrigações no âmbito das competências que lhes estão atribuídas. Não lhe cabe interferir. Menos ainda pronunciar-se publicamente sobre o conteúdo dessas decisões. È dos livros. E da elegância e cortesia públicas. Coisa que o titular do cargo tem, manifestamente, dificuldade em aceitar e respeitar.
Estes dois exemplos, recentes, ilustram o drama do país: a ignorância e o atrevimento. A ausência de recato e de prudência. Que não são um mal localizado em este ou aquele agente político. Mas um comportamento transversal. E, mais grave que isso, incensurável e portanto legitimado. Imaginar que os problemas do país se resolvem através do rotativismo partidário é ignorar que muitos dos nossos problemas são um pouco de tudo isto: vaidade, ignorância e abuso do poder. Que não é doença de uns e imunitário para outros.
A entropia para que o regime caminha decorre da mesma ausência de valores, do mesmo modo de gerir a coisa pública, dos mesmos truques comunicacionais, do mesmo autoritarismo, da mesma indisponibilidade para rupturas com este estado de coisas. È pura invenção dizer-se que entre os partidos do poder há divergência estratégica ou confronto ideológico. Ou que o modelo de governação do PS é pior/melhor que o do PSD. Ou que uns defendem o estado social que outros querem acabar. Enganam-se os que assim pensam. Nem PEC’s a mais ,nem PEC’S a menos O que existe é luta pelo poder. O que é bem diferente. E vale tudo. Incluindo a mentira e o autoritarismo.
Não há sociedades puras. Em todas democracias existem patologias. O que as diferencia é o modo como são tratadas. A incompetência e o abuso são letais para a saúde democrática. Lesam o bem mais precioso que é o da confiança entre representantes e representados. E numa democracia em que quase tudo se joga no espaço comunicacional o que se diz e como se diz é vital. E aí não basta censurar os órgãos de comunicação social. Porque muita do fogo que ateiam tem lenha que lhes é colocada à disposição por agentes e actores políticos e respectivas assessorias. E portanto não se podem depois queixar. Nem da comunicação social. Nem dos cidadãos.
8 comentários:
Do texto de JMC, com o qual concordo na íntegra, permito-me salientar aquilo que me parece mais essencial:
O que temos por cá é um sério problema de regime político.
Uma partidocracia vergonhosa que anda a enganar o cidadão comum, sem que apareça uma alternativa credível.
O vem aí é mais do mesmo: mudar as moscas.
Nem uma única ideia de como mudar radicalmente este país, nos hábitos e costumes.
É só corrida ao tacho e satisfação de clientelas.
O que nos espera nas próximas semanas é um eleitoralismo levado ao extremo.
Política estéril que aproveita a uns tantos.
O pessoal já percebeu há muito como se safar: é só estar do lado de dentro do regime.
Continuemos, pois...
Caro JM Constantino,
Alterar os montantes em que é permitido o ajuste directo (e a alteração que foi não se resume a meia dúzia de euros) é, na prática, substrair contratos que, de outra forma, seriam por concurso público.
Dir-me-á que nada de fundamental se alterou e poderia até concordar (sendo certo que se nos concursos públicos é o que é...em ajuste directo...) mas há uma questão que se vem tornando cada vez mais fundamental: à mulher de César não basta ser séria, tem de parecer séria, também.
Seria este o momento para a alteração? Mais do que o momento político, o momento económico e financeiro? Não, isso não foi de certeza.
Quanto ao caso do TAS, se bem percebi o que tenho lido, o tipo do ADoP (cujo nome não me lembro) foi ao TAS dizer, expressamente, que o Carlos Queiroz não impediu ou dificultou nada.
É ridículo e terceiro mundista, como vem sendo habitual.
Ctos.
Caro Kaiser
Com o devido respeito não tem razão. Não houve qualquer alteração aos montantes em que é permitido o ajuste directo. Vamos simplificar. As modalidades de contratação pública supõem dois grandes tipos de procedimento: ajuste directo e concurso público(deixemos as restantes modalidades para não complicar).A opção por uma outra modalidade depende do valor da despesa. E da entidade pública adjudicante Não houve qualquer alteração sobre estas matérias. O que estava continua a estar. O que houve - e pode-se discutir a oportunidade, mas a questão é irrelevante - foi uma alteração aos montantes de quem pode autorizar a despesa De quem tem o poder de decisão administrativa de contratar. Que é um acto prévio ao procedimento de contratação e independente da natureza do procedimento. Uma coisa é autorização da despesa ; outra coisa é a modalidade de contratação. Ora o valor que estava sujeito a ajuste directo continua a estar; o mesmo sucedendo relativamente aos concursos públicos.
No caso TAS limito-me a uma apreciação genérica e ao comportamento do responsável político. Não comento publicamente a substância do problema.
Obrigado pelo seu comentário
Caro Constantino
Esta flor à beira mar plantada como se designa o antológico Portugal, está a transformar-se num portentoso Grito de Alma, mas o panorama deste país está brilhantemente sintetizado nesta abrangente exposição, do Bastonário da Ordem dos Advogados.
Como dizia um antigo deputado do vintismo, “nunca aprendemos”, ou aplicando a expressão de António Vitorino, com o seu “habituem-se”, ao dirigir-se à comunicação social.
O que se passa no norte de África e no Médio Oriente, é a tradução da quebra do “habituem-se”, e o sinal de que afinal alguns "aprenderam", mas os portugueses são mansos como manda o Evangelho.
Um abraço
Ao países periféricos – periféricos significa longe da realidade – permanecem na Linha da Frente das dívidas acumuladas e aumentadas porque, Afinal de Contas, contas não se fazem, ou fazem-se para as tornar invisíveis. Simplesmente não há mágica que as consigam esconder.
Caro João Boaventura:
Totalmente de acordo com tudo o que escreveu e reproduz no seu texto.
Parabéns pela lucidez!
Por vezes neste blog vivem-se momentos excepcionais.
O post de JM Constantino revela uma análise bastante objectiva e saliento 2 pontos:
1 - (...) o drama deste país: a ignorância e o atrevimento. A ausência de recato e de prudência. Que não são um mal localizado em este ou aquele agente político. Mas um comportamento transversal.
(Permita-me discordar JM Constantino, mas isto já não é um drama, é a normalidade...)
2 - A entropia para que o regime caminha decorre da mesma ausência de valores, do mesmo modo de gerir a coisa pública, dos mesmos truques comunicacionais, do mesmo autoritarismo, (...).
(Mais uma vez discordo, se me permite, mas o regime já atingiu o grau máximo de entropia, não caminha para ele... agora o pessimista sou eu!)
Por outro lado, quero saudar os comentários de Luís Leite e de João Boaventura (os comentários não, os seus autores!).
Caro João Boaventura:
Só faltou acrescentar que até já houve um político que ficou famoso porque descobriu que "o povo é sereno"...
Mansos e serenos significa submissos e subservientes - e depois admiram-se que alguns jovens que até sabem pensar saiam para a rua!
Um abraço
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