Mas os números valem o que valem e podem ser interpretados de diversas perspectivas e à luz de diferentes enquadramentos analíticos, mais ou menos científicos. Foi um pouco isso que temos vindo a assistir nestes dias.
Muita gente que nunca pôs os pés numa prova de esgrima, badminton ou judo. Que ignora as regras dessas e de outras modalidade olímpicas, e do que é a preparação de um atleta de alta competição, não se coíbe de criticar a representação dos nossos atletas insistindo nas carências de uma cultura de excelência, de rigor, de trabalho e de responsabilidade que marcam o nosso fado. Como se o desporto enquanto fenómeno social tivesse de ser diferente dos valores, idiossincrasias e atitudes que dão forma à nossa identidade sócio-cultural.
Do outro lado, o lado dos atletas, técnicos e dos apaixonados do desporto - daqueles que diariamente vivem o esforço, a superação e a dedicação dos atletas e de quem os acompanha –, um sentimento de revolta e mau estar face às criticas, porventura injustas, desrespeitosas e mesquinhas, que vêm reflectidas na opinião pública. Como se os atletas deste nível não tivessem de estar preparados para todos os condicionalismos da exposição mediática. Como se atletas com marcas pessoais francamente superiores às obtidas nos jogos devessem passar incólumes a qualquer tipo de escrutínio publico, mais ou menos qualificado para o efeito.
Num outro quadrante alinham-se aqueles que precipitadamente pedem a cabeça do presidente do COP, desconhecendo ou não querendo acreditar no emaranhado de interesses e compromissos políticos existentes na cúpula do desporto nacional.
Mas os jogos são um happening que enche a agenda de colunistas e opinion makers neste período estival. Com o passar dos dias outros assuntos preenchem a agenda noticiosa e os nossos atletas poderão voltar para a tranquilidade da sua rotina de treinos, bem longe deste vendaval mediático. O caminho cruzado nestas semanas entre a opinião pública e os seus atletas volta daqui a quatro anos. Até lá continuarão a ignorar-se mutuamente. Salvo as excepções dos atletas que entraram na gloria do Olimpo.
E nesta superficialidade, própria de um país com enorme deficit de cultura cívica, desportiva e democrática, se perde mais uma oportunidade de questionar e reflectir aprofundadamente a estratégia, governabilidade e sustentabilidade do modelo de desenvolvimento desportivo deste país. De abordar tudo o que está a montante dos resultados e da preparação para os Jogos Olímpicos.
Mas acontece que, ao contrário de todos os projectos anteriores de preparação olímpica, existe um contrato entre os cidadãos portugueses, legitimamente representados pelo seu Governo, e o movimento olímpico, representado pelo presidente do Comité Olímpico de Portugal onde estão claramente definidos os objectivos desportivos a alcançar:
Cinco medalhas
Doze diplomas (até ao 8.º lugar)
Dezoito modalidades presentes nos Jogos Olímpicos.
Ora, foi com base nestes resultados, e não em quaisquer outros que anteriormente se aludiu, que os portugueses acordaram a transferência de um envelope financeiro de dezena e meia de milhões de euros para a preparação de Pequim.
Daqui resulta que os objectivos não foram alcançados. Por mais volta que se queira dar. Tratam-se de factos. Com o valor que deve ter a sua formalização num contrato. Contrato assinado com todos os portugueses.
É neste ponto que considero ser importante centrar a discussão. Na gestão política deste processo e no regime de prestação de contas em políticas públicas.
A definição de objectivos e a sua contratualização é um instrumento essencial em qualquer política pública, em qualquer domínio da vida em sociedade, do desporto à saúde, educação ou obras públicas. E isto encontra-se em qualquer manual de gestão pública e ciência política. A política, a democracia e as políticas públicas assentam no conceito de contrato social, seja ela através do voto e respectivo mandato ou da formalização em documento de natureza obrigacional, entre os cidadãos e quem os representa.
Mas o Secretário de Estado do Desporto parece não acreditar que somos herdeiros de Rousseau e apressou-se a considerar inadequadas as bases do contrato-programa realizado pelo COP com o anterior Governo. ' Não faria um contrato com essas condições. Nós só devemos contratar e subscrever aquilo pelo qual somos responsáveis', concluiu.
E a partir destas palavras passa-se para a prestação de contas. A fazer fé em Laurentino Dias a responsabilidade morre solteira, porque no desporto só os atletas são responsáveis pelo seu desempenho. Talvez fosse bom dar uma vista de olhos no que os nossos velhos aliados entendem por responsabilidade em matéria de politicas desportivas e ter em atenção a sua progressão em resultados olímpicos.
Este é um traço da nossa matriz cultural que o Secretário de Estado se limita a reproduzir na hora da prestação de contas aos portugueses, como tantos outros já o fizeram antes. A accountability, o escrutínio detalhado de actos de gestão pública e o apuramento conclusivo de responsabilidades civis, financeiras, penais ou políticas, são excepções que confirmam a regra no país de Sá Carneiro, de Maddie, da Universidade Moderna, dos hemofílicos, das derrapagens financeiras do Metro e tantos outros.. Porque é que o desporto haveria de ser diferente?
O desporto só é diferente no seu espaço de intervenção política. É uma reserva territorial de dirigentes institucionalizados, muitos deles com uma perspectiva do desporto desfasada das dinâmicas de uma sociedade global, e avessos à intromissão política, constantemente reclamando da sua autonomia e especificidade, mas que necessitam do beneplácito político para solidificarem o seu peso institucional, ou, no caso dos políticos, para oportunamente colherem dividendos resultantes do mediatismo desportivo.
E neste panorama vão funcionando os jogos de compromisso, o contorcionismo político e as manobras de bastidores.
Só quem não se apercebe disto é que tem dificuldades em perceber a entrevista de Vicente de Moura à RTP. Um dirigente desportivo é e será sempre também um actor político, por mais que diga o contrário. O que pode estar em discussão é a habilidade do comandante em representar frente às câmaras.
E de um movimento federativo anquilosado e fechado sobre si mesmo, que recebeu o maior apoio de sempre para Pequim, não se espera outra coisa que não sustentar uma vaga de fundo para Vicente de Moura reconsiderar. É sempre melhor confiar no que já se conhece...
De um político não se espera outra coisa que não abster-se de comentar esta situação e dizer o óbvio: “Não é nomeado ou designado pelo Governo, mas eleito pelas federações”.
Dos cidadãos espera-se que não esqueçam as palavras do político e saibam mobilizar-se para exigir um esclarecimento publico e as devidas consequências:
“atletas, treinadores, dirigentes, comité olímpico e o próprio Governo devem fazer uma avaliação” da participação portuguesa em Pequim2008”
Essa avaliação deve “acontecer tranquilamente quando os Jogos acabarem”, mas dela devem-se “retirar consequências”.