Entre apitos de metal duvidoso e outras patéticas e díspares decisões do foro da justiça desportiva, onde o inacreditável desfecho do caso relacionado com o triste jogo de futebol entre os juniores de Sporting e Benfica, por exemplo último, merece por direito contar para o dito role, muita matéria de relevo teríamos para comentar e lamentar. Infelizmente, mais do que pensarmos naquilo que consideramos justiça desportiva, quando a comparamos ou relacionamos com a outra, a mais abrangente, aquela que mexe com a nossa vida de todos os dias, facilmente compreendemos que tudo se conjuga, tudo se conforma numa simples constatação: a justiça actual em Portugal é miserável.
Por muito tempo, diria, em tempo a mais, nos contentámos com alívios e desabafos de momento, quando apenas nos lamentávamos da morosidade da justiça. Se essa verdade continua intocável e sem que se vislumbre qualquer melhoria, os últimos tempos vieram acrescentar um drama bem maior para todos os portugueses: a desconfiança que paira sobre quem nos julga e o modo como se chega a esse acto de julgamento. Um recente inquérito sobre o que os portugueses pensam da nossa justiça, com mais de 80% de desconfiados sobre o sistema, arrasa o edifício que todos os dias vemos louvar pelos mais altos responsáveis da matéria. Estes senhores, pilares de um sistema podre, retrógrado e desajustado da realidade, pintam e ajustam à sua dimensão um quadro negro, onde apenas percebemos as sombras desfocadas do que, em tempo próprio, foram figuras bem definidas, enquanto instrumentos protectores dos que andam por bem e penalizadores dos que prevaricam.
Se exemplos do que afirmo, pela sua escassez, foram no passado objecto de busca, a banalização dos actos hoje espelhados na comunicação social, pelo que vamos sabendo, traduzem por miúdos a motivação da revolta de quem não acredita no que se investiga ou julga. A impunidade, a troca de favores, as pressões políticas, as demissões provocadas, as alterações legislativas de conveniência, as nomeações de favor, e tantos outros factos que fazem parte do algo que é denunciado no nosso quotidiano, mostram bem o estado onde se chegou, não sendo difícil concluir que há um passo gigantesco entre a justiça que se serve ao cidadão comum e aquela que está à disposição dos poderosos e influentes. E, por aqui, pense-se em política, em associações diversas de indivíduos ou apenas no poder do dinheiro que tudo transforma e corrompe.
Ao perceber cada um de nós que, caso não faça parte de qualquer dos sistemas apontados, se vê por sua conta e risco, é hora para muitos de procurar abrigo em qualquer desses telheiros que albergam rebanhos disciplinados e obedientes, confrontados com as suas limitações de liberdade individual, mas cientes das garantias que a hierarquia superior transmite. Perante este cenário, onde o amiguismo, a cunha e a influência marcam pontos decisivos nos actos de cada um, começa o tecido social a deixar-se impregnar deste fedor intenso chamado promiscuidade. Está, por esta via, instalada a dependência, a falta de vontade própria, o medo de agir. Em suma, a aceitação tácita, dolosa e pacífica do que se passa neste e noutros campos da sociedade portuguesa.
Não é necessário fazer um grande esforço para constatar que a situação a que se chegou desqualifica a nossa democracia e fere com gravidade a nossa sociedade. Se não acreditamos na justiça, como é que podemos acreditar num país mais justo, seja qual for o prisma de observação, entre habitação, educação, saúde, bens de primeira necessidade, acesso à cultura, desporto, etc. Não estará indubitavelmente em questão a nossa liberdade?
Após 35 anos de democracia, não é minimamente aceitável esta desagregação da justiça, esta arena movediça em que todos nos vemos atolados, percebendo que só alguns conhecem as pedras sólidas do percurso salvador, seja ou mesmo ínvio ou não. Não podemos continuar a calar este desagrado, esta revolta. Em cada acto, em cada gesto, por mais simples, podemos e devemos protestar, escrever, anunciar o que nos vai na alma. Para que haja futuro e se possam continuar a escrever textos como este, por mais que ele possa soar a disparate ou ser alvo da maior contestação. A crítica ou a aprovação, mesmo que básicos, já são por si só actos voluntários manifestadores e valorativos da importância da justiça na sociedade.
E, até pelo espaço que aqui se utiliza e titula de cidadania desportiva, dada a volta ao tabuleiro com regresso à casa de partida, não deveríamos nós, homens do desporto, procurar ser exemplo desta justiça de bem? Na evolução e revolução que todos temos que fazer, a bem de uma sociedade mais capaz, mais séria e mais justa, podemos deixar as coisas como estão? Por mim, com ou sem incompatibilidades entre os magistrados que actuam na justiça desportiva ou fora dela, sejam estes ou outros, profissionais do ofício ou não, o que temos que exigir é pessoas de comportamento sensato, sentido de missão e honestidade inquestionável. Sem o tal fedor da promiscuidade que, também por aqui, tanto tem empestado o panorama desportivo português nas últimas décadas. Se nos livrarmos dessa cáfila, os tais que estão no rebanho, sempre na expectativa das benesses que o grupo de intenção duvidosa lhes acena e garante, poderemos ser exemplo a seguir para outras plateias da nossa sociedade, na busca da tal justiça que não olhará a credos, cores políticas ou outras, posses e classes sociais.