terça-feira, 15 de março de 2011

O desporto pode esperar

Nos anos da minha formação em educação física só tive um par de sapatilhas.Que na altura chamávamos de ténis. Umas Sanjo. E um fato de treino. Sem marca. Feito à medida e vendido na cantina do INEF.O primeiro fato de treino de “marca” só o comprei quando comecei a trabalhar numa escola. E as primeiras “adidas”foi a prenda de uma viagem a Andorra. Paga a alimentação na cantina e o alojamento no lar dos estudantes tinha por mês 30 escudos algo equivalente aos actuais 15 cêntimos. O que poupava era para comprar livros e ir ao fim-de-semana ao cinema ou ao teatro. O que já era um enorme avanço em relação aos meus pais. Onde não houve estudos, livros, cinema ou teatro. Nem sequer telefone ou televisão em casa. Mas havia algo em comum: a luta pela liberdade. E a revolta à injustiça.
Em Abril de 1974 não imaginava que havia tantos portugueses contra o regime. Recordava as dificuldades tantas vezes sentidas quer na luta estudantil, quer na luta laboral para a mobilização das pessoas. Conhecia o trabalho clandestino e, muitas vezes, a falta de apoio daqueles que supostamente seriam os beneficiários da queda da ditadura. E ouvia o que se dizia em relação a algumas iniciativas de luta armada. E essa surpresa transporto-a até hoje. A mudança rápida das circunstâncias muda radicalmente também as pessoas.
Em 24 de Abril 74 eram poucos os que se revoltavam. Mas um dia depois a surpresa era a de haver tantos revoltados. E meses depois era quase tudo revolucionário. Socialista, marxista e social revolucionário. O PS descia a avenida a gritar ”partido socialista, partido marxista”.E a JSD fazia o seu congresso com a parede ostentando as fotografias de Marx, Bernstein e António Sérgio. Todos queriam o socialismo. Como passagem para o comunismo para uns (PCP), personalista para outros (PSD) e em liberdade para outros ainda (PS). E à esquerda da esquerda a coisa ainda fiava mais fino. Eram tempos interessantes. Gente que queria mudar o mundo.Com muita generosidade e idealismo à mistura. Os tempos mudaram. Antes, tudo parecia claro. Hoje tudo é confuso. E o cepticismo tomou conta das nossas vidas. Hoje temos gente enjoativa que quer salvar o país. Dando cabo da vida aos portugueses. Eu, os meus filhos, temos vários pares de sapatos de desporto.E fatos de treino. E telemóveis. E computadores. E muita net. E muito consumo prescindível. Temos liberdade. Mas o futuro é incerto. Talvez tão incerto como nunca o foi. E, pela primeira vez, sentimos que amanhã vai ser pior que hoje.
Quem hoje está à rasca não é apenas a geração jovem, urbana, escolarizada e chique. Somos todos. E são, acima de todos nós, os reformados, os pensionistas e demais idosos com uma vida de trabalho, muitos deles com um historial de privações, que subsistem com baixas reformas, com acentuada degradação das suas condições de vida e sem qualquer expectativa de melhoria nos curtos anos de vida que ainda podem ter.E os desempregados. E de quem uma esquerda instalada e snob se esqueceu.
O que se assistiu no passado sábado foi mais do que um manifestação contra o governo. Foi uma manifestação contra o situacionismo partidário que nos conduziu a este estado de coisas. De gente, de todas as idades, que está farta. Por boas e más razões. Mas onde já não há pachorra para aturar os protagonistas habituais. Bem sei que o que desceu à rua não é, nem tem, qualquer projecto alternativo. Mas desceu para dizer basta!!! De um modo tão significativo que hoje, neste habitual espaço de comentário, o desporto pode esperar.

4 comentários:

Luís Leite disse...

Não posso estar mais de acordo.

Armando Inocentes disse...

Caro José Manuel Constantino:

Todos conhecemos a situação económica actual, e para além disso, todos a sentimos! Penso ser a mesma fruto de uma gestão política dos nossos políticos...

Em 1964 ou 65 o meu Pai,funcionário público, após muitas economias, comprou um Ford Anglia por 65.000$00 e ganhava 8.000$00 por mês, o que quer dizer que com o seu salário de 8 meses pagava o carro.

Será que hoje algum de nós consegue comprar carro novo com o seu salário de 8 meses?

Claro que os tempos mudaram e hoje temos uma melhor qualidade de vida... mas quando vamos beber um café e este nos é servido em copo de plástico e com uma palheta para depois irem para o lixo (reciclar?) estamos a pagar copo e palheta - anteriormente a chávena era lavada...

Aquilo a que se assistiu no sábado foi também uma manifestação contra "a economia de mercado", contra as reformas milionárias, contra os lucros dos grandes bancos...

Continua a haver algo de comum: a luta pela liberdade.

Um abraço!

Maria José Carvalho disse...

JMConstantino,

Com toda a consideração, permita-me dizer-lhe o seguinte:

a manifestação à rasca, no meu entender, não foi apenas um sinal contra o situacionismo político nacional ou internacional, foi muito mais do que isso. E por isso é que me associei a essa manifestação, não indo junto com as centenas e centenas que se manifestaram no Porto, mas estando com elas (até em determinados percursos estando lá fisicamente).

O País está como está, falido desiludido, angustiado, revoltado, deprimido, etc.., não é apenas por causa da classe política, (classe esta, evidentemente cheia de vícios e sem inspirar confiança e competência a quem quer que seja...).
O problema é que os vitoriosos (e os derrotados) do 25 de abril e aqueles que, como eu, começaram a amar a liberdade ainda crianças, provavelmente tinham muitos e bons projectos para Portugal, mas a maioria foram bluf ou então foram apenas projectos individuais para governarem a vidinha...

Nao queira que seja a geração que foi educada (e mal) pela sua geração e seguintes (onde me incluo) que tenha já os projectos todos para levantar este país, mas deixe que sejam eles, com o nosso apoio, que se indignem, que ponham a nu a pouca vergonha da nossa governação (pública e privada) e que raios de esperança nasçam de novo entre nós.

Teremos de ser todos, mesmo todos, incluvise aqueles/as que "pensam que já estão com os pés para a cova, porque isso estamos todos" que, obedecendo ou pedindo (ou não) ajuda externa, teremos de levantar Portugal (e o desporto não pode esperar...!!!)

Nota: JMC, também as minhas primeiras sapatilhas (e não ténis) foram sanjo. Com elas comecei a prática da Ed. Física e a do voleibol e do andebol.
E como fui feliz, mas não tinha fato de treino, tinha o vestuário desportivo herdado da minha mana, a saia e os calções, as blusas e as meias...(imagina o frio que apanhei na mais linda cidade do mundo...e como corri para me aquecer...??)

Um bom domingo e um beijinho,

Luís Leite disse...

Não acredito em "gerações", pelo menos da forma como têm sido referenciadas.

Acredito que em cada época há pessoas mais responsáveis (porque mais cultas, com mais conhecimento, mais erudição).
As chamadas elites.

O que faz a diferença, em cada época, é a qualidade e quantidade (em termos médios) das elites.

As elites têm a responsabilidade ética e estética.

Quanto à política, quando não há verdadeiros estadistas (elites), vinga a corrupção alarve.

As crises são sempre culpa das elites, nunca do povão.

Quanto à liberdade, implica responsabilidade.
Cumprimento assumido de direitos e deveres.
Regras aceites e cumpridas pela sociedade.
Sem demagogias.
Com solidariedade.
Senão, dá asneira.