A história do desporto moderno encontra-se inevitavelmente marcada pela instrumentalização do seu potencial de mobilização social e activismo político. Ao serviço de ideologias totalitaristas ou nacionalismos extremados, no combate à discriminação racial ou na promoção da paz e do desenvolvimento, o desporto é um catalisador para a acção em torno desses objectivos políticos.
Nem sempre explorada com o rigor científico que lhe é devido a geopolítica desportiva é um tema na ordem do dia. No que respeita à integração do desporto nas políticas para o desenvolvimento e para a paz, procurou-se
anteriormente neste espaço apresentar, em traços gerais, a estratégia e o labor das organizações internacionais neste domínio, em particular no seio do denominado
sistema das Nações Unidas (NU), tendo em atenção que se tratam de acções humanitárias e cívicas implementadas através de inúmeros projectos apoiados e desenvolvidos pelas diversas organizações das NU nos locais mais remotos do planeta longe de dos holofotes mediáticos.
No entanto, a realização do Campeonato do Mundo de Futebol este ano, pela primeira vez num país em desenvolvimento, constituiu uma oportunidade única para a comunidade internacional explorar o acontecimento em favor do desenvolvimento do continente africano.
O recente relatório do Secretário-geral reporta a estratégia das Nações Unidas implementada antes, durante e após o evento, clarificando, por um lado, o quadro institucional criado no seio das NU para uma abordagem concertada sobre o desporto ao serviço do desenvolvimento e da paz no reforço da cooperação e coordenação entre os organismos das NU, com os Estados Membros, as federações e organizações desportivas, bem como as organizações governamentais e não governamentais, mas também, por outro lado, na elaboração de políticas, mobilização de recursos e avaliação do seu impacto ao serviço do desenvolvimento e da paz, de acordo com o Plano de acção trienal
estabelecido em 2006 aproveitando o ímpeto gerado no âmbito do
Ano Internacional do Desporto e da Educação Física, e do seu
relatório intercalar.
A
leitura serena deste documento, que fecha o plano de acção sobre o desporto ao serviço do desenvolvimento e da paz, permite aquilatar, com maior acuidade, o trabalho implementado em vários continentes, o roteiro institucional no seio das NU e os programas nacionais desenvolvidos em torno do desporto para consolidar objectivos de saúde pública, educação, resolução de conflitos e manutenção da paz - o desporto é uma linguagem universal para mediar o acesso a comunidades em conflito -, mas também os obstáculos encontrados na sua prossecução e sustentabilidade no seio dos programas das Nações Unidas e suas orientações estratégicas e políticas.
Aliás, como em tudo na cena política internacional, o despertar de consciências nos últimos tempos para o reforço deste valor do desporto no âmbito das políticas de desenvolvimento, tem uma agenda política iniludível que se prende com os Objectivos do Milénio, cujas metas para 2015 parecem, neste momento, de difícil alcance. Com efeito, o relatório em apreço é submetido à Assembleia Geral nos termos da
Resolução 63/135, a qual reconhecia “
a necessidade de maximizar o potencial do desporto para contribuir para alcançar os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio das Nações Unidas”.
Assim, sem surpresas, o
movimento olímpico - com um
novo estatuto político de maior relevo reconhecido no seio das NU - e o
Secretário-Geral das NU correm atrás do tempo perdido, e exortam ao dinamismo de projectos desportivos locais ao serviço da agenda do desenvolvimento e dos oito objectivos - políticos - do milénio, como se comprova da
resolução saída da Assembleia Geral de Novembro cujo principal desígnio visa, no compromisso de acelerar o cumprimento daqueles objectivos, reforçar o peso político do desporto no seio do sistema das NU, através dos eixos estratégicos delineados no quadro de acção ao longo dos últimos três anos.
Contudo, apesar do potencial reconhecido ao desporto em integrar minorias étnicas, emigrantes e populações específicas esbatendo focos de discriminação estrutural, pode ser, paradoxalmente, um veículo privilegiado para a sua replicação e reprodução de manifestações de discriminação directa e indirecta.
As visões apriorísticas do desporto como indutor - por geração espontânea (?) - de resultados sociais positivos que por aí medram no discurso político-desportivo são meio caminho andado para se alcançarem efeitos em sentido oposto, bem graves em momentos de maior agitação social como se prevêem.
Que a análise dos
resultados ao nível dos países desenvolvidos da UE possa servir de exemplo para, pelo menos, questionar preconceitos e reflectir sobre as interdependências entre políticas sociais, educativas e desportivas, não só em países em desenvolvimento.