Iniciei a colaboração neste blogue no dia 8 de Março do ano passado com um texto de elegia à relação de género tal foi o impacto da leitura do livro de Lodge “Um Almoço Nunca é de Graça”. Ora serve este mote para, de novo, voltar ao blogue porque senti que os dois textos que na época escrevi nunca pagaram o convite que me haviam feito. Eu saí do editorial quando, após a segunda crónica, senti falta de rumo para a minha própria escrita porque não dizer para a minha própria vida. Tomei então a decisão radical de trocar o carro pela bicicleta e andar por aí a ver montras buscando a inspiração.
Louca, sim, e sendo mulher, ao quadrado, mas pensem na vantagem que é poder parar a qualquer instante para ver as montras. Nesta mobilidade prazenteira descobri mais tempo de leitura, outras pessoas que nunca tinha escutado como o Mário Alves que, logo, me alertou para a vitória estatística das mulheres nas mortes por atropelamento. Ora, pensei eu, mudar sim mas pila nunca terei, até porque sempre me senti confortável no corpo de mulher; ora, só os átomos é que se mantêm “na sua” alheios às leis da física e à tabela periódica em que enfiados depois de julgados. É, de facto, um problema de método pensar que se podem estudar pessoas como se estudam os átomos e eu sou a prova disso porque na estrada sou agora um homem a quem outros homens assobiam. Bizarro, a situação faz lembrar um pouco as tabernas da aldeia onde os homens se juntam assiduamente numa proximidade corporal de cuspe a salgar orelha mas que na hora do aperto, leiam falar de homossexualidade, se rebelam e gritam “eu cá gosto é de mulheres”. Deixo a dúvida com as mulheres com quem vivem!
Voltando a mim, a minha masculinidade traduz-se por interpretar um código de estrada que me esqueceu enquanto ciclista e tem “a lata” de me proteger enquanto motorista. Foi com o César Marques que descobri que na cabeça eu só devia enfiar a ideia de que o capacete é uma falsa protecção porque este excesso de equipamento, motivador de muitas possibilidades de negócio e de consumo, induz todos pensarmos que o ciclista, assim protegido, fica em pé de igualdade com o motorista quando, na realidade, nem se trata de David contra Golias porque, no carro, pouco nos sobra de humanidade! Resumindo, se um carro me bater “estou feita” mas, depois desta experiência de quase um ano, descobri que sem capacete e de blazer não há motorista que não me admire e, ao mesmo tempo, se assuste com os movimentos nervosos que muitas vezes faço para mostrar a instabilidade da minha Brompton, uma bicicleta que se encolhe e quase se mete no bolso na hora de andar de comboio, de metro ou até à boleia de carro com amigos.
Vivi na Holanda no início dos anos 90 e tinha, como todos, uma bicicleta velha para não ser roubada. Andar de bicicleta nesse tempo e nesse espaço nem sequer dava uma crónica destas porque é tão corriqueiro que não haveria mote para a animar. Ah, mas a Holanda é plana enquanto que Lisboa tem sete colinas. Não vos critico por estarem enganados porque eu há mais de 40 anos que digo que sou da Beira Alta até alguém me lembrar que Oliveira do Hospital é do distrito de Coimbra e, por isso mesmo, sou da Beira Litoral. Doeu, não o facto de ser de outra Beira mas, sim, o engano, o convencer-me de algo que jamais questionei. Ora, oiçam o Paulo Guerra dos Santos que, antes de mim, resolveu buscar rumo ao curso de engenharia de estradas e resolveu fazer 100 dias em Lisboa de bicicleta e, depois, 100 dias numa enorme volta a Portugal para descobrir e a todos nós lembrar que não só as estradas são óptimas para andar de bicicleta como a geografia não é nenhum empecilho. Da parte que me toca é tudo verdade porque eu moro não muito longe de Cascais e trabalho na Cruz Quebrada, lugares bem servidos de estradas e sem relevo de monta para a minha idade. Então afinal quantos são os portugueses que vivem no Castelo e trabalham na Praça do Comércio? E, desses abençoados, quantos se lembrariam de fazer esse percurso de carro? Ora, experimentem e vejam que o problema da mobilidade para além de estar no imobilismo das nossas ideias também reside, a montante, na vontade ináudita de transformar o Cacém, Loures, Torres Vedras, Cascais e outros afins em lugares parecidos aos filmes americanos, nos quais os carros são a lenha que alimenta o fogo da velocidade da acção do Arnold. E, de modo não muito inteligente, criámos nós próprios o nosso filme passando boa parte da nossa vida fechados dentro do carro, um espaço limpo à custa de mandar toda a porcaria borda fora, uma sala ambulante à qual já nem a TV-Vídeo falta, um sofá espantoso no qual repousamos e com o qual competimos, sem esforço porque basta carregar no pedal. Com grande bisga chegamos à próxima fila e nunca ao Colorado anunciado pela marca. Com grande velocidade nos pomos em casa e cheios de vontade reparamos, de repente, que nos falta o papel higiénico e nesse momento, olhando a sanita como grande invenção da história da humanidade, amaldiçoamos a falência da mercearia do Sr. Arnaldo que ficava mesmo ali na esquina onde se poderia mandar o puto comprar o dito, enquanto calmamente se tratava do harvest na Farmville.
Neste filme há algo louco, uma (des)organização urbana que é um paradoxo, andamos sempre de e um lado para o outro, mal nos mexemos, é certo, mas temos a vida toda presa a lugares como Freixo Sem Espada Nem Cinta numa casinha paga a prestações ao banco e à oficina do Sr. Vítor. Ah, pois é, tendemos ao oblívio deste tipo de despesa, falo das revisões a que o desgaste do carro obriga e, feitas as contas, andamos quase metade do mês a trabalhar para pagar o deslocamento para o trabalho. Corei porque também eu, tarde, fiz essas contas. E nesta separação de tudo e de todos até os putos ficaram sem área para brincar por causa do lugar para o carro. O carro passa 80% do tempo de vida parado ocupando um espaço que podia ser utilizado de outro modo mas, venha lá o Duarte Mata (arquicteto paisagista que trabalha na CML) propor um espaço em cada bairro para as crianças e, aí sim, verão o que é motim! Austeridade, troikas e coisecas dessas ainda “vá que não vá” mas tocar nos direitos dados aos carros por políticas públicas tão jeitosas é revoltante e mesmo paradoxal. E, deste modo, os putos têm mesmo de olhar para a playstation em vez de meter o punho no olho do filho da vizinha que, de tão mimado, mal cresça e lhe coloquem um carro nas unhas vira um tirano, desses que na estrada acelera sem ter medo.
A velocidade da minha bicicleta não mete medo a ninguém e é tão atraente que puxa conversa com muitos desconhecidos. A principio, a medo, ainda andei sobre os passeios mas farta de tanto carro encontrar vi que era na estrada que me sobrava mais lugar. O salto que dei para a estrada foi um salto de fé, e o medo face a este mundo familiar mas desconhecido era tanto que me lembrou o momento ímpar em que o meu pai tirou de vez a mão que me segurava o selim. Estava por conta própria e foi uma alegria, tinha vencido o medo que mais não era do que vencer o desconhecido. Depois de 400 km por mês, com o desenho das estradas de Cascais nos gémeos, já digo como o outro: “o medo é uma cena que não me assiste”.
Em suma, andar de bicicleta deu-me mais tempo para ver montras, ie, inspiração para colaborar neste blogue com uma linha editorial política, deliberadamente assumida, porque tenciono escrever sobre a estrada desta minha nova vida. E, para exorcizar a desigualdade de poder que diariamente nela vivo, vou mensalmente à Massa Crítica de Lisboa - todas as últimas 6ª feiras de cada mês no Marquês de Pombal às 18h. A Massa Crítica é uma manifestação festiva, muitos dirão um pequeno Carnaval porque já junta três centenas de pessoas, repito, mensalmente. E, para quem nem sonha, o Carnaval preserva a ordem estabelecida porque é uma data de escape que permite, numa agenda marcada que escapa aos acasos mas não ao controlo, o excesso e a inversão de valores e de poderes revelando, desse modo e publicamente, as hierarquias que perturbam a mudança social. Foi tendo a bicicleta como mote para pensar os desequilíbrios da vida que organizei um encontro na FMH julgando eu que, desse modo, saldaria uma dívida para com toda esta Massa Crítica da qual já faço parte mas, como todos sabem, dívidas atraem dívidas e sobraram para mim os juros do lucro arrecadado por uma discussão plural sobre a potencialidade contida na conjunção “mobilidade e lazer”. Será então sobre essa montra que a seguir escreverei.