A
avaliação final do Programa de Preparação Olímpica 2005-2012, tornada pública recentemente, acolhe exemplos de costumes cristalizados na relação entre uma estrutura social - neste caso o Movimento Olímpico - e o Estado, em sociedades de níveis elementares de capital social e dinâmica cívica.
A começar pela concepção de um processo de avaliação e a quem este se destina. Na óptica do Comité Olímpico de Portugal (COP): “
As coisas não devem apenas ser avaliadas pelo que são, mas também por aquilo que poderão vir a ser um dia”, e “
destina-se prioritariamente às federações desportivas e demais agentes que tornaram possível a realização do Programa”. Paradigmático.
Com efeito, e como convém a qualquer auto-avaliação, coligem-se os dados em torno de uma perspectiva que realce a boa gestão do programa, e assim, naturalmente, se concluir que “
O resultado de Portugal nos Jogos Olímpicos de Pequim de 2008 foi o melhor de sempre”.
Claro que o tratamento dos dados pode ser efectuado em múltiplas perspectivas, consoante as dimensões de análise passíveis de se construir. Sobre este tema pode-se recolher
outra informação e cruzar outros dados que chegam a conclusões diametralmente opostas.
No entanto, e à margem dos exercícios de análise de dados que se pretendam efectuar - sempre úteis e
valorizadores na aferição do nosso desenvolvimento desportivo - os parâmetros de avaliação foram previamente definidos e contratualizados entre o Estado e o COP,
conforme já se deu nota neste blogue, pelo que é incontornável deixar de constatar que os resultados obtidos pela participação portuguesa “
ficaram aquém do conjunto de objectivos quantificados no contrato-programa n.º 48/2005, impostos pelo Estado”
Ficamos aqui a saber que para o COP “
devem ser estabelecidos objectivos, a sua quantificação ou não compete ao Estado” o que representa uma mudança face a declarações dos seus dirigentes pós-Pequim a sustentar a
aleatoriedade dos resultados desportivos para inviabilizar a definição de objectivos. Neste
atávico costume o desporto não inova, mas acompanha hábitos de longa data, a gestão sem objectivos, ou a gestão sem objectivos quantificáveis. Resta saber se o COP, uma vez definidos os objectivos, considera que assinar um contrato programa com o Estado representa alguma forma de comprometimento com eles.
Depois, claro que nem tudo correu bem. É preciso diagnosticar as falhas e apontar medidas para as colmatar. E aí o suspeito do costume assume o ónus primordial nestes dois momentos. O Estado e a sua Administração Pública Desportiva!
Atrasos na disponibilização das verbas, obrigatoriedade da devolução de comparticipações e condicionalismos dos mecanismos de execução orçamental são reiteradamente apontados na avaliação.
Candidamente o COP esperava que o Estado, de súbito, resolvesse problemas de décadas na gestão do financiamento público desportivo? Que no desporto fosse aquilo que não tem sido em outros sectores? Um bom e atempado pagador? Ainda assim a acção do Estado em garantir as melhores condições de preparação aos nossos atletas deve ser assinalada. Várias foram as medidas tomadas nesse sentido pelas diferentes colorações políticas que nos governaram durante o período em apreço.
É razoável assumir a execução orçamental e o financiamento do programa como o ponto fulcral do relatório de avaliação, e exigir mais eficácia do Estado no cumprimento das suas obrigações nesta matéria? Até se pode admitir. Mas resume-se a avaliação de um programa unicamente a este factor crítico?
Os 80% de atletas de nível I, II e III que não obtiveram resultados de acordo com o seu nível desportivo devem o seu insucesso apenas às contingências de financiamento do Estado?
Cabendo ao COP “a responsabilidade de planear, gerir, acompanhar e avaliar o Programa de Preparação Olímpica” é, de todo em todo, sintomático da mentalidade que dá forma aos padrões de concepção da gestão dos dirigentes responsáveis por este e outros programas de interesse público desportivo, que o esforço financeiro para a sua concretização recaia na sua quase totalidade sobre o Estado.
É revelador o ênfase na “crescente autonomia das organizações desportivas…” e se reclame, simultaneamente, que “seja atenuado o distanciamento da Administração Pública desportiva das realidades e necessidades dos agentes desportivos…” recomendando para o futuro mais e mais recursos públicos no apoio aos programas olímpicos.
Nesta perspectiva, não é de estranhar que “pela primeira vez, nenhuma grande sociedade financeira ou empresa pública foi parceira do COP, em termos de mecenato, o que eventualmente proporcionaria que todos os desportos e atletas beneficiassem transversalmente do financiamento com esta origem e natureza”. Querem ver que esta responsabilidade também é do Estado!?
A sustentabilidade de um programa olímpico sem relevante envolvimento e financiamento privado é preocupante, mas não tanto como o que está a montante e compromete o futuro de um subsistema desportivo onde os seus responsáveis não gerem ou lideram, mas apenas dirigem em navegação à vista, aprisionados na passividade expectante de um quadro de valores anquilosado que se orienta face às políticas e programas públicos a reboque da agenda dos poderes políticos. Limitando-se a esperar e reagir, para depois reclamar. Desde há muito preferindo ser sujeito a actor das políticas.
Neste cenário pavloviano, onde a iniciativa e mobilização empreendedora são um bem escasso, saltam à tona as limitações de quem dirige nos momentos onde é necessário olhar, criticar e reflectir, em amplitude e prospectiva, no âmbito da sua autonomia organizacional, sobre as estratégias, planos e responsabilidades na condução de um projecto de desígnio nacional, apontando linhas de orientação, prioridades e critérios de selectividade e diferenciação, estruturados num documento com uma visão de futuro submetido ao escrutinio e participação dos diversos corpos sociais.