terça-feira, 30 de outubro de 2012

Financiamento público às federações:alguns mitos


Pode colocar-se em causa as disposições constitucionais no que respeita ao papel do Estado em relação às federações desportivas. Mas creio que ninguém ousa contestar que o serviço que prestam tem elevado interesse público. No entanto dividem-se muitas vezes as opiniões sobre se o apoio público que recebem, designadamente o financeiro, é ou não adequadamente utilizado. E os resultados desportivos alcançados o justificam. Este assunto reveste – se de alguma atualidade num momento em que administração pública, carente de recursos financeiros, é tentada a criar uma agenda em que se pretende questionar o modo como os financiamentos públicos replicam resultados desportivos. Convém sobre este exercício adotar algumas cautelas. E importa, à partida ,desfazer alguns mitos.
O primeiro mito é o de que aquilo que o desporto recebe é maior que aquilo que oferece à comunidade. Não é verdade. E não falo de valores intangíveis ou difíceis de quantificar ligados à características do produto ou serviço desportivo. Falo de valores quantificáveis em termos de produto interno bruto ou de receita fiscal. O balanço é claramente favorável ao Estado e à comunidade.
O segundo mito é o de que esses dinheiros públicos resultam de uma contributo do orçamento do Estado no que ele tem de receitas oriundas de impostos, taxas e outros tipos de esforço financeiro de todos os contribuintes. Também não é verdade. Quem sustenta o financiamento público do desporto às federações desportivas são, no essencial, os apostadores nos jogos que a Santa Casa Misericórdia de Lisboa tem sob sua gestão.
Um terceiro mito é o de que, por norma, os recursos públicos disponibilizados são mal aplicados. Não é verdade. Há casos em que isso ocorre mas a situação geral não essa. O que se passa com as federações desportivas passa-se em igual medida com a entidade concedente. Há melhor exemplo de um Estado relapso que a situação do défice público? Nem mais, nem menos. Importa, por isso, abandonar um raciocínio muito comum: não separar o que é o papel do Estado, com o modo como, esta ou aquela federação desportiva, usa os recursos públicos disponibilizados.
Um outro mito é o de que tem aumentado o financiamento público ao desporto e os resultados têm diminuído. Não é verdade. O aumento público global aumentou, mas diminuiu o apoio da administração central. O aumento foi conseguido com a despesa pública autárquica. E consumido num aumento significativo das atividades e quadros competitivos federados. Por outro lado, o valor médio global do desporto português cresceu nos últimos doze anos. O problema do efeito de financiamento público no desporto é de outra natureza.
O problema é que existe uma desfocagem sobre os fatores criticos do desenvolvimento. A vocação de atividade das federações desportivas, e em certa medida a dos clubes e associações desportivas de modalidade, assenta numa oferta (o desporto de competição) que é uma pequena parte da procura. Esta evoluiu para o consumo de novos serviços e actividades desportivas (manutenção, lazer, condição física), cuja satisfação é procurada em outras entidades. Não se pode esperar que sejam as federações desportivas a responder a necessidades de desenvolvimento desportivo que, em alguns casos lhes escapam. O problema da formação escolar é um deles, mas não é o único.
O modelo público que existe de apoio ao desenvolvimento do desporto foi concebido para uma procura estabilizada, muito em torno dos jovens e do desporto de rendimento, e não se adaptou a uma outra procura, mais diversificada e segmentada, com forte incidência da população adulta e sénior, assente na crescente comercialização de bens e serviços desportivos e em outros motivos para a prática do desporto de que não é despiciendo as novas culturas ligadas aos chamados estilos de vida saudável.
Um exemplo dessa desadequação é que ao aumento muito significativo, da oferta de equipamentos desportivos públicos, não correspondeu um aumento da utilização que esses equipamentos potenciam resultantes do modelo que os inspirou: o desporto formal. Porque por outro lado e decorrente de uma visão higienista das práticas do desporto, aumentaram lógicas de construção e investimento corporal em que o ensino e prática do desporto foram substituídos pelo ativismo físico sem preocupações de educação corporal e rendimento desportivo. O desporto parece não  ter compreendido as consequências desta mudança de paradigma. E desta desadequação todos sofrem: as federações desportivas que não beneficiam do alargamento das práticas do ativismo físico; o País cujas indicadores de nível desportivo se mantêm aquém do desejado. Resultado a prazo: os indicadores de práticas informais tenderão a crescer mais que os do desporto formal. Porque entre estes dois subsistemas não parece existir uma relação de benefícios mútuos. E aquilo que vai suceder serão os indicadores de prática desportiva subirem ao mesmo tempo que os indicadores de prática formal federada estagnam ou regridem mesmo com registos de filiação associativa correspondentes a praticantes precários e/ou praticantes informais.
Culpar ou responsabilizar as federações desportivas por esse desvio é não compreender que o problema não está do lado das federações. O problema reside do lado do Estado que se limitou (e limita) a manter um modelo cujo alcance está prejudicado pelo desenvolvimento de dois subsistemas que não comunicam entre si. E se acrescentarmos a este facto o do financiamento público ao subsistema informal ter uma forte componente de apoio/despesa autárquica compreende-se que não é possível resolver este problema sem articular subsistemas e políticas públicas e associativas.
O problema do financiamento público está, por estas razões, a jusante do modelo de desenvolvimento. Se primeiro, não se alterar o modelo, o esforço financeiro terá resultados sempre limitados. E se isto é verdade em termos gerais, o que dizer em tempos de crise e de carência de recursos?



14 comentários:

Luís Leite disse...

Mais um interessante texto de JM Constantino.
Como sempre.
Permito-me apenas discordar quando lamenta a falta de ligação entre os dois sub-sistemas.
É que essa ligação nunca poderá existir, já que as motivações e objetivos do desporto informal e do ativismo físico são diferentes dos do desporto federado.
Basta olhar para o que acontece com as travessias das pontes sobre o Tejo: os quenianos correm pelo dinheiro, os milhares de caminhantes andam pelo convívio.
E o pelotão do meio-fundo fundo nacional não tem beneficiado rigorosamente nada com estes eventos.
Os rankings portugueses são cada vez piores, agora já ao nível dos anos 60.
Tudo não passa de uma mistificação feita negócio.

josé manuel constantino disse...

Caro Luis Leite, obrigado pelo seu comentário
O sucesso desportivo de uma modalidade tem um efeito mobilizador para a prática desportiva. Neste caso existe uma complementaridade no sentido em que um subsistema ajuda a “alimentar” o outro. Exemplos que me ocorrem: futebol,râguebi,voleibol,canoagem,triatlo,atletismo,voleibol.
As praticas informais se assentes num modelo de formação desportiva, e não em simples agitação motora ou de ativismo físico podem ajudar as praticas formais. Exemplos de que conheço: voleibol,triatlo,canoagem e atletismo .
É neste sentido que falo na necessidade de articular ambos os subsistemas.

Luís Leite disse...

Reconheço que os casos referidos (e não só esses), ao nível de uma formação adequada, permitem a deteção de alguns jovens com talento, motivação e interesse que acabam por ser cooptados pelos clubes e eventualmente afirmar-se no desporto federado.

Fernando Tenreiro disse...

O que o Luís Leite está a falar é da dificuldade de afirmação das políticas da modalidade direccionadas para a melhoria dos rankings nacionais. Estas deixam-se confundir pelo convívio e pelos 'quenianos'. As travessias do Tejo são magníficas para o sucesso dos produtores da modalidade e não criam resultados nacionais porque não há ovos para a omelete. A omelete é o output da política.

Luís Leite disse...

Fernando Tenreiro:

As travessias da ponte não trazem qualquer mais-valia para a modalidade Atletismo.
A meia-maratona é uma distância não olímpica que não faz parte do programa das grandes competições internacionais.
Nada tem a ver com a Maratona, antes pelo contrário.
É tão prejudicial para os(as) maratonistas como para os(as) corredores de 5000/10000 metros, estas sim disciplinas olímpicas.
Tanto assim é que os rankings nacionais de 5000m, 10000m e Maratona estão, ao nível da 10ª marca, 20ª e 50ª marca nacional, pior que que há 50 anos.
O que é estranho é que empresas públicas (como a EDP) tenham para gastar nestes eventos mais dinheiro que o total de verbas destinadas ao alto rendimento pelo Estado durante um ano.
Háverá, certamente, outros interesses mais pesados.

josé manuel constantino disse...

O Luís Leite levanta um problema muito importante e que não está suficientemente debatido:o papel das empresas públicas ou onde o Estado tem posição maioritária no apoio ao desporto.É o caso da EDP como é,entre outros, o da GALP ou da Caixa Geral de Depósitos.Mas não só.

Anónimo disse...

Ui, para além de engenheiro tb é fisiologista...

Fernando Tenreiro disse...

Olá Luís Leite
A sua posição parece-me igual à de Fernando Mota, se não estou em erro.
Creio que há uma função fundamental nas actividades populares que é o de estabelecer um elo entre a base e o topo.
O facto de em Portugal as maratonas populares não terem benefício na estrutura federada é curiosa caso seja verdade e talvez se deva ao seu vínculo empresarial desligado do associativismo ou de uma dificuldade de análise que o desporto português tem.
Assalta-me uma dúvida ... os empresários que organizam as mini maratonas não pagam nada à federação? Caso se confirme a apropriação da organização das mini-maratonas sem que uma percentagem seja paga à federação essa é uma situação curiosíssima.
O Luís Leite confirma que os organizadores das mini-maratonas não pagam nada nem às associações, nem à federação?

Anónimo disse...

Passo a citar: “Desde 1800, Portugal já faliu seis vezes. A Espanha já entrou em incumprimento treze vezes. E a Alemanha, oito. Falências de Estados é norma. Um perdão de dívida, a recusa de pagamento aos credores ou a insolvência de um país são eventos que constituem mais a norma do que a excepção na história financeira moderna do Mundo”. (John Frewsk, 2012)

Luís Leite disse...

Fernando Tenreiro:

A resposta à sua pergunta:

As competições de estrada em que são solicitados os serviços de medição oficial e de ajuizamento constam do calendário oficial e são pagas às Associações.
Mas essas competições envolvem obrigatoriamente a participação de atletas federados.
A simples designação de mini-maratona inviabiliza, só por si, o envolvimento da estrutura federada, já que essa distância não existe e é um contra-senso.
O que existem são provas de estrada quase todas clássicas (com décadas de existência), a maioria meias-maratonas e mais raramente provas de 10Km ou 20Km, em que participam federados e não federados.
O que acontece é que, em paralelo, certas organizações aproveitam para organizar caminhadas ou provas em distâncias mais curtas para não federados e populares, sem caráter competitivo, as quais, muitas vezes não se devem incluir na modalidade Atletismo, por caírem fora das Regras e da essência competitiva da modalidade.

Anónimo disse...

Ao contrário do que aqui foi presumido, o Estado nessas empresas não intervém diretamente nas decisões maioritárias dos acionistas (nem pode)como aqui foi desejado e proposto. O Estado irá dizer aos chineses que detêm a maioria do capital da EDP para apoiarem uma coisa que lhes dá prejuízo? Há algum juízo na presunção de uma possibilidade destas?

Para essas empresas «mais praticantes, mesmo de caminhadas» é melhor do que «poucos de alto-rendimento que atingem resultados medianos, e que num futuro incerto poderão vir a ser melhores» Nessa conversa as empresas não vão. Isso serve para enganar governantes frágeis e para manipular o Estado, mas não serve para prestar contas aos acionistas em cada balanço-anual.

Talvez

Anónimo disse...

Luis Leite deve:
1º Estudar o conceito de sistema;
2º Ler a Carta Olímpica.

Fernando Tenreiro disse...

Obrigado pela sua resposta Luís Leite
Acontece que o modelo das competições de atletismoe que não acontecem com o futebol por exemplo, nunca poderia, ao juntar níveis distintos de intensidade de prática são extremamente populares ao ponto de serem seguidos mundialmente. A Maratona de Nova York que foi cancelada este ano tem dezenas de milhares de competidores, alguns até vão mascarados como em todo o lado. Mantenho que o problema está noutra questão e que há tanto que criar e cuidar de um quadro formal competitivo como de olhar para o consumo popular e informal e dar-lhe as mãos para conseguir um lastro de consumo de massas de atletismo que tenha impactos dinâmicos nos níveis formais. Compreenda que isto sou eu a falar para aqui eu que nada sei de desporto nem de atletismo.
Cumprimentos e estou à espera do seu comentário, que espero seja moderado, sobre as eleições na FPA.

Luís Leite disse...

Caro Fernando Tenreiro:

Está provado que não existe qualquer relação entre o número de participantes nas grandes maratonas e a qualidade e quantidade dos maratonistas do país organizador.
Em New York City, que conheço bem, tal como em London, Rotterdam, Berlin, Chicago, Boston, etc. há muito poucos maratonistas.
O país com mais maratonistas é de longe o Japão, com particular incidência no setor feminino (140 entre as 800 melhores de sempre).
Trata-se de eventos comerciais muito lucrativos e de interesse político, que existem há décadas e que são uma mistura de competição ao mais alto nível com média competição, "jogging" e caminhadas em festa.
São oportunidades para juntar o desporto e a festa nas ruas de uma cidade.
Concretamente em New York City e mais concretamente em Central Park, centenas de pessoas fazem o seu "jogging" diário porque querem e gostam.
Essas pessoas, a maioria das quais também participam na festa da New York Marathon, não são atletas e não competem nem sequer consigo próprias porque não querem.
Correm devagarinho ou andam a pé. Porque querem ou gostam de participar na festa.
São realidades diferentes, sem pontos de contacto nem influência.
Tal como nas nossas travessias das pontes.