terça-feira, 23 de outubro de 2012

Contra o P.C.(leia-se politicamente correto)

Sempre gostei de bicicletas. E em miúdo fazia corridas de bicicletas com um improvisado guiador feito de arame a imitar o dos ciclistas. Não pedalávamos. Corríamos com o guiador na mão. No ciclismo era do Sangalhos por causa do Alves Barbosa. A primeira bicicleta adquiri-a já adulto. Aprendi a andar de bicicleta pelos nove/dez anos na Colónia Balnear da FNAT na Caparica. O meu pai alugava uma bicicleta durante um quarto de hora e pagava pelo aluguer 1 escudo. Naquele tempo não havia dinheiro para ter uma bicicleta própria. Era coisa de meninos ricos. Mais tarde, já adolescente, andava numa bicicleta que entretanto o meu pai comprou para se deslocar para o trabalho. A bicicleta era então meio de transporte para as classes baixas. E quem passasse por terras de forte implantação operária como a Marinha Grande ou campesina como Alpiarça ou o Couço via, nessa altura, homens, mas também muitas mulheres, em que a deslocação para os locais de trabalho era feita de bicicleta. A bicicleta foi, de resto, elevada à categoria de ícone da resistência dos trabalhadores e do trabalho político na clandestinidade representado na figura do Vaz na obra de Manuel Tiago, pseudónimo de Álvaro Cunhal, no romance, Até Amanhã Camaradas!
A bicicleta era, nesse tempo, bicicleta e não bike. E era material fabricado cá (… na fábrica Vilar) e não importado. Era auxiliar da deslocação para o trabalho e não objeto de culto. E não tinha ainda sido apropriada pela burguesia urbana e pela cultura verde como símbolo de um estilo de vida alternativo. Ou pelas indústrias do bem estar.Ou para imitar os dinamarqueses ou holandeses que usam umas pasteleiras mal paridas e que não reivindicam qualquer estatuto especial designadamente os que preferem andar de carro. Leve, limpa e saudável surge como uma quimera à densidade do tráfego e aos elevados índices de poluição. Eu, que nada tenho contra os que optam por andar de bicicleta, acho piada a este discurso light e assético carregado de radicalismo urbano e fundamentalismo ambiental abrigando uma espécie de superioridade sobre os outros, designadamente os que se deslocam de carro. Mas arrumo-o na categoria das pulsões lúdicas. É da ordem do simbólico. E é divertido. Razão pela qual, no desenho do espaço público, sempre me pareceu mais importante passeios largos para as pessoas andarem, se possível conciliável com pistas cicláveis ou pedonais, mas sem qualquer obsessão por esta ou aquela forma de deslocação.
Bem sei que estou ultrapassado. Em primeiro lugar porque gosto de coisas que o pensamento politicamente correto condena: touradas, caça, caracóis, jaquinzinhos com arroz de tomate, choquinhos fritos, arroz de tordos ou de lingueirão, cozido à portuguesa, havanos e bom vinho. Tudo coisas que os burocratas em Bruxelas, que comem mexilhão com batatas fritas e não sabem o que é peixe fresco que não seja de aquário ou galinha de aviário, ignoram, mas condenam. E depois não dispenso uma beleza feminina que me chama sempre a atenção e dá vida aos meus anos, que já são muitos. E tenho outras reservas mentais: sempre desconfiei do negócio das energias alternativas, das formações importadas sobre competências disto e daquilo, das formações motivacionais, das teorias baratas sobre empreendedorismo, dos coachings e das filosofias de autoajuda que nos ensinam a pensar positivo e a ser felizes. Depois o meu lado conservador briga com o meu lado liberal. Resultado: respeito mas resisto, a um certo totalitarismo invisível que no âmbito da pastoral higienista e das causas fraturantes faz passar a ideia de que pessoas felizes e saudáveis têm de gostar de sushi, dedicar-se a meditações transcendentais, reciclar o lixo, subir escadas em vez de utilizar elevadores, achar que o Bairro Alto é um sítio recomendável, que um homem pegar de empurrão é uma coisa normalíssima, que um partido político dos animais faz falta à democracia, que não possuir o ultimo gadget informático é um atraso tecnológico e entender que uma instalação com um monte de caixotes e de pedras em cima é uma obra de arte. Ou que tenho, em nome da ética da alteridade, de respeitar as religiões incluindo a dos islâmicos cujos prosélitos acham que a sua religião deve mandar no mundo, nem que para isso seja necessário matar quem com eles não concorda. Que é o meu caso e, presumo, de muita gente.
O mundo não teria qualquer graça se tivéssemos que optar entre o folclore transmontano e a música clássica. Por isso, eu que sempre gostei de bicicletas e de andar de bicicleta, eu que tenho na minha história pessoal o de ter pedalado na estrada ao lado de um ídolo de infância, o Alves Barbosa, não gosto que me estabeleçam dilemas existenciais entre esse modo de deslocação ou o carro. Eu, que uso carro, não gosto que me arrumem numa espécie de categoria arqueológica. Ou carregado de culpa. E que me vendam ideologia sobre a forma de ciência. Ou moral sobre a forma de catecismo. Que cada um escolha o modo como se quer deslocar.Com respeito e sem anátemas.



3 comentários:

Luís Leite disse...

99% de acordo.
Só faltou uma palavrinha sobre as "caminhadas" com T-shirt e dorsal pagos (por alguém: autarquias, os próprios), à velocidade estonteante de 20 minutos o quilómetro e com direito a medalha na meta.
O meu barbeiro já tem muitas dezenas. Só por andar devagarinho, na conversa.
Medalhas e diplomas para todos.
A demagogia feita desporto.

Anónimo disse...

Com estas conversas estamos em pleno ciclismo das sete vitórias do americano, porque não trinta ou quarenta? O que vale é que o desporto tem largas costas.

Luís Leite disse...

Ó sr. Anónimo das 13:43h:

Você acredita mesmo que algum ciclista consegue fazer "aquela" Volta à França sem se dopar?
Aquilo é "show business" profissional, caro amigo.
Não confunda com as "caminhadas da treta".