segunda-feira, 14 de março de 2011

Governabilidade e eficiência - II

Se faltassem exemplos actuais que estimulassem a concluir o escrito que em tempos iniciei sobre o tema em epígrafe, a forma como foi apresentado aos portugueses(?) o novo pacote de medidas de austeridade levado a Bruxelas e o texto precedente de Luís Leite não poderiam constituir melhor tónico. O primeiro por espelhar o que havia abordado no texto inicial, ou seja, a responsabilidade no exercício do poder, a prestação de contas, a cultura democrática e o respeito pelas suas instituições, por quem as representa e elege; o segundo por traduzir, no que concerne à realidade desportiva, uma marca impressiva desse quadro de valores.

A colonização do desporto, com o beneplácito do Estado, por uma agenda higienista e salutogénica, com um assinalável suporte financeiro e lobby político, da indústria farmacêutica, de cadeias comerciais e de uma miríade de empresas que gravitam em torno dos conceitos de recreio activo, fitness, wellness, etc.., expressa um problema no domínio dos valores do desporto que se encontra a montante desta discussão, mas com uma influência decisiva sobre a forma de praticar, consumir e programar politicamente este bem público.

Talvez sem o impacto e visibilidade destes casos que pululam pelo país de pôr o desporto ao serviço de objectivos de saúde pública, que, naturalmente, lhe são estranhos, o desporto navega ao sabor de outros interesses, desde o urbanismo, ao turismo, à economia regional, passando pela educação, até à inserção social. Para todos eles o desporto é um valioso contributo. Como se fizesse pandan com todos.

Mas e os objectivos específicos do desporto? Os resultados desportivos no alto rendimento? O esforço, a medida, a regra, a repetição, a perseverança, a superação? A generalização da prática desportiva regular nos vários segmentos populacionais? A qualidade da formação desportiva? A funcionalidade e gestão do parque desportivo? Esses parecem ficar para segundo plano se atestarmos aos indicadores europeus. Quanto mais se aproxima de outros interesses, mais se alheia daqueles que constituem a sua essência.

A tendência premente - quer ao nível governamental, central e local, quer no próprio movimento federativo - de se apoiarem fortemente eventos desportivos de elite, sempre que possível mesclados com uma agenda ou uma causa social a preceito e uma participação massiva de cidadãos anónimos, com o objectivo de capitalizar apoios políticos e, por outro lado, angariar patrocínios e acordos comerciais cada vez mais relevantes pode ter um impacto potencial devastador.

Desde logo por não ser segura a relação directa entre o aumento de competições desportivas de alto nível no nosso país e os resultados desportivos alcançados no alto rendimento. Possivelmente ocorrendo, por vezes, até o inverso.
Depois, naqueles eventos abertos à participação de todos os cidadãos, por não existir qualquer indicador que comprove o seu inquestionável contributo para a generalização de hábitos de prática desportiva.
Também nas instalações sub-utilizadas e com elevados custos operacionais se faz sentir o peso do desporto ser uma preocupação política residual, instrumental e sem imputação política relevante pela sociedade civil, como o atestam um e outro caso recente. Isto, no actual contexto, para não qualificar, a ser verdade a noticia, a redução de IVA para o golfe.

Mas se estes são argumentos críticos que por vezes se invocam, já não tendem a ser equacionadas as consequências do facto dos poderes públicos - e aqui com especial incidência no poder local - ao tomarem estas opções em torno de eventos de cariz mediático, se substituírem à oferta desportiva privada, associativa ou empresarial, e com isso debilitarem os mecanismos de apoio à actividade regular dos clubes, ou a eficácia da resposta que o município deve dar aos que efectivamente procuram serviços públicos desportivos fora daquelas estruturas, devido à idade, à condição económica ou a outros factores.

Ora, mirando os seus instrumentos de gestão previsional destinados ao desporto, facilmente se constata um generalizado crescimento exponencial no apoio autárquico a eventos e competições, de maior ou menor impacto mediático, numa desproporcionalidade gritante em relação ao apoio regular ao movimento associativo desportivo local, subvertendo aquilo que são as suas competências em matéria de desenvolvimento desportivo e valorização da autonomia do tecido associativo.

É tentadora a ligação do desporto - ou, melhor, do que se julga tratar de desporto - à saúde, ao turismo, à regeneração urbana ou a outros sectores que supostamente o podem “valorizar”, com projectos chave na mão em troca de um envelope financeiro, nomeadamente num período de crise; porém, normalmente paga-se caro andar apenas atrás do dinheiro sem uma política sustentável, uma vez que não há almoços grátis.

O desporto tem sido um elemento valorizador para todos estes sectores, sem conseguir, contudo, obter a devida reciprocidade e retorno. E aqui também se inclui o desporto profissional. Poder-se-à, a partir deste diagnóstico, reduzir o problema a elementos de escala e à disparidade de recursos disponíveis e, convenientemente, ficar-se por aqui. O célebre “É da vida”.

Contudo, caso se pretenda aprofundar, quiçá reverter o processo, e optimizar os apoios provenientes destes sectores, internalizando valor e eficiência no desporto português, não é possível as opções e prioridades políticas dos seus intervenientes persistirem em desvirtuar a sua missão, seja ao abrigo de projectos pessoais ou de interesses conjunturais alheios, ainda que financeiramente apelativos, os quais - é bom ter bem presente - progressivamente delapidam a identidade cultural do desporto e o património civilizacional e humanista que edificou ao longo de gerações.

Tudo isto por entre discursos laudatórios que proclamam à exaustão os valores do desporto que importa preservar. Brecht não o faria melhor!

3 comentários:

Luís Leite disse...

Obviamente, concordo com o texto de João Almeida.

josé manuel constantino disse...

Parabéns meu caro João Paulo!

João Almeida disse...

Obrigado a ambos.

Abraço.