Um dos fundamentos da independência de uma organização - neste caso de uma autoridade desportiva - assenta na possibilidade de tomar decisões racionais fundadas em objectivos bem definidos, com vista a promover os interesses da actividade que governa ou regula, em particular dos seus agentes (atletas, técnicos, clubes), sem a intromissão de interesses terceiros nos resultados das suas decisões.
Nem sempre o sucesso nos resultados se encontra de mão dada com a independência - nomeadamente a independência política -, bem pelo contrário. Porém, quando uma organização toma decisões lesivas e se acumulam suspeitas sobre a sua probidade, numa mistura explosiva de incompetência e corrupção, os efeitos são devastadores.
A cronologia recente de acontecimentos durante as eleições para a FIFA espelham este facto, com a exploração mediática dos escândalos de corrupção e compra de votos. A promiscuidade entre politica e desporto é tão velha quanto as normas que a proíbem. Não é pela sua consagração estatutária ou regulamentar, como recentemente se constatou no movimento olímpico português, que usualmente se olvida tal princípio de independência, até ao momento onde os interesses colidem. Várias das grandes organizações desportivas passaram por momentos críticos semelhantes. Os bastidores do poder, no caso concreto da FIFA, encontram-se documentados, provavelmente com o rigor de nenhuma outra instituição federativa internacional, em diversas obras. O jornalista americano Grant Wahl, que assumiu inicialmente a sua candidatura ao cargo de presidente do organismo que superintende o futebol mundial, descreveu, por dentro, o funcionamento de todo o sistema.
Compreende-se e justifica-se o interesse jornalístico, no exercício da sua função de “watchdog” numa sociedade moderna, lamenta-se contudo, salvo raras excepções, que a análise se tenha focado apenas no domínio ético e se tenha afastado de um elemento decisivo que alimentou aquele que pode ser o maior caso de corrupção na história do desporto moderno, concretamente a incapacidade dos quadros dirigentes em adaptarem a governação das suas organizações a uma sociedade globalizada, com os novos desafios políticos, económicos, culturais e sociais que hoje atravessam o desporto, desde a sua vertente profissional até ao mais singelo praticante informal.
Blatter perdeu a face na guerra que comprou com a União Europeia na sua proposta, inviável, da regra “6+5”, tomou posições sexistas e homofóbicas que debilitaram o prestígio da organização que dirige. Foi incapaz de modernizar a estrutura do futebol, compreender os sinais dos tempos, alterar os vícios do seu modelo de gestão ou apresentar uma agenda reformista quando todos os analistas há muito anteviam um desfecho como o sucedido.
Não se liberta tão cedo do libelo de clientelismo político, da teia de pequenos favores em que enredou a FIFA e da falta de cultura democrática na sua liderança, denunciado por grupos influentes que pugnam por uma reforma radical da instituição, ou por entidades representantes dos clubes e patrocinadores que reclamam medidas de fundo.
Para já quais as intenções do novo presidente eleito? Recomendar um político com um passado cristalino (!?) como Kissinger para pôr ordem na casa e contratar um antigo quadro do FBI para investigar as ocorrências… Tudo isto enquanto florescem os casos de viciação de resultados.
Acresce, no caso da FIFA, mas também de outras federações internacionais, que a atribuição da organização dos seus eventos de maior nomeada a economias emergentes e países da antiga esfera soviética, no intuito de abrir novos mercados e, em alguns casos, obter, entre outras garantias, decisões mais céleres devido à falta de escrutínio democrático, acarretou, obviamente, um enfraquecimento dos países ocidentais na cadeia de poder das grandes organizações desportivas e a maior influência de outras latitudes, cujos países não são propriamente o paladino de independência e transparência, como é o caso da Rússia ou do Qatar.
Por outro lado, são ainda os países do chamado mundo ocidental que concentram a maior fonte de receita de patrocínios e direitos de transmissão, essenciais à valorização económica das grandes competições. No caso do futebol, 90% das receitas provêm ainda da Europa. Mas o velho continente não irá acolher as próximas três edições…Ou seja, os elevados volumes de receita poderão vir a ter os dias contados.
Avolumam-se assim os riscos de uma intervenção mais incisiva do poder político, como ocorreu recentemente através do Parlamento Europeu, e pode também repetir-se sempre que a auto-regulação não se realizar através de “princípios de boa governação”, conforme a União Europeia assume no Livro Branco sobre o Desporto.
A propósito de tais princípios, na plêiade de informação que tem vindo a ser produzida no Reino Unido, aproveitando o ensejo da realização dos Jogos Olímpicos para reflectir sobre o futuro do desporto britânico, aqui fica uma aplicação prática e concisa, para adaptar as organizações desportivas e a cultura de quem as dirige a um quadro de governação ao nível das exigências e expectativas que a comunidade nelas deposita.