segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

A ética da responsabilidade

A prestação de contas é um procedimento financeiro, mas fundamentalmente é um valor democrático que equilibra a liberdade onde assenta este sistema político, uma vez que "tudo quanto aumenta a liberdade, aumenta a responsabilidade". Por outro lado, a prestação de contas é difícil implementar em sociedades sem uma cultura de administração por resultados.
A accountability (termo sem uma tradução feliz no nosso léxico), é muito mais que o reporte contabilístico da gestão de uma organização. Trata-se de responder perante os cidadãos, e perante as instituições que os representam, pelo desempenho alcançado pelas organizações dotadas de poderes públicos na implementação e no impacto das suas estratégias de gestão, com os recursos que têm ao seu dispor.
Nos sectores auto-regulados em regime fechado, onde a supervisão pública é incipiente e a intromissão do poder político se revela arbitrária, acentuam-se as dificuldades neste domínio da propalada ética da responsabilidade.
Se associarmos uma sobre-regulamentação, que tende a ser uma das principais causas da sub-regulação, no desporto e não só, a responsabilidade dilui-se numa pluralidade de agentes e dificulta, em muito, a prestação de contas, e o escrutínio dos resultados.

Não é, pois, de estranhar que raramente se assista a agentes, políticos e desportivos, que respondam junto dos cidadãos, pelos seus actos de gestão e politicas desportivas. Aliás, a proliferação de comentários anónimos neste espaço é disso um sintoma. Da dificuldade, por motivos vários estou certo, em responder pelos seus actos. Indo às raízes etimológicas da palavra, em arcar com o ónus de algo. Mas repito, este não é um problema apenas do desporto, mas acentua-se em domínios da sociedade auto-regulados, onde se confunde o fazer bem com o fazer segundo os procedimentos.

Não será por acaso que o labor do Tribunal de Contas (TC) gera profundas discussões, quase sempre que publica uma auditoria. Precisamente por a sua missão estar relacionada com o apuramento de responsabilidades (políticas, financeiras, disciplinares, civis e criminais) na boa gestão da res pública.
Este órgão de soberania com competências no controlo externo da administração financeira do Estado submete ao escrutino dos cidadãos e dos eleitos parlamentares as auditorias que realiza junto dos organismos que gerem dinheiros públicos.
No que ao desporto diz respeito não é a primeira vez que se pronuncia. Já aqui se referiram anteriores documentos daquele tribunal, com manifesto interesse para aqueles que estudam a gestão pública desportiva neste país, em diversas áreas do saber. Do Direito à Economia, passando pela Gestão, até á Sociologia.
Recentemente o Relatório n.º 15/2007-FS/SRMTC vem avaliar o grau de cumprimento por parte do Instituto do Desporto da Região Autónoma da Madeira a anteriores recomendações formuladas pelo TC.
No ensurdecedor silêncio do mundo desportivo a mais um momento de produção daquele órgão registam-se duas anotações.

Uma primeira, mais conceptual, no domínio da gestão financeira, para as limitações da contabilidade nacional em estabelecerem uma avaliação do custo de efectividade. Isto é, nos constrangimentos que uma contabilidade de caixa (baseada nos inputs) provocam numa avaliação da performance que tornem claro o custo, em termos orçamentais, do impacto social de uma politica, neste caso desportiva. Qual a proporção do investimento financeiro no desporto da RA Madeira face ao valor desportivo gerado na região? Enquanto a nossa contabilidade privilegiar o primado do custo sobre o primado do valor, apenas será possível saber o custo dos recursos necessários (inputs) para implementar uma política e nunca os custos do impacto social das políticas (value for money). No sector privado, e em grande parte dos países europeus, bem como na União Europeia a contabilidade funciona em regime de acréscimo (accrual) e não numa lógica de “abrir e fechar torneira”. Desenganem-se aqueles que pensam que este é apenas um problema contabilístico. Trata-se, em ultima instância, de não haver coerência entre a macroeconomia e a microeconomia. E as auditorias do TC são disso reveladoras. Não conseguem ir mais além. Não chegam aos resultados (outputs), muito menos os impactos (outcomes)…As reformas de nova gestão pública que este e outros governos têm vindo a implementar no caminho de uma Administração de resultados serão sempre superficiais se a Reforma da Administração Financeira do Estado não se concretizar, uma vez que é impossível uma tradução orçamental do desempenho das politicas públicas, numa conjuntura onde elas são cada vez mais integradas e moldadas em rede. Relembre-se que o modelo de administração financeira do Estado é o quadro de referência da reforma de 1935 de Oliveira Salazar. Como refere um célebre autor das ciências da gestão trata-se de separar o folclore dos factos.

Uma segunda anotação, mais concreta, no domínio jurídico, resulta da conclusão do relatório de auditoria (p. 16), com a qual se termina este escrito:

"Se compararmos a Lei de bases do sistema desportivo (Lei n.º 5/2007) com as bases do sistema desportivo regional (aprovadas pelo DLR n.º 4/2007/M), constatamos que o normativo aprovado pela Assembleia da República proíbe o financiamento público da actividade desportiva dos clubes que participam em competições profissionais, “sob qualquer forma, salvo no tocante à construção ou melhoramento de infra-estruturas ou equipamentos desportivos com vista à realização de competições desportivas de interesse público, como tal reconhecidas pelo membro do Governo responsável pela área do desporto” (cfr. o n.º 2 do art.º 46.º da Lei n.º 5/2007) enquanto a segunda o admite de forma explicita. Além disso, o referido art.º 46.º da Lei n.º 5/2007, estende o seu âmbito de aplicação não só às Autarquias Locais mas também às Regiões Autónomas).
Sem pôr em questão os poderes constitucional e estatutariamente conferidos à RAM para produzir legislação na área do desporto (cfr. a al. a) do n.º 1 do art.º 227.º da CRP e a al. s), do art.º 40.º do Estatuto Político-Administrativo da RAM), a coexistência daqueles dois diplomas no ordenamento jurídico nacional faz suscitar dúvidas quanto à legalidade e mesmo constitucionalidade de algumas normas do citado DLR n.º 4/2007/M e, bem assim, do DLR n.º 12/2005/M, de 26 de Julho. "

2 comentários:

Anónimo disse...

Esse formulário proibitivo é um convite à ética da irresponsabilidade encapotaca, isto é, a procura de meios para ultrapassar o impedimento.
É a velha história do segredo do cofre que desperta o engenho dos ladrões para o descodificar.
É uma história velha como a humanidade.

Anónimo disse...

Antigamente o mar era uma via de sproximação das gentes, hoje, é uma via de afastamento e conflitualidade, logo de um ninho de quesílias e querelas.

Como não pode haver nenhuma tradição escondida, o génio sagaz da razão jurídica reestabelece sempre o equilíbrio.

Por isso Derrida nos ensina a conviver com o conflito.